Comecemos já adiantados: domingo, 25 de outubro de 2020. Às 2h00 da manhã, os relógios atrasam uma hora no continente e na Madeira e o mesmo acontece à 01h00 nos Açores. Estamos habituados ao processo e para nós pouco muda: a maioria dos relógios acertam-se automaticamente e reparamos durante umas semanas que amanhece e anoitece mais cedo. Passam duas estações e voltamos a acertar relógios. É assim há vinte anos.

Já o debate sobre a mudança da hora é mais antigo do que a CEE e foram raros os consensos gerados. No ano passado, o alarme voltou a tocar, quando o Parlamento Europeu impôs aos seus 27 o fim das mudanças de hora. Com 410 votos a favor, 192 contra e 51 abstenções, os eurodeputados escolheram. Até 2021, é preciso optar por uma hora contínua em toda a União Europeia – ou de verão ou de inverno, mas apenas uma em cada país.

O governo português respondeu prontamente que não quer optar, com base num relatório do Observatório Astronómico de Lisboa (OAL), que desenvolve os vários pontos relacionados com esta questão, desde os gastos de energia às perturbações de sono e todo o histórico de mudanças de hora que já ocorreram no país. A conclusão é clara: o melhor é mesmo mudarmos a hora duas vezes, tal como tem vindo a ser feito nos últimos anos.

“Portugal já passou por isto, dez milhões de pessoas andaram a experimentar vários regimes horários, foram todos abandonados ao fim de alguns anos. Tendo em conta a nossa longitude e estilo de vida, o melhor é termos a hora de inverno, a hora habitual mais próxima do sol, e avançarmos uma hora no verão”, explica Rui Agostinho, investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e um dos maiores especialistas na área em Portugal.

Rui Agostinho
Rui Agostinho Rui Agostinho durante uma apresentação créditos: Ciência Viva

É bom relembrar, até porque a maior parte de nós talvez não tivesse nascido, mas já tivemos anos inteiros com a hora de inverno, outros com a hora de verão, já tivemos três mudanças num ano e nesta dança do tempo importa salientar que “dois terços do território estão no fuso -1”.

Mas, desde a Implementação da República, e com a ideia de estar comercialmente perto do fuso espanhol, optou-se pelo fuso 0. Antes disto, e de o mundo se reger pelo Meridiano de Greenwich, guiavámo-nos pelo Tempo Solar Médio no meridiano de Lisboa, que nos diz que quando o sol está no seu ponto mais alto é meio-dia naquele local.

Em média, dependendo da época do ano, são 37 os minutos que separam a hora solar de Lisboa da de Greenwich. Isto quer dizer também que, este domingo, voltamos a estar apenas a 37 minutos da nossa hora solar e não a 1h37 minutos, como temos estado então desde março.

créditos: NASA Earth Observatory

A mudança de hora começou na I Guerra Mundial com a ideia de aproveitar a luz do Sol e poupar carvão, e desde aí a hora tem andado para trás e para a frente ao ritmo dos governos, das economias, das guerras ou dos costumes. Agora, o regime bihorário vai voltar a desaparecer, e, tendo de optar por uma hora contínua durante o ano, “o mais natural é que seja a hora mais próxima da hora do sol”, ou seja, a hora de inverno. “É o menor preço a pagar”, assinala Rui Agostinho.

Quando pensamos na hipótese de a hora de verão ser contínua, percebemos de antemão que no verão não há grandes alterações, afinal há muita luz durante o dia para termos margem de andar com as horas para a frente e para trás, mas no inverno “temos o sol a nascer perto das 09h00 em dezembro, as escolas e os serviços a abrir às 8h00”.

O Governo de Cavaco Silva (entre 1992 e 1996), munido de argumentos economicistas, fixou a hora em Portugal no horário de verão, ou seja, a coincidir com a de Berlim. Não há provas de que a economia tenha melhorado, mas há muitos relatos de ter afetado o ritmo escolar e dificultado o sono, trazendo  problemas de saúde associados.

“As pessoas teriam de se levantar e ainda havia estrelas no céu – o corpo precisa de luz para despertar, as crianças vão para a escola a dormir, há muitos problemas nas escolas. Já tivemos esse teste por quatro anos e os resultados foram muito negativos”, explica Rui Agostinho.

