Será difícil olhar para trás e dizer que 2020 trouxe algo de remotamente positivo, especialmente para o já fragilizado setor da Cultura que, com o embate da pandemia, vê no seu futuro uma incerteza desmoralizadora. Levará tempo para descobrirmos a extensão total da bomba atómica e para saber quem e o que sobreviverá ao golpe do ano que agora se encerra. Uma coisa sabemos: a Cultura será inevitavelmente outra em toda a linha depois de recolhidos os destroços e contados os mortos e sobreviventes.
2020 foi um ano diferente também para nós, no SAPO Mag. Sem festivais de música e cinema com edições físicas ou encontros presenciais com artistas e atores, também nós nos adaptámos ao confinamento e procurámos, a partir de casa, levar até si novas rubricas ao jeito destes novos tempos, como as nossas Festas do Pijama, as compilações de 10 sugestões de... e a continuação das nossas entrevistas @SAPOMag, agora à distância.
Cinema. Um deserto nas salas, de filmes e de público, com uma vitória portuguesa a fazer subir o moral
Quando a 9 de fevereiro, “Parasitas” fazia história nos Óscares como o primeiro filme de língua não inglesa a vencer o galardão para Melhor Filme, estávamos longe de imaginar o ano negro que aí viria para o cinema.
Após décadas ausente da corrida ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, a vibrante indústria do cinema da Coreia do Sul conseguiu a primeira nomeação e vitória no rebatizado Melhor Filme Internacional.
Mas mal sabia o realizador Bong Joon-ho que "Parasitas" ainda chegaria mais longe: venceu Melhor Filme, Realização e Argumento Original na cerimónia. Foi uma das primeiras e a última grande festa da Sétima Arte em 2020.
Depois disso, a propagação da pandemia de COVID-19 por todo o mundo chegou a encerrar totalmente as salas de cinema durante vários meses – algo que não aconteceu nem durante a I e II Guerras Mundiais -, travou a fundo o calendário da estreias mais relevantes no grande ecrã e, mesmo depois de reabertas as salas, iniciou um ciclo vicioso sem solução à vista: se não há filmes de apelo suficientemente forte nas salas, o público não vai ao cinema; se o público não vai massivamente ao cinema, a sobrevivência das salas fica em risco.
A primeira grande “vítima” da pandemia foi a estreia de “007: Sem Tempo Para Morrer”, logo no ano em que também nos despedimos do Bond original, Sean Connery. O novo filme da saga Bond deveria ter-se estreado em abril e, logo em março, foi empurrado para novembro, para depois ser de novo atirado para abril de 2021, como, aliás, o foram quase todos os grandes blockbusters agendados para este ano. “Dune”, “Velocidade Furiosa 9”, “Viúva Negra”, “Top Gun: Maverick” ou “West Side Story” foram apenas alguns dos exemplos de filmes de grande orçamento que tiveram de dar um salto de um ano.
Mas alguns decidiram testar novas águas: “Mulan”, a grande aposta da Disney para 2020, foi diretamente para o serviço de streaming Disney+ - inicialmente nos EUA com um valor adicional -, e “Mulher-Maravilha 1984” manteve a sua estreia no cinema para dezembro mas chegou simultaneamente ao streaming nos Estados Unidos, através da HBO Max. Foi esta, de resto, a estratégia que a Warner Bros. decidiu aplicar a todos os seus filmes com estreia até ao final de 2021.
Da lista de blockbusters agendados para este ano, com uma estreia tradicional em cinema, apenas sobrou “Tenet”, de Christopher Nolan, realizador que já criticou duramente o caminho tomado pela Warner Bros. em 2021.
Outro cancelamento de peso foi o da edição física do Festival de Cannes, que até então apenas não se tinha realizado em 1948 e 1950 por razões orçamentais, e tinha sido cancelado a meio em 1968 em solidariedade com o movimento do Maio de 68. Este ano teve apenas uma edição reduzida em versão digital.
