Ficou uma certeza. No dia em que a esquerda for de novo maioritária, deixará de se realizar a sessão solene com que nesta manhã no Parlamento se assinalou o 25 de novembro de 1975.
O principal tema da sessão foi a própria sessão. O PCP, como prometido, faltou; o Bloco de Esquerda, representado no plenário apenas por Joana Mortágua, qualificaria repetidamente a iniciativa como um “disparate”; e o PS, através de Pedro Delgado Alves - e com metade da bancada ausente - fez questão de recordar que, tendo o partido votado a favor da realização da sessão, ao mesmo tempo votou contra a sua repetição anual, dignidade que, segundo salientou, nem a instauração da República nem a restauração da independência merecem.
Nove oradores discursaram e destes a maioria (cinco) não era sequer nascida na altura: Pedro Delgado Alves (PS), André Ventura (Chega), Joana Mortágua (BE), Filipa Pinto (Livre) e Inês Sousa Real (PAN). Rui Rocha (Iniciativa Liberal) era um miúdo (tinha 4 anos) e Miguel Guimarães estava no princípio da adolescência (13 anos). José Pedro Aguiar-Branco estava no fim da adolescência (tinha 18 anos). E assim, dos oradores, o único que na altura já era adulto (tinha 26 anos) era Marcelo Rebelo de Sousa - o último a intervir esta manhã no Parlamento.
O Presidente da República puxou pelos seus galões de professor e proferiu uma longa aula sobre o processo histórico do 25 de Abril de 1974 ao 25 de novembro de 1975. Usando uma imagem gástrica, qualificou diversas vezes a data como um “refluxo revolucionário”: “O 25 de novembro foi a conclusão do refluxo revolucionário.”
Referindo a sua “vivência inesquecível” destes tempos - como dirigente do PSD e como deputado à Assembleia Constituinte (eleita em 25 de Abril de 1975) - Marcelo reconheceu que “as conjunturas vão reinventando leituras”. Porém, logo a seguir, salientou como é importante que “a sua reconstrução corresponda ao verdadeiramente vivido”, sendo a síntese então “mais liberdade e mais democracia”. O 25 de Novembro - disse - foi “um passo muito importante para liberdade e para a democracia” mas “sem 25 de Abril não haveria 25 de novembro” - e sem 25 de novembro o “refluxo revolucionário seria mais demorado e mais conflituoso”, podendo até, segundo “alguns”, conduzir a uma “guerra civil”.
O Presidente empenhou-se em tirar o tapete às narrativas que começaram no CDS-PP e alastraram até ao Chega, atingindo mesmo o PSD e a IL. Aos que defendem que o 25 de novembro conduziu à “consagração plena da democracia parlamentar”, deu uma resposta categórica: “Não!”. E "não” porque isso, no seu entender, só aconteceria sete anos depois, com a aprovação da revisão constitucional de 1982, que terminou de vez com a tutela militar sobre o regime, pondo os políticos definitivamente no comando.
Marcelo fez mesmo questão de colocar do lado dos derrotados “a direita civil e militar mais radical, que perderia a sua reivindicação de extinção do PCP”. Do lado dos vitoriosos no campo militar, colocaria os militares moderados, sobre os outros dois grupos (militares afectos ao PCP e militares afetos a Otelo Saraiva de Carvalho). E fez questão de recordar que o poder político já homenageou diversas vezes esses militares moderados vencedores -, incluíndo o controverso Jaime Neves, chefe dos Comandos e ídolo do Chega - com diversas condecorações, incluindo atribuídas por ele próprio.
Já o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, empenhou-se em responder aos que, à esquerda, viram nesta sessão solene uma tentativa de colocar o 25 de Novembro como data de importância relativa equiparável ao 25 de Abril. “O 25 de Abril não é desvalorizável, não é equiparável, não é substituível” e “assinalar o 25 de Novembro não é mais do que celebrar Abril e o que só Abril iniciou: a liberdade e o desejo de democracia”. “A liberdade e democracia devem ser celebradas todos os dias, hoje não é exceção e até é um dia maior.”
Falando aparentemente com os olhos postos na bancada do PS, diria que "o 25 de Novembro foi feito por militares, soldados” enquanto “o 26 de Novembro foi feito por políticos, com Mário Soares à cabeça” - o que lhe mereceu aplausos da bancada socialista.
Pelo PSD, Miguel Guimarães procuraria também salientar que a importância do 25 de Abril não está posta em causa: “Ao contrário do que alguns poderão insinuar, comemorar o 25 de novembro não é para apoucar ou tentar diminuir o 25 de Abril de 1974, propósito que seria, aliás, sempre absurdo e um exercício condenado ao fracasso. O 25 de novembro não foi só mais uma data qualquer: o 25 de novembro possibilitou a concretizou a verdadeira promessa da revolução de abril: a liberdade. Dizer o contrário é sustentar uma narrativa alternativa da história e seguir uma via que o país há muito rejeitou e abandonou.”
