Djokovic encolhe os ombros, abana a cabeça e ri, incrédulo com as palmas das mãos abertas ao céu. Há segundos, esbracejou e refilou para ar em sérvio para só ele entender, tinha falhado uma resposta a um segundo serviço de Alcaraz, precisamente um momento para não falar e pressionar, ainda mais, o tenro espanhol. Irado contra ele próprio, ouviu o público reagir com ‘bús’, apupos dedicados a um homem que barafustar com a sua própria pessoa, só isso, um ato de auto-flagelação mas que foi personalizado por muitos nas bancadas. Talvez sintoma destes tempos, sentiram ofensa no momento quase privado de frustração de alguém com um fogo particular no olhar.
Quando, mais adiante no primeiro set, é Carlos a perder os carretes, voraz a berrar um impropério em espanhol com um grunhido bastante maior ao dar uma madeirada na bola, a mesma falange sentada em redor do campo, presente para assistir ao ténis que prima pela parcimónia e contrição, nada lhe dedica. Ouve-se apenas um burburinho de conversa preocupada, zero de tons graves de reprovação. Era evidente a diferença de tratamento: a lenda a ser tratada com pavio curto quando se chateou com ela mesma, na sua bolha; um rapaz incrível, previsivelmente também uma lenda a seu tempo, mas ainda não, a ter o perdão do anfiteatro por um comportamento igual.
Novak sentiria o tempo a jogar contra ele em Paris. Era o mais velho tenista a alguma vez estar no court a disputar o ouro olímpica, um título que não vale pontos para o ranking nem devolve milhões de euros de prémio, só retribuiu com a medalha mais preciosa e o prestígio intangível de ganhar onde mais raramente se vence. Com 37 anos, o tempo, seu adversário, também lhe foge enquanto fica ronda de perto ‘Carlitos’, metade do sérvio em idade e pelos vistos o seu dobro ou o triplo na estima de quem compõe o Philippe Chatrier. Na meca da terra batida, onde há dois meses o rapazito entre eles triunfou, Djokovic e Alcaraz presenteiam os olhares com um jogo para a vida.
É uma questão de fagulhas, finíssimos fios de cabelos, arranjar algo que os separe no primeiro set. Ambos jogam nos píncaros do que têm, demonstram o máximo das suas capacidades. As respostas do sérvio estão lá, estrondosas especialmente quando são cruzadas e partem da sua esquerda, com ela manipula pontos rumo ao milímetro, à exatidão, ao segundo em que puxa as baterias do adversário para a rede com amortis de veludo. O ténis de Djokovic é exímio, a resposta do todo-o-terreno do espanhol equivale-o com a sua já típica alta voltagem que liberta uma corrente elétrica de pancadas-bomba, serviços-direita constantes, volleys dados do fundo do campo e uma energia que lhe vale cobrir o terreno ao sprint como se nada fosse.
Os berros de frustração, às tantas, vinham de duas gargantas. A colisão de dois tenistas grandiosos, a medirem os máximos um do outro, tornou-os dois pólos de tensão. O público, finalmente empático, compreendeu a ocasião e deixou-se de recriminações tolas. Que gritem, que berrem, que deitem cá para fora. Os Depeche Mode postos a tocar num período de descanso acertavam na lição com o seu “I Just Can’t Get Enough”. Para quê protestar contra questiúnculas dos tenistas com eles próprios se um dia, em breve, estes jogos, entre estes dois, vão evocar apenas saudade?
Novak e Carlos foram protegendo os seus jogos de serviço magistralmente, proporcionaram pontos extraordinários, ambos a encontrarem-se na rede cada vez mais com o passar do tempo, as tentativas de engano a juntarem os dois melhores da atualidade ao ponto de sentirem o hálito um do outro nas respirações pesadas, no fôlego que se obrigavam a gastar. Com 4-4, o sérvio defendeu-se de cinco pontos de break, a rir-se da forma como a persistência da juventude do espanhol vendia cada bola a preços milionários. O 6-6 levou ao tie-break de onde Djokovic saiu a rugir (6-3 na mini-disputa), o fogo nos seus olhos, ainda havia vida no corpo roído de tantas batalhas e massacrado por 92 minutos de primeiro parcial.