Esta experiência portuguesa serviu de exemplo, em dezembro de 2010, no parlamento britânico, quando se debateu a hipótese de se mudar para a hora da Europa central e adiantar uma hora aos seus relógios. Ideia que acabou por não avançar por se ter chegado à conclusão de que seriam mais os prejuízos do que os benefícios.

Brexit entre equinócios astronómicos e tradições europeias

Estas mudanças costumavam ocorrer nos equinócios, no fim de março e no fim de setembro – os dois dias do ano que têm a mesma duração de dia e de noite, quando o Sol está mais perto da zona equatorial do planeta, e daí o impacto com a mudança de hora ser menor. “Era uma tradição do continente europeu”, adianta Rui Agostinho.

Contudo, bem antes de haver consenso e CEE, cada país escolhia em que dia, semana ou hora, mudar o seu fuso. Com as mercadorias a circular cada vez mais além-fronteiras, esta logística era caótica. Acordaram-se dias e horas fixos para a mudança ocorrer ao mesmo tempo em todos os países da comunidade. Tudo certo sobre março e a hora de verão, mas pouco consenso com setembro e a hora de inverno. Os britânicos levaram a sua avante e, em 1995, atrasaram a mudança da hora de inverno para outubro.

“Segunda-feira, o choque vai ser muito grande"

"Nesta sexta-feira, uma pessoa termina o trabalho ou a escola às 17h30 e percebe que ainda tem luz, mas na segunda-feira vai estar escuro. E a pessoa pensa que a culpa está na mudança da hora e há este impacto negativo”, lamenta Rui Agostinho, que defende que a transição deve acontecer em setembro.

Com a saída do Reino Unido da União Europeia, foi já proposto pelo especialista português o regresso a setembro para a mudança da hora de inverno. “Temos sol até às 19h00, mas isto só deveria acontecer em dezembro. As tardes são estendidas, mas quem vai trabalhar cedo já está a fazer um acordar com pouca luz, o corpo não quer acordar.”

Admitindo que “é difícil arranjar um sistema comum a todos os países em que todos se sintam bem”, Rui Agostinho realça a importância na definição da hora legal “para que esta sirva o bem-estar das pessoas, sabendo que os países não vivem isolados e fazem trocas comerciais”.

E aponta a solução: “eu creio que o melhor para o espaço europeu era manter a liberdade para os países escolherem se queriam ou não ter a hora de verão. Os que quisessem entrariam na mesma hora e todos saíram na mesma hora. Isso permitiria a todos os milhões de pessoas que habitam no espaço europeu sentirem-se confortáveis”.

Canhões no Alfeite, cabos até ao Cais do Sodré e relógios atómicos na Caparica

A mudança de hora e o fuso em que estamos a viver são talvez as formas em que percebemos o impacto que a hora tem no nosso quotidiano. Na vida cívica e económica é a hora legal que rege toda a documentação transacionada – desde certidões, impostos, registos bancários, concursos públicos – e que estabelece os prazos reconhecidos por lei. Isto pode implicar milhões de euros num concurso público de uma obra ou falhar-se um prazo de entrada numa faculdade, por exemplo.

Sem grande precisão temporal, supõe-se que foi há cerca de quatro mil anos A.C que o tempo começou a ser medido quando alguém na Babilónia percebeu que o dia podia ser dividido em duas partes a partir do momento em que o sol estava ao alto sem projectar sombras. A partir daí, dividiram-se essas partes e criaram-se as horas.

Do astrolábio à ampulheta e muitos milhares de anos e de civilizações depois, foi inventado, no século XIV, o relógio de corda que, na altura, atrasava-se 15 minutos por dia. Os relógios individuais chegaram só dois séculos depois, mas, na tentativa de partilhar a hora, chegaram a ser lançados projéteis por canhões para assinalar as 13h00 em várias cidades europeias, incluindo Lisboa.

Com o objetivo de medir a hora e fazê-la chegar o mais certa possível a todos os pontos do país, foi criado em 1867 o Observatório Astronómico de Lisboa. Daí a haver cabos ligados ao Cais do Sodré ou à Base Naval de Lisboa, no Alfeite, foi um instante. Bip-bip e outros sinais mais modernos marcaram o ritmo na evolução até chegarmos ao relógio de quartzo. E depois, ao relógio atómico, que, em 1946, quando foi inventado, atrasava um segundo em 300 mil anos. Hoje, já existem relógios que poderiam funcionar 138 milhões de anos e nem um segundo se atrasariam.

Hoje, 142 anos depois, o Observatório de Lisboa ainda mantém a sua função. Podemos ter confortavelmente acesso à hora legal e à forma de acertar os nossos computadores da forma mais precisa neste link.

A responsabilidade sobre a medição do tempo partilha-se ainda com o Laboratório de Tempo e Frequência, do Instituto Português de Qualidade (IPQ), o organismo responsável por definir a unidade do segundo e que garante a rastreabilidade da Hora Legal, e onde estão os três relógios atómicos de Césio que ligam Portugal a um sistema internacional de medida do tempo.

É a partir da Caparica que estes equipamentos “são utilizadas para realizar a escala de referência nacional do tempo e os dados desta escala são diariamente enviados para o Bureau International des Poids et Mesures – BIPM (em Paris) para cálculo do UTC”, explica ao SAPO Carlos Pires, responsável por este laboratório do IPQ.

Relógio de Césio no Laboratório de Tempo e Frequência
Relógio de Césio no Laboratório de Tempo e Frequência créditos: Instituto Português da Qualidade

A escala é global e a precisão o Santo Graal. “Destes três relógios apenas um é considerado como referência. Os restantes são de backup e têm função de verificação, isto é, os três estão constantemente a ser comparados entre eles para verificar se estão a funcionar corretamente”, desenvolve Carlos Pires.

Nesta rede, existem em todo o mundo 400 relógios atómicos, que “pertencem a laboratórios nacionais de Metrologia ou a institutos designados para o domínio do tempo” e que enviam dados diariamente a este organismo sediado em Paris onde se calcula o Tempo Atómico Internacional.”

Depois, junta-se a entidade que mede a rotação da Terra (o IERS - International Earth Rotation and Reference Systems Service, também sediado em Paris) e calcula-se então o UTC: o Tempo Universal Coordenado.

Com tanta definição, deixámos para trás Greenwich. O GMT é trocado pelo UTC, em 1967, mas mais do que isso: altera-se também o paradigma da medição de tempo através do Sol e na rotação da Terra e, apesar de o movimento astronómico ter um papel no cálculo do tempo, hoje, no UTC, os relógios atómicos são as estrelas principais e os que nos podem levar mais além.

Do mar a Marte

E a ideia não é nova. Em outras épocas, foram os cronómetros triangulados com constelações que nos indicavam as posições no mar. Erros de minutos nestas contas podiam corresponder a milhas no mar e à diferença entre encontrar o destino ou a deriva.

Hoje, já se usam os relógios atómicos e outros sistemas nos satélites que nos permitem constantemente posicionar barcos, aviões e telemóveis – o GPS (Sistema de Posicionamento Global) – e a ideia para circular no Espaço é a mesma: calcular as distâncias através do tempo que demoram os sinais de um ponto ao outro. Só que para navegar no Espaço é necessária uma precisão muito maior.

Há sempre um desfasamento na comunicação e os sinais entre uma nave espacial e a Terra podem demorar até vinte minutos. Se no mar o erro da contagem de tempo poderia corresponder a um grande erro de localização, podemos imaginar as dificuldades para circular no espaço com um sistema de comunicação a funcionar a milhões de quilómetros de distância.

GIF NASA GIF NASA
créditos: NASA/JPL-Caltech

Com o objetivo de contornar este sistema, o Laboratório de Propulsão a Jato da NASA lançou em junho passado – e renovou este verão a missão até agosto de 2021 – um relógio atómico de alta precisão: o Deep Space Atomic Clock.

Segundo a agência espacial norte-americana, esta máquina é “dez vezes mais estável do que os relógios atómicos dos satélites usados para GPS.” A ideia é que este relógio seja 50 vezes mais estável do que os relógios atómicos atuais e que o próprio relógio consiga, com tanta definição, calcular automaticamente a sua velocidade e posição sem ter de receber tantas indicações e trocas de sinais com a Terra.

Neste momento, o relógio perde um segundo a cada dez milhões de anos. Esta maior precisão permite uma maior independência de cada nave na sua localização no Espaço e esta é sem dúvida uma das formas mais seguras de encontrar também o caminho para Marte… ou mais além. Isso, só o tempo o dirá.

Relógio Atómico
Relógio Atómico créditos: NASA