Com 80 milhões de euros de faturação anual, mais de 200 milhões de clientes e quase cinco milhões de transações, a Aptoide tornou-se uma candidata ao estatuto de marca portuguesa mais bem sucedida na venda de software para o consumidor final. Apesar do feito, o caminho iniciado em 2009 pela loja alternativa de aplicações (apps) para telemóvel teve de superar obstáculos alegadamente criados pela Google, recorda Paulo Trezentos, diretor executivo da Aptoide, em entrevista ao podcast Futuro do Futuro.

“Tínhamos 140 mil euros de receitas mensais na altura; muito menos do que temos hoje, mas 85% dessas receitas vinham através do Google Adsense, que não tem nada a ver com aplicações, e é um dos muitos serviços que a Google tem. E a Google desligou-nos esse serviço sem explicar porquê. Ou seja, do dia para a noite, perdemos 85% das nossas receitas porque um dos nossos concorrentes desligou o serviço que não tinha nada a ver com aplicações e foi essa a nossa primeira queixa em Bruxelas, em junho de 2014”, recorda o empresário sobre os primeiros tempos da Aptoide.


Paulo Trezentos recorda como um corte abrupto no AdSense da Google retirou 85% da faturação da portuguesa Aptoide
Paulo Trezentos recorda como um corte abrupto no AdSense da Google retirou 85% da faturação da portuguesa Aptoide José Fonseca Fernandes

A entrevista foi feita poucos dias antes de o Tribunal de Justiça da União Europeia (UE) ter rejeitado o recurso apresentado pela Google, confirmando que a gigante tecnológica americana vai mesmo ter de pagar a multa de 2,25 mil milhões de euros que tinha sido aplicada pela Comissão Europeia. Pela mesma ocasião, também se soube que a Apple vai ter de devolver 13 mil milhões de euros ao estado irlandês, por ter beneficiado, desde 2003, de ajudas fiscais consideradas ilegais.

A Aptoide não foi a única empresa a queixar-se do poderio da Google, mas Paulo Trezentos não enjeita o papel assumido nos processos iniciados nos Estados Unidos da América (EUA) e na UE. Trezentos considera que a Google, que é o nome que costuma ser usado para designar o Grupo Alphabet, continua com práticas anti-concorrenciais, mas promete manter as autoridades reguladoras alerta para o que aí vem. “Somos os primeiros a denunciar estas práticas”, garante.


Nos últimos 15 anos, a Aptoide cresceu com base numa loja de aplicações que rivaliza com a própria Play, da Google, na distribuição de software para os telemóveis que funcionam com sistemas operativos Android. Recentemente, a empresa portuguesa tirou partido das alterações que a App Store da Apple teve de implementar devido à regulação europeia, e criou também uma loja alternativa para distribuição de software para iOS, que corre nos iPhones. Apesar dos indícios de abertura e de a Aptoide ter superado alguns contratempos e dores de crescimento, Paulo Trezentos não tem dúvidas de que há hoje um excesso de concentração nos mercados digitais.

Segundo o empresário, “90% destes mercados fundamentais” que envolvem comércio eletrónico, pesquisas na Internet, lojas de aplicações, entre outros negócios que correm na Web, “estão na mão de cinco ou seis empresas”. “E isso naturalmente faz com que, depois, não haja concorrência. Os preços ficam mais caros. É algo de que nós não nos apercebemos, mas estamos a pagar mais nos serviços digitais porque não há concorrência”, denuncia Paulo Trezentos.

Estas e outras queixas de igual teor foram encaminhadas por mais de uma vez pela Aptoide para a Comissão Europeia e para o Departamento de Justiça dos EUA. Do lado de lá do Atlântico surgem notícias de que a Google pode estar em vias de vir a ser desmantelada.

No caso da UE, são já conhecidas as multas contra a Google, mas há ainda a diretiva dos mercados digitais, que terá ajudado a mudar o panorama concorrencial. “Acho que os consumidores devem estar preparados para não ver as vantagens óbvias (da diretiva europeia) logo no primeiro mês. É um mercado muito protegido por estas grandes empresas tecnológicas americanas, mas estes primeiros passos que estão a ser dados são fundamentais para haver maior concorrência, e inclusive dar oportunidade às startups portuguesas e europeias de tentar conquistar mercado”, responde Paulo Trezentos.

Patrick Sweeney, líder da Epic, junto de Paulo Trezentos, líder da Aptoide
Patrick Sweeney, líder da Epic, junto de Paulo Trezentos, líder da Aptoide DR

Aos desafios que geralmente são colocados no Futuro do Futuro, Paulo Trezentos respondeu com uma gravação do tecnólogo Linus Torvalds que pretende fazer jus ao passado feito na família tecnológica do Linux, e ainda uma foto com Patrick Sweeney, líder da Epic, que entrou em guerra aberta com a Apple, quando usou o famoso jogo Fortnite quando tentou quebrar as regras de controlo e partilha de receitas que são aplicadas pela App Store.

Apesar de não distribuir apps na China, Paulo Trezentos aceita fazer uma comparação entre as restrições hoje aplicadas pelo governo chinês e as condições aplicadas pelas grandes tecnológicas nos mercados ocidentais.

“De um lado temos um Estado que define, exatamente, que para lançar um jogo é precisa uma licença. Por outro lado, temos uma grande tecnológica que diz quem é que pode e quem é que não pode estar no sistema operativo”, reitera Paulo Trezentos. “Se por alguma razão aquela aplicação for retirada da App Store, deixa de existir, e a empresa (que a produziu) não tem nenhuma hipótese”, acrescenta.

O líder da Aptoide ilustra o domínio da Google nos vários mercados digitais com as prerrogativas que a gigante tecnológica exige aos consumidores. “Nós não somos obrigados a criar uma conta Google”. refere sem deixar de lembrar que a alternativa à criação de uma conta Google torna a vida desse consumidor “quase impossível”.

Mesmo com os alegados entraves, a Aptoide não desiste de encontrar um lugar nesses mercados dominados pelas grandes tecnológicas. “Quando já não éramos considerados loucos, voltámos a ser considerados loucos” refere o líder e fundador da Aptoide sobre a ousadia do lançamento de uma loja alternativa para a venda de apps para iPhones e iPads.

Sobre o potencial das lojas que rivalizam com gigantes tecnológicas como a Google, Paulo Trezentos dá a seguinte receita: “Ocupamos o perfil de consumidores a que a Google não chega tão bem” responde, sem pôr de lado “os consumidores preocupados com a privacidade ou os “jogadores que têm muita dedicação, dedicam muitas horas e até investimento monetário nos jogos”.

“Portanto, ocupámos aqui uma série de nichos, que estão a crescer para o mainstream (para o mercado geral, que abarca a maioria dos consumidores)”, acrescenta Paulo Trezentos.

Tal como não conseguimos conceber um mundo em que, no caso dos livros, há só uma livraria ou uma biblioteca em todo o mundo, é muito difícil conceber um mundo com cinco mil milhões de utilizadores de telemóvel em que o acesso à Internet, ao conhecimento e ao lazer é feito apenas numa, ou neste caso, duas lojas de aplicações”, conclui Paulo Trezentos, sobre o poderio atual de Play e App Store.

Tiago Pereira Santos

Hugo Séneca conversa com mentes brilhantes de diversas áreas sobre o admirável mundo novo que a tecnologia nos reserva. Uma janela aberta para as grandes inovações destes e dos próximos tempos.