Mas porque nem tudo foi negro, 2020 também trouxe o reconhecimento ao cinema português com a glória de “Listen”, de Ana Rocha de Sousa. No Festival de Veneza – o único dos grandes que manteve a sua edição física – venceu o Leão do Futuro e o Prémio Especial do Júri Horizontes. Acabou por ser rejeitado como candidato português na corrida ao prémio de Melhor Filme Internacional nos Óscares, por não ter suficientes diálogos em português, mas levou muitos portugueses ao cinema para ver um filme nacional.
Porque nos fechámos em casa com mais tempo para ver filmes e séries, o SAPO Mag foi à procura de sugestões de quem sabe. Reunimo-las na rubrica “10 sugestões de”. Passámos também a contar com as sugestões semanais do crítico Rui Pedro Tendinha no magazine "Top Tendinha", que nos guiou sobre o que ver no cinema, em streaming e em VOD.
2020 fecha com muita incerteza para a indústria do cinema. A recuperação será lenta e dura, ainda com um calendário em constante mutação e persiste a pergunta: depois do golpe, que salas de cinema permanecerão abertas para mostrar os grandes filmes num grande ecrã?
Um verão sem cor nem festivais. Uma indústria a tentar permanecer à tona
Festivais cancelados, concertos adiados, a indústria da música a tentar agarrar-se a pequenos eventos para sobreviver e a não conseguir. 2020 podia resumir-se assim.
O verão, habitualmente sinónimo de festivais - de norte a sul, passando pelas ilhas, entre junho e setembro são dezenas os eventos que atraem milhares e milhares de pessoas – foi um vazio de silêncio neste ano para esquecer.
Em 2019, de acordo com a Associação Portuguesa de Festivais de Música, realizaram-se 287 festivais de música em Portugal, que receberam mais de dois milhões de pessoas. Somando bilhetes, transporte e outros gastos, os festivaleiros contribuíram num só ano com 18 mil milhões de euros brutos para a economia nacional.
Mas 2020 trouxe outro cenário: pela primeira vez em décadas, a música não juntou amigos e famílias em recintos ao ar livre. O Parque da Bela Vista, a Praia Fluvial do Tabuão, o Passeio Marítimo de Algés, a Zambujeira do Mar, o Parque da Cidade do Porto, a Praia do Meco, a Antiga Seca do Bacalhau de Gaia, o Parque Ribeirinho de Amarante ou a Aldeia de Cem Soldos não se encheram de milhares de festivaleiros que todos os anos vivem novas histórias e aventuras ao ritmo da música. As edições de 2021 começam a ser planeadas mas não há ainda certezas de que haja condições para as fazer quando lá chegarmos.
Este, por necessidade, foi também ano de reinvenção: em alternativa aos eventos físicos, a música foi para palcos virtuais e tentou criar plateias aí. E um evento à escala global em abril fez parar os fãs.
O mundo juntou-se através da música e os ecrãs das televisões, dos computadores, smartphones e tablets foram a primeira fila de um grande palco que recebeu dezenas de pequenos concertos na iniciativa "One World: Together at Home”, que contou com a participação de vários artistas e foi acompanhada por milhões de espectadores em todo o mundo.
A iniciativa, uma ideia de Lady Gaga, foi transmitida nas redes sociais e em vários canais de televisão e estações de rádio de todo o mundo.
No SAPO Mag, abraçámos o confinamento, vestimos roupa confortável e tivemos muitas conversas com artistas em direto na Festa do Pijama.
Para lá da pandemia, foi ano de se celebrar Amália. No seu centenário, assinalado em julho, foram promovidas várias iniciativas e muitos artistas homenagearam a fadista. Mariza editou um álbum de tributo a Amália, Carminho escreveu em sextilhas um livro biográfico para crianças sobre a fadista e Cuca Roseta cantou Amália no seu disco lançado em abril.
Lá fora, a rainha foi Billie Eilish: entrou em 2020 com o pé direito, com a vitória nos Grammys, foi a voz da canção de 007 “No Time To Die”, e terminou o ano como a artista feminina mais ouvida no Spotify.
Há 39 anos que nenhum artista conseguia vencer as quatro principais categorias nos Grammys ("Big Four") - Canção do Ano, Melhor Novo Artista, Álbum do Ano e Gravação do Ano. De acordo com a publicação, Christopher Cross foi o último artista a conquistar, em 1981.