As margens a separá-los continuaram ínfimas. O set seguinte começou espetacular, fabulástico, ‘Carlitos’ a detonar pancadas lá do fundo numa potência que só nele habita hoje em dia, a apanhar em contrapé as pernas não tão soltas de um Novak operado ao joelho há dois meses. Mas, perante a explosão da besta juvenil, o corpo de Djokovic ia aguentando, titubeante por vezes, preso pela idade noutras, mas ligado à ocasião. Um homem nos seus 37 anos não iguala a rotação de um fenómeno de fisicalidade de 21, músculos esculpidos, veias desenhadas no braço direito, apenas com a estima ao seu físico. Novak hoje menor do que Carlos em tudo o que não dependa apenas da raquete.
Ele teria sempre de espreitar para dentro seu poço, ir lá ao fundo resgatar algo, de canalizar todos os átomos de ténis nesse seu corpo e transladar essas células a cada pancada, para que cada chapada na bola fosse incrível ou próximo disso. Djokovic maltratou Alcaraz constantemente, as suas respostas iam aos pés, as suas idas à rede fechavam pontos, dava passos em diante para dentro do court na troca de marteladas para pressionar o espanhol e rasgava o campo com bolas a caírem sobre as linhas. Ou era assim, com cada pancada a tentar ser a melhor que já deu, ou os pontos sujeitavam-se ao volante do espanhol.
E assim foi o sérvio mantendo o set na igualdade enquanto procurou sem descanso a sua superioridade, desgastando-se nos esforços brutais a que Alcaraz o obrigava porque na sua potência, no poderio que o habita e ele ainda tão jovem, há recursos de sobra. O espanhol manteve o seu serviço, o sérvio idem, o adulto na sala relativamente sereno perante o caçula de extraordinária promessa, mas menos experimentado, evidência até com Wimbledon e Roland-Garros vencidos consecutivamente este ano. Quando novo 6-6 os empurrou para outro tie-break, Carlos cedia ao que frustrara Novak lá bem atrás na final - desesperou com os seus erros diante de toda esta ocasião, perante a plateia, sob o olhar atento de um adversário movido pela desesperança.
Não se via Djokovic a desesperar, não se tratava disso.
Mas, em Paris, ele foi um homem impelido pela urgência das últimas vezes, um tenista toldado propositadamente, possuído por uma oportunidade que não o voltaria a visitar pela falta de tempo, de corpo, de físico, de tudo, como tal jogou com um desespero na raquete, a perseguir a carência que lhe restava na carreira que já é dona de tudo. Faltava um ouro olímpico, um triunfo no pináculo do desporto.
Essa senda fervilhou no sérvio no desempate derradeiro, em cada direitaça que disparou, resposta brilhante que soltou, nas forças que descobriu sabe-se lá onde contra o fenómeno que “just keeps coming back”, no bom inglês que na simplicidade resume a tortura que será defrontar Carlos Alcaraz.
Nem a força transcendente do espanhol que tem uma carreira pela frente, imberbe como ainda é - não deixem que as conquistas sublimes o escondam -, resistiu a um campeão imbuído de uma derradeira missão. O sétimo jogo entre ambos foi, condignamente, o melhor, é nos Jogos Olímpicos que o desporto deve assistir às suas maiores epopeias. O rugido escutado de Djokovic enquanto o triunfal winner de direita entrava ecoará para a eternidade, o seu choro também, mesmo que quase seco, ele franzido, de olhos trancados e aos soluços e as lágrimas parcas por talvez não lhe restar energia sequer para as deixar cair.
Caído de joelhos, com as mãos na terra batida a ampará-lo, os seus dedos tremiam. Os nervos da sua lenda davam-lhe tremores, tal o significado desta conquista.
Novak Djokovic já tinha 24 Grand Slams e recordes infinitos na sua carreira sublime e dourada. Faltava-lhe o golden slam, título que apenas quatro tenistas (Andre Agassi, Rafael Nadal, Steffi Graff e Serena Williams) dispunham por juntarem todos os majors à medalha olímpica mais preciosa. Nenhum deles mastigou uma vida no ténis com a glória desta, os feitos do sérvio, a longevidade que sugere mais uns quantos capítulos. ‘Nole’ pode barafustar à vontade, ninguém pode recriminá-lo.
E a sua fome, daqui a pouco, irá lembrar-se de que ainda resta Margaret Court com o mesmo número de Grand Slams.