Não se trata de uma parteira ou de uma profissional de saúde, mas é alguém que acompanha de perto a gravidez e o parto, presta apoio emocional e informativo a uma grávida e à sua família. Pode ter um lado mais espiritual ou focar-se em questões científicas, não toma decisões, mas dá as ferramentas necessárias para que uma mulher possa tomar as melhores decisões para si.
Mariana Torres é médica e não hesita em salientar a importância do trabalho das doulas. “Eu sinto que as grávidas que têm este acompanhamento estão muito mais tranquilas e no dia do parto sinto que o meu trabalho como obstetra fica bastante mais facilitado. A evidência científica também mostra que existem várias vantagens.”
Alguns estudos citados na Rede Portuguesa de Doulas indicam a redução de cesarianas, a redução da duração do trabalho de parto e do uso de fórceps como algumas das vantagens. O aumento da taxa de amamentação e a diminuição dos índices de depressão pós-parto são outros dos resultados positivos deste acompanhamento.
A doula Cátia Fatana explica que há diferentes tipos de profissionais: “Há algumas que têm valências de massagem ou yoga, outras de desenvolvimento pessoal, há ainda psicólogas ou enfermeiras de obstetrícia.” “Existem mil tipos de doulas como existem mil tipos de grávidas”, complementa a obstetra Mariana Torres, também ela com esta formação, que, apesar de não a exercer para não comprometer as suas funções profissionais, achou “interessante conhecer essas ferramentas”.
Longe de conhecer esta temática e ainda com a maternidade a ser uma novidade, Sarah Pires movia-se num mundo de mulheres. Quando a professora de pole dance engravidou não faltaram amigas e alunas a darem indicações. “Pensava que não havia muitas maneiras de nascer”, conta. Depois, foi ficando a conhecer os conceitos de parto humanizado, a questionar obstetras e a pedir informações mais concretas e claras.
“Logo se vê”, “não se preocupe, disso trato eu” são exemplos de respostas em contexto clínico que não a deixaram satisfeita. Com a pandemia e o curso de pré-parto do SNS a ser feito via online, Sarah decidiu procurar uma doula: “É algo tão importante, eu queria um serviço mais pessoal e com mais contacto”.
Entre a Natureza e o Zoom na procura do contacto com distância
Quando procurou estes serviços, Sarah já tinha seis meses de gravidez e o país entrava na segunda vaga da COVID-19. O primeiro encontro entre o casal e a doula foi feito com máscara, mas, nas seguintes visitas, tanto em espaços ao ar livre como dentro de casa, as máscaras foram deixadas de parte. “Houve toque e técnicas de respiração e massagens. Houve muito contacto, mas eu quis isso e procurei isso, ainda mais numa altura em que não havia contacto”, explica.
Também Petra Vaz, grávida de oito meses e mãe de Rosa, de quase dois anos, decidiu ser acompanhada por uma doula em plena pandemia. Depois de um acompanhamento convencional na primeira gravidez, um parto que desiludiu os seus planos e o interesse pelos temas da maternidade, desta vez procurou um apoio mais íntimo. Explica: “A consciência da gravidez e do parto foi muito além da questão científica. Há muitas coisas que envolvem a gravidez e o pós-parto que não tinha presente e nem questionei muito. Mas agora queria algo mais espiritual, interno e feminino. Tem sobretudo que ver comigo enquanto mulher e não é só com um processo clínico acompanhado por um obstetra.”
Foi no pós-parto da primeira filha que Petra começou a interessar-se por estes temas, criou o Fala Aqui Mulher, uma conta no Instagram, e daí começou a contactar com outras mulheres interessadas sobre estas questões e a partilhar mais informação.
A primeira sessão foi feita por Zoom para dar a conhecer a dinâmica familiar, mas depois foram combinados encontros presenciais: “Para nós é importante a doula estar connosco para almoçar ou jantar. É importante haver essa partilha à mesa e com o casal. Como temos uma filha pequenina e no meio desta loucura, não tiramos as máscaras e fizemos tudo com distanciamento, para ninguém estar em risco. Eu estive em isolamento, depois ela também esteve e tivemos de ir gerindo.”
