A 12 de outubro de 2020, todo o concelho de Mértola, composto por cerca de 100 localidades, registava apenas 5 casos ativos de COVID-19, enquanto o país entrava numa espiral ascendente de infetados e óbitos causados pelo vírus. Até esta data, e desde o início da pandemia, o concelho contabilizava somente 16 casos positivos, sendo que 11 já tinham sido declarados recuperados.
Cerca de dois meses depois a situação mudou drasticamente de figura. Um surto com 21 utentes e 11 funcionários infetados pelo SARS-Cov-2 foi detetado a 18 de dezembro no lar de idosos da Santa Casa da Misericórdia de Mértola. A “situação está descontrolada”, foi assim que José Alberto Rosa, provedor da instituição, descreveu o momento ao meio local Diário do Alentejo.
Ao todo, foram infetadas 109 pessoas na instituição, das quais 40 funcionários e 69 utentes. Dos idosos, 24 acabaram por perder a vida, mas “três deles devido a patologias não COVID-19”, esclareceu mais tarde José Alberto Rosa. O surto no Lar da Misericórdia de Mértola foi dado como "encerrado" a 29 de janeiro. No entanto "desenvolveu várias linhas de contaminação que geraram diversas situações um pouco por todo o concelho", revelou ao SAPO Jorge Rosa, presidente da Câmara Municipal.
Este concelho do Baixo Alentejo, que durante tantos meses se manteve quase imune ao vírus, foi "invadido" e rapidamente saltou para o topo dos níveis de risco definidos pelo Governo. De verde passou a vermelho forte e assim integrou, a determinado momento, a lista de concelhos em Risco Extremamente Elevado.
"Durante os primeiros meses, no início da pandemia, acho que as pessoas não tinham noção da realidade e não acreditavam na gravidade da situação e que o vírus iria cá chegar", confessa Ana Patrícia Candeias, de 39 anos, funcionária da autarquia local. "Entretanto, desde novembro até agora e depois de se começarem a conhecer pessoas próximas e até familiares que estavam infetadas, muitas delas doentes e que estiveram e ainda estão internadas, outras mais idosas que vieram a falecer, acho que começaram a ter mais cuidado, resguardaram-se mais em casa e começaram a cumprir as medidas de proteção".
Mário Tomé, responsável pelos pelouros da Proteção Civil e Área Social na Câmara Municipal de Mértola, explicou ao SAPO que “a imprevisibilidade do vírus, aliado a uma conjetura absolutamente desconhecida para todos, e sobretudo a confirmação de que estávamos perante algo de escala global, afetou desde a dimensão populacional mais macro ao mais profundo recanto habitacional que pudesse existir. Neste caso, nem nós conseguimos ser a exceção pela positiva que tantas vezes e em tantas variáveis da sociedade conseguimos ser", indicou.
Uma aldeia sem casos
O concelho de Mértola ocupa uma área total de 1292 km2. Tem uma população dispersa e uma densidade populacional muito baixa que "contribuiu, sem dúvida, para que algumas das aldeias e montes, alguns com poucos moradores, na sua maioria com idade bastante avançada que não têm qualquer contacto com o "exterior", continuem sem registo de casos de infeção", explica Mário Tomé.
Joana Costa, de 14 anos, vive em João Serra, um monte bastante despovoado com uma população envelhecida. Até à data não há casos de infeção por coronavírus identificados mas mesmo assim a jovem sabe que há uma grande preocupação por parte de todos. "Nesta fase pandémica, sentiu-se que as pessoas começaram a viver angustiadas e com receio, visto que a população é maioritariamente idosa. A preocupação de apanhar o vírus é grande, uma vez que pode ser fatal. Os cuidados que temos são os recomendados pela DGS: não há convívios, não se fazem aglomerados nas ruas, toda a gente usa máscara, nas compras locais as pessoas distanciam-se e começou a evitar-se as saídas de casa", explica.
Também os pais de Jorge Rosa e de Ana Patrícia vivem nesta pequena localidade. "Felizmente à João Serra o vírus ainda não chegou, mas na aldeia muito próxima (que fica apenas a cerca de 3,5km), local frequentado diariamente por alguns dos habitantes do nosso monte, houve um surto recentemente. Algumas pessoas já estão recuperadas mas continua a haver casos ainda muito graves e pessoas que continuam internadas. Por isso acho que só não chegou lá por muita sorte!", revela Ana Patrícia.
Sorte ou não, facto é que mesmo em nível de risco extremo, esta e outras aldeias do concelho conseguiram escapar até ao dia de hoje sem qualquer caso registado. "Somos um concelho de baixa densidade populacional, com elevada dispersão geográfica, e onde as pessoas têm cumprido as normas. Obviamente que não havendo locais de grandes concentrações de pessoas, como centros comerciais, mercados, etc., isso ajuda muito a evitar os surtos", explica o presidente da Câmara Municipal.
Em relação aos seus pais, Jorge Rosa incentiva-os "a terem todos os cuidados, como de resto a todos os munícipes. Mas este tipo de pessoas, que estão sempre em casa, e que vêem muita televisão, levam a toda a hora com notícias péssimas e ficam extremamente receosas, até ansiosas, por saírem à rua. Isto tem um impacto também muito negativo a este nível, da socialização que falta, e que leva à solidão".
Mas nem só os mais velhos sofrem com o isolamento. Apesar de viver numa aldeia sem jovens da mesma idade, Joana nunca teve problemas de socialização na escola e, até ao vírus chegar, sempre se sentiu acompanhada. "O último ano foi bastante desafiante! O mais difícil foi não poder abraçar a minha família, não poder estar com os meus amigos, estar fechada em casa sem saber até quando e ter aulas através de um ecrã. No meio de tudo isto não houve nada que não me custasse, porque privarmo-nos de estar com quem gostamos já é um contributo para afetar o nosso estado psicológico".
"Privarmo-nos de estar com quem gostamos já é um contributo para afetar o nosso estado psicológico"
Com vista a minimizar este afastamento agravado pela pandemia, o Município de Mértola lançou o projeto “Não Saia de Casa, Nós Vamos Até Si!”, melhorando a prestação de Cuidados de Apoio Domiciliário por parte de uma equipa especializada de auxiliares de geriatria. Foram contratados para prestar cuidados de higiene e monitorizar o estado de saúde de pessoas com diagnóstico positivo de COVID-19 que estejam dependentes do cuidado de terceiros.
Mário Tomé garante que a autarquia está “atenta a estes habitantes, proporcionando uma resposta rápida, e muito eficaz, de modo a que sempre que necessitem de bens alimentares e/ou medicamentos estes lhes sejam entregues com a máxima segurança e com mínima exposição ao risco de contágio”.
No entanto, o facto de viverem mais isolados também tem algumas vantagens. "O que menos me custou foi a parte de passar mais tempo em casa", diz Ana Patrícia. "Vivo praticamente no campo onde podemos apanhar ar puro sem ter de sair do quintal. Mas tenho muitas saudades de passear, ir às compras em grandes superfícies comerciais, jantar fora…"
A inquietação constante perante este cenário é que não tem limites geográficos. Vários familiares próximos da mertolense são profissionais de saúde que têm estado desde o início da pandemia na linha da frente. "Tem sido muito desgastante para eles, mas também para mim e para os restantes membros da família". Longe ou perto, "têm sido tempos muito preocupantes", confessa.
Os desafios, um ano depois
Para Joana o maior desafio tem sido, sem dúvida, a escola online. "Ter o nosso professor/a no ecrã, não conseguir esclarecer dúvidas, tornou-se um processo de adaptação e aprendizagem. Apesar de ter todas as condições, sei que nem todas as pessoas as conseguem ter. Dentro da minha turma às vezes temos falhas de Internet e existem alunos que têm computador emprestado pela Câmara Municipal e também pela escola".
Um ano depois de a COVID-19 ter entrado em Portugal, o cansaço de todos é visível. "Nos próximos tempos espero que os casos diários diminuam e que aos poucos e poucos voltemos à normalidade. Anseio pelo momento de abraçar os meus avós maternos, abraçar os meus amigos e conseguir viajar", desabafa Joana.
A vacinação no concelho de Mértola começou a 14 de janeiro e um dos maiores desejos de Ana Patrícia é que todos recebam a vacina o mais depressa possível. "Espero que os próximos tempos sejam tempos de mudança e que possamos voltar ao nosso quotidiano. Acredito que sim!"
“Todo este processo foi e continua a ser vivido com uma grande tensão e com receio pelo futuro de todos nós”
“Todo este processo foi e continua a ser vivido com uma grande tensão e com receio pelo futuro de todos nós”, conta o vereador Mário Tomé. “Mas a vida em muitos momentos não se compadece com sentimentalismos, com medos”, afirma com determinação,”e este processo da pandemia, com o desafio enorme com que todos nos deparámos, só podia ser vivido com coragem, com demonstrações claras de que só uma reação imediata e concertada de toda a sociedade podia atenuar um impacto que infelizmente se percebia ser impossível de evitar na totalidade”.
Tal como as sequelas que o vírus deixa no corpo de muitos que o apanharam também o país no geral, e Mértola em particular, vão ficar com marcas profundas "sobretudo nas famílias que perderam entes queridos, mas também na nossa forma de conviver, que era muito próxima, e que nunca mais será assim". E mesmo com os casos a descer, Jorge Rosa partilha os seus receios: “Vamos estar sempre