No número 15 da rua do Loreto, em Lisboa, há uma sala de cinema que continua a resistir à passagem do tempo e às constantes mudanças da cidade. No meio da agitação urbana, o Ideal desperta a curiosidade de quem por ali passa e é atraído pelos grandes cartazes que antecipam o que pode ser visto no interior.

Ao longo de 120 anos de história, o espaço já foi muita coisa, mas esteve sempre ligado à indústria cinematográfica. Ali, em 1904, nasceu a primeira sala concebida para cinema no país.

A partir daí, multiplicou-se em várias atividades até que, há dez anos, foi totalmente renovado pelo produtor e distribuidor Pedro Borges.

“Era o único espaço de cinema que sobrava no centro da cidade. No resto de Lisboa desapareceram praticamente todos. Quando percebemos que a Casa da Imprensa estava disponível para que isto tudo fosse renovado, porque a Casa da Imprensa teve também de fazer um investimento inicial para libertar o espaço dos inquilinos que cá estavam com cinema pornográfico, a partir desse momento foi quase que uma obrigação”, recorda Pedro Borges em entrevista à SIC Notícias.

O Cinema Ideal nasceu em agosto de 2014, quando tantas outras salas fechavam portas. Pedro Borges explica que na altura o primeiro passo foi perceber em que estado estava o espaço, uma vez que “já não tinha obras nem manutenção há muitos anos”.

A primeira visita deixou uma ideia de que tudo seria bem mais fácil, algo que acabou por não acontecer. “Quando começamos a descascar tudo, que isto foi tudo descascado até ao osso por assim dizer, percebemos que a obra ia ser muito mais complicada do que aquilo que tínhamos pensado".

"Não há um público, há pessoas que gostam de vir ao cinema"

Quando as portas do Cinema Ideal se abriram, o objetivo era apresentar ao público uma programação “como era a das salas únicas” em que um filme estreava e estava algum tempo em cartaz.

Isso acabou por se alterar. Perceberam, então, “que deveria ser uma coordenação um bocadinho diferente com vários filmes em exibição em simultâneo para diferentes públicos em diferentes horas do dia”. Essa multiplicidade mantém-se até hoje.

“Não há um público, há pessoas que gostam de vir ao cinema (…) São pessoas que gostam de ver o tipo de filmes que nós mostramos, que também não é todo o tipo de filmes, e que gostam de se sentir confortáveis, com uma boa projeção, simpatia, que gostam de ver o cinema como o cinema deve ser visto que é em comunidade e na partilha de experiências comuns.”

Uma sala de cinema no meio de uma cidade transformada

Em retrospetiva, Pedro Borges diz que houve altos e baixos ao longo destes 10 anos. Explica que “houve sobretudo um acontecimento mais ou menos a meio da vida que foi a pandemia que implicou o encerramento do cinema durante vários meses e depois outros tantos meses com grandes limitações”.

Mas “mais do que o cinema e a frequência do cinema”, Pedro Borges dirige a conversa para como a cidade de Lisboa tem mudado ao longo do tempo.

“Não é só para nós, é para Lisboa e é a cidade que tem de ter uma ideia se quer continuar por este caminho ou não. É como se tivéssemos sido desapropriados de uma parte da cidade porque não é só o turismo e o preço do turismo selvagem no centro da cidade, é sobretudo a maneira como os lisboetas e os portugueses deixaram de usufruir de Lisboa”.

"Vejo o futuro negro e espero que todos os dias fique um bocadinho menos negro"

O trabalho de mais de uma década valeu ao Cinema Ideal uma medalha de mérito cultural atribuída pelo Ministério da Cultura.

Num comunicado divulgado pela Midas Filmes, e citado pela agência Lusa, pode ler-se que a medalha enaltece "a qualidade da programação do Cinema Ideal, reconhecendo o seu papel essencial na exibição de filmes independentes, na apresentação de cinema com origem geográfica diversa, e na atenção dada ao cinema português e europeu".

Um reconhecimento que Pedro Borges diz que acaba por dar mais notoriedade ao trabalho que o cinema fez.

"Não é tanto no sentido de ser uma recompensa por aquilo que foi feito, mas de chamar a atenção para aquilo que vai continuar a ser feito, por isso, acaba por ser sempre um estímulo.”

Questionado sobre o futuro do espaço, é direto na resposta. "Vejo o futuro negro e espero que todos os dias fique um bocadinho menos negro".