A cantora entrou ainda para a história ao vencer o Grammy de Melhor Álbum Pop Vocal, tornando-se na mais jovem artista a conquistar o galardão.
A fechar o ano, a trágica notícia da morte de Sara Carreira aos 21 anos deixou o país de coração apertado. A cantora tinha começado o seu percurso na música em 2018, tinha já lançado vários singles e um EP, que apresentou em direto no SAPO Mag, e tentava fazer o seu próprio caminho, para lá do seu conhecido apelido.
O streaming e a pandemia como uma oportunidade. O aceso mercado de transferências na TV portuguesa
Se os cinemas sofreram um impacto impensável em 2020, com quedas de espectadores a rondar os 80%, o streaming teve na pandemia uma oportunidade de ouro para explodir (ainda mais).
Netflix e Disney+ aumentaram os subscritores a nível mundial, geraram-se verdadeiros fenómenos em torno de novas séries estreadas e fizeram-se experiências a cruzar o cinema e o streaming (como as que já referimos de “Mulan” e “Mulher-Maravilha 1984).
Foi em setembro que o serviço de streaming da Disney entrou em Portugal com um catálogo que junta todas as chancelas do império: Disney, Pixar, Star Wars, Marvel, Fox e National Geographic.
No mesmo mês, “Succession” e “Watchmen” triunfaram nos Emmys, reforçando o peso dos serviços de streaming também no circuito de prémios, e “Schitt’s Creek” surpreendeu ao levar para casa nove estatuetas.
Entre as séries-fenómeno do ano está a bizarra série documental “Tiger King”, da Netflix, sobre figuras excêntricas do submundo da criação de felinos selvagens e o muito estranho Joe Exotic. Cativou desde os espectadores anónimos a estrelas como Jared Leto ou Edward Norton e tem já programada uma versão ficcional protagonizada por Nicolas Cage.
Em outubro, o mundo passou a ter um súbito e inesperado interesse por xadrez quando a série “Gambito de Dama”, sobre a prodigiosa jogadora Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) e a sua luta contra demónios pessoais, entrou para todos os tops da Netlix.
E em novembro, voltámos a entrar no palácio de Buckingham na nova temporada de “The Crown”, desta vez já com o trunfo da princesa Diana para a abrir a novos espectadores. A temporada levantou novas polémicas e um debate sobre se a Netflix deveria ou não colocar um aviso de obra ficcional na série.
Para que ninguém perdesse o fio à meada nas novidades de TV e streaming, continuámos a levar até si semanalmente a rubrica "Zapping da Semana".
Em Portugal, o tema “Cristina Ferreira” incendiou o mundo da TV. Em julho, a apresentadora deixou a SIC, onde estava há cerca de um ano e meio, para voltar à TVI como cara da estação, diretora de entretenimento e acionista. A transferência motivou um processo judicial ainda em curso, fez manchetes e mexeu profundamente no “mercado de transferências” televisivo, com novas contratações a acontecerem tanto na SIC como na TVI, guerras de audiências diárias e batalhas por inovação em formatos entre os dois canais.
Uma das grandes apostas da SIC já a fechar o ano foi também a do seu serviço de streaming OPTO, com várias das produções do seu catálogo linear, mas também novos investimentos em séries e documentários, feitos especificamente para o serviço.
Um dos documentários originais da nova plataforma da SIC deixa um olhar sobre um dos maiores fenómenos da cultura pop de 2020 dentro de portas, "Como é que o Bicho Mexe?". Os diretos de Bruno Nogueira no Instagram começaram por ser um desabafo sobre a pandemia da COVID-19 e o confinamento e acabaram por converter uma legião de seguidores e participantes - Cristiano Ronaldo, Bruno Fernandes, Nélson Évora ou Salvador Sobral foram alguns dos cúmplices mediáticos ao longo de dois meses. A última edição, antes de dois regressos pontuais, quebrou o recorde de visualizações da rede social em Portugal, juntando cerca de 175 mil fãs.
Ninguém terá seguramente saudades de 2020, particularmente na Cultura, onde ele mais doeu. Olhamos agora para a frente para ver que cicatrizes ficarão e que novas oportunidades este mundo que ninguém esperava ver fez nascer.