Paulo Núncio, do CDS-PP, alinhou pelo mesmo diapasão, tentando não acirrar ainda mais divisões: "O que hoje celebramos não é uma contrarrevolução, é a coerência do 25 de Novembro com o 25 de Abril. Celebramos o direito de todas as força políticas estarem aqui por vontade do povo, mesmo aquelas forças políticas que decidiram não estar aqui hoje.”
Já Pedro Delgado Alves, do PS, fez o que se esperava, recordando o papel cimeiro que Mário Soares e o seu partido tiveram como protagonistas vencedores (“força política liderante”) dos eventos de há 49 anos: “Reafirmamos, reivindicamos e proclamamos com orgulho: Mário Soares e o Partido Socialista foram determinantes desde a primeira hora para que prevalecesse o caminho em direção à democracia pluralista que hoje temos.”
O deputado socialista vincou que o PS é contra a realização anual desta sessão em nome da recusa de “revisionismos, vontades revanchistas ou provocações”: "Devemos recusar a opção de quem procura instrumentalizar ou rescrever o passado para alcançar ganhos efémeros no presente. Invariavelmente, quem o faz falha no seu dever de respeito para com a memória de quem se bateu pela liberdade, e rapidamente descobrirá que não retirará qualquer vantagem da quebra dessa concórdia nacional.”
De resto, até elencou as “cinco grandes datas marcantes da nossa Revolução” - e em nenhuma delas incluiu o 25 de Novembro: “O próprio dia 25 de Abril”, “o dia 1º de Maio, com a ratificação popular da Revolução”, “as eleições para a Assembleia Constituinte, em 25 de abril de 1975, que legitimaram nas urnas o processo político iniciado um ano antes”, “o dia 2 de abril de 1976, com a aprovação da Constituição”, e “as primeiras eleições legislativas, em 25 de abril de 1976, que iniciaram um processo de normalização democrática.”
Antes, André Ventura tinha feito um discurso no seu registo habitual. Em 1975, disse, o país estava "debaixo da ameaça de uma ditadura soviética" e hoje "há uma nova ameaça da imigração descontrolada que destrói o nosso país". Adiantando que "só até setembro 344 mulheres foram violadas”, atribuiu esse número ao aumento da imigração. "Como muitos destes crimes sexuais são praticados por imigrantes ninguém quer falar disso", acusou. Uma meia dúzia de deputados socialistas saiu da sala.
Tal como Ventura, também Rui Rocha, da Iniciativa Liberal, não se importou nada em ser divisivo. "Esta cerimónia representa uma nova derrota daqueles que foram derrotados no 25 de Novembro”, advogou, num discurso que concluiu exclamando “Viva a liberdade!” e “Fascismo e comunismo nunca mais”.
Pelo lado do Bloco de Esquerda, a única deputada representante do partido na sessão solene, Joana Mortágua, retrataria esta iniciativa várias vezes como um “disparate” “folclórico” e “bizarro” que revelou "uma deplorável disponibilidade do PSD para ceder às extremas direitas”.
Antes, o Livre, através de Filipa Pinto, também desvalorizaria a importância da sessão dizendo que a data a ser assinalada deveria ser o 15 de novembro de 1974, em que “se instituiu o voto universal em eleições livres e que, finalmente, todas as mulheres portugueses passaram a ter o direito a votar, fossem casadas ou solteiras, tivessem ou não um curso, soubessem ou não ler”. “Esta data que fez 50 anos há dez dias é que nos deveria ter juntado em sessão solene, e juntará, por proposta do Livre”.
Atacando os partidos à direita, acrescentou que “uma coisa é ter respeito pelo 25 de novembro [e] outra coisa muito diferente é ter respeito por aquilo que estão a querer fazer ao 25 de novembro”: “Não demonstra verdadeiro respeito nem pela data, nem pela verdade histórica, nem, sobretudo, pela importância fundadora do 25 de Abril para Portugal e não só.”
A primeira oradora da sessão seria a deputada única do PAN. Inês Sousa Real deu o tom do que seria as intervenções à esquerda dizendo que o PAN defendeu sempre que “é a 25 Abril que deve haver a celebração de todos os momentos da revolução”. “Há 49 anos o país estava entrincheirado, completamente dividido ao meio, e à beira da guerra civil. Hoje olhamos para esta sala e vemos novamente trincheiras erguidas, entre os que dizem que não traem Abril e os que usam Novembro. Hoje vemos novamente trincheiras fúteis que não dignificam a memória de Abril”.