Este serviço é feito à medida da futura família. Há vários preços e combinações possíveis, podendo acordar-se o número de sessões ou só o acompanhamento durante o parto. O serviço mais comum inclui quatro ou cinco sessões durante a gravidez, o acompanhamento do parto e uma sessão durante pós-parto e custa em média 500 a 600 euros.
Cátia Fatana também teve de encontrar soluções para adaptar o seu trabalho: “Faço sessões ao ar livre, purifico o ar do estúdio, mantemos a distância, etc. Há pessoas que estão mais relaxadas com a pandemia e outras que têm muito medo. Eu dava um abraço às famílias e deixei de dar, mas continuo a fazer as massagens e outras terapias em segurança e com máscaras”, explica.
A médica obstetra Mariana Torres explica que “as pessoas têm medo da proximidade e do encontro”. Uma parte do trabalho das doulas passou para o online, “e como o trabalho da doula é um trabalho de toque, algumas pessoas estão reticentes a estar agora com esta pessoa”, acrescenta.
Seja ao ar livre ou nos meios virtuais, muitas fórmulas foram encontradas para adaptar este trabalho à pandemia, mas no início “notou-se muito desespero”. Cátia Fatana explica que “o medo de ir a um hospital levou a que muitas pessoas procurassem o parto domiciliar”. Atormentadas pela possibilidade de serem afastadas dos seus bebés, as pessoas tentaram várias soluções. Desfeitos mitos – como o de as doulas não fazerem procedimentos médicos –, um parto domiciliar tem de ser planeado com muito tempo e devem ser garantidas condições médicas e de segurança, bem como a contratação de profissionais de saúde para este efeito.
As restrições e os direitos: como a pandemia limitou o direito a acompanhante
Se todas as gestações são únicas, uma pandemia pelo meio acentua as diferenças. Para Petra a principal tem sido não ter o parceiro nas consultas. “O primeiro trimestre é estranho, descobri que estava grávida com cinco semanas e a primeira ecografia é feita às 12. É muito tempo. Nesses dois meses não há barriga, não se sabe se está vivo ou não, se há algum problema. É um momento de tensão e senti muita falta do meu companheiro nessa primeira ecografia.”
A 17 julho de 2019 foi aprovada a lei que dá às grávidas o direito de indicar até três pessoas para a acompanhar alternadamente na sala de partos. “Mas já antes da pandemia muitos lugares nem permitiam o acesso a duas pessoas nem que houvesse trocas. Hoje em dia, nem o acompanhante consegue ter garantias que pode estar do início ao fim, os hospitais estão a limitar muito”, conta a obstetra.
Mariana Torres explica que “em Portugal não é reconhecido que a doula é uma peça fundamental no parto e que conta como acompanhante”, mas dá o exemplo do Brasil, onde há uns anos houve um movimento e agora as doulas têm o direito a estar presentes na sala de partos. “Pode ser que um dia exista também cá esse direito”, adianta a obstetra.
Com muito do seu trabalho a transitar para o online e outras atividades canceladas, a doula Cátia Fatana conseguiu ainda acompanhar alguns partos, porque a Rede Portuguesa de Doulas lhe deu uma declaração para se poder deslocar, "mas apenas ao domícilio, depois deixava-as à porta da maternidade". “Numa altura tão vulnerável, é importante para as mulheres terem alguém só disponível para ela”, reforça. “As enfermeiras e obstetras não conseguem dar a mesma atenção, nem é essa a sua função, e mesmo os pais só conseguem acompanhar alguns partos porque a direção do hospital ou equipas nem sempre deixam.”
No caso de Petra, a última sessão com a sua doula será duas ou três semanas antes do parto, mas “num cenário não pandémico ela entraria na sala de parto”. Explica que pode estar em videochamada e que isso pode ser uma ajuda, além de poder acompanhar o processo inicial em casa com o casal e depois contactar com o obstetra e encaminhar o casal para o hospital.
Petra e o seu companheiro já trataram das diligências para terem os resultados dos testes à COVID-19 prontos a tempo para poderem entrar juntos no momento do parto. Para ela, é fundamental é tê-lo perto e participativo e muito do trabalho e isto mostra a importância do trabalho da doula ser feito em casal ou com a pessoa que acompanha a grávida. "Independentemente da pandemia e de a doula poder estar presente, eu iria querer que fosse o meu companheiro a aplicar muitas das técnicas de massagem de alívio de dor, por exemplo", explica.
"Acho que o papel do homem durante a gravidez e o parto tem de ser um misto entre o que ele está disposto a dar, a contribuir e a aprender e ao mesmo tempo tem de respeitar e estar disponível para o que a companheira quer – muitas mulheres não querem os parceiros perto nesta altura e isso também deve ser respeitado", esclarece Petra.
Sarah explica que "muitas vezes a doula faz equipa com o pai" e que todas as conversas foram sempre a três. "Ela explica-nos todo o processo fisiológico, a reconhecer em que estado do parto estamos, o que o pai pode fazer, as posições de conforto. Falámos todos do plano de parto e, para mim, ele era também uma garantia de que tudo o que eu queria iria ser respeitado."
O parto positivo – “Foi um momento muito bonito e íntimo”
Olívia, a filha de Sarah, nasceu a 17 de dezembro de 2020. A recém-mãe recorda este dia e o anterior, quando começou o trabalho de parto, com muita alegria. “Percebi que ia ser naquele dia, a minha doula disse que se não estivesse cansada podia ir andar e fomos passear na falésia e ver o mar, foi muito bom estar na natureza, mesmo com contrações. Depois, ficámos os três em casa durante a tarde e a noite, só eu, o meu companheiro e a doula. Tínhamos música, comemos, dançamos. Foram seguindo as contrações e ajudando-me com a dor, depois ela contactou o obstetra e na hora certa levou-nos para o hospital.
“Todo esse tempo em casa foi ótimo, ríamos, falávamos, ouvimos música... Fui para o hospital muito serena e feliz pelo que ia acontecer. Foi um bom momento.”
“Estava eu e o meu companheiro numa sala com luz baixa e com a nossa música. Optei por um parto fisiológico – sem recurso a fármacos – e apenas vinham ao nosso quarto quando pedíamos. O pai é super importante porque o amor e o carinho acabam por fazer o efeito da epidural", conta Sarah.
“No final da dilatação, a enfermeira chamou o obstetra e fomos para o bloco. Tinha tudo: um colchão no chão, um banco de parto, uma cama tradicional, tive a liberdade de movimentos para escolher onde me sentia mais confortável e o obstetra veio atrás de mim. Foi tudo muito íntimo e bonito.”
Neste relato, não esconde as dores por que passou, mas dele sobressai a voz de uma mulher que se diz empoderada e satisfeita quando se recorda deste momento. “O pós-parto é difícil e nem imagino ter ainda de gerir algo traumatizante”, refere.
Mariana Torres recorda que infelizmente há a ideia de que o parto é um mal necessário para se ter um filho, mas relembra que este pode ser um momento que se aguarda com entusiasmo. “É normal o nervoso miudinho e é preciso saber que não é um evento cor-de-rosa e que é desafiante, mas pode ser bastante positivo e até dar vontade de repetir.”
A grávida com o poder de decidir sobre o seu corpo
A lei de julho de 2019 citada anteriormente prevê ainda que “o apoio à grávida ou ao casal deve incluir a preparação de um plano de nascimento, a completar até às 32 semanas de gravidez, a discutir com profissionais de saúde.
Os cursos de preparação para o parto oferecidos pelo SNS têm conteúdos práticos e teóricos definidos pela DGS e contam com uma equipa multidisciplinar. Devem ainda contemplar a realização de uma visita ao local onde se prevê que seja feito o parto.
Além de ser uma forma de comunicar aos profissionais de saúde as suas vontades e assim haver mais hipótese de se realizar um parto dentro das suas expectativas, Mariana Torres destaca que “isto também obriga as grávidas a procurarem mais informação e a confrontarem-se com as opções". "É muito importante este caminho e a Organização Mundial de Saúde (OMS) revela que o envolvimento nas tomadas de decisão contribui para o parto mais positivo. Eu acho que há o direito e o dever de se envolverem nas decisões”, sublinha a obstetra.
Tanto Sarah como Petra estão na mesma linha de pensamento. A primeira revela: “Nós é que fazemos o parto e temos de poder decidir o que queremos e o que não queremos”. A segunda acrescenta: “Os médicos devem perder alguma arrogância e deixar de olhar para nós como colaboradoras. Quem colabora é o médico, quem faz o parto é a mulher.”
Esta é uma atitude que reflecte alguma parte da relação com as doulas. Para Sarah foi fundamental esta mensagem de confiança, de poder e propriedade sobre o seu corpo, e Petra explica: “A doula ajuda muito nesse processo de consciência da nossa voz, não temos de aceitar tudo sem questionar, este empoderamento é um grande trabalho da doula, que apoia emocionalmente e não desvaloriza as preocupações, num trabalho muito complementar com o obstetra.”
Em fevereiro de 2018, este poder da mulher foi reforçado pela OMS ao salientar a necessidade de “respeito pelas opções e tomada de decisão da mulher na gestão da sua dor e nas posições escolhidas durante o trabalho de parto”, mas há ainda muitos exemplos em que os hábitos parecem prevalecer.
É também neste documento que a OMS desaconselha a episiotomia, mas o corte cirúrgico do períneo continua a ser uma prática rotineira nos hospitais portugueses.
Portugal é o segundo país da União Europeia com a taxa mais alta desta prática, a ocorrer em 73% dos partos vaginais, segundo o Relatório Primavera 2018 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde.
Mesmo antes de o procedimento ser desaconselhado, a recomendação era para que a taxa se situasse entre os 10% e os 15%. Na Dinamarca esta prática só se verifica em 3,7% dos partos e em Chipre, o país com a taxa mais alta da UE, ocorre em 75% das vezes.
A falta de tempo é um dos pontos referidos pela doula Cátia Fatana como uma das causas de uma excessiva medicalização nos partos. "Ninguém tem tempo, se for no público, há muitas pacientes para poucos médicos; no privado, quanto mais tempo uma mulher está em trabalho de parto, mais dispendioso fica para o meio hospitalar. Esta indústria do parto retirou o direito a escolhas básicas."
A humanização do parto pede uma urgência “na humanização dos médicos, enfermeiros, auxiliares”. “É preciso acabar com discursos como ‘não gritou quando o estava a fazer’, ‘aqui quem manda sou eu’, como continua a acontecer nos quartos de grávidas, seja no público ou no privado, há coisas que têm de deixar de existir”, afirma convictamente Petra.
Entre o feminismo e os hábitos instalados
Sarah concorda que muito há a fazer e gostava que a forma como ela viveu o parto e como sentiu que as pessoas envolvidas respeitavam as suas preferências fosse algo mais normal. Afirma que as “doulas ajudam muito a que as coisas corram bem”. Com novas leis e muitos hospitais públicos e privados alinhados neste sentido, o processo é lento mas está a ser feito.
Petra não tem dúvidas de que “estes temas estão muito relacionados com o feminismo e com a mulher ser vista com voz e cabeça, a responsabilidade é muito grande e é difícil questionar o que um médico diz”. Cátia Fatana concorda e adianta que, além de "faltar empatia a alguns profissionais de saúde no sentido de se colocarem lado a lado com as mulheres e saírem de um papel paternalista", também é preciso que as mulheres percam o medo de reivindicar os seus direitos.
A par disto, as mudanças geracionais são importantes para se perceber que se pode fazer diferente. Quem o afirma é Mariana Torres, que, confiante na mudança, também se junta para a apressar: "Eu só vou ficar satisfeita quando as raparigas crescerem a ouvir falar em experiências positivas de parto porque isso vai mudar completamente a experiência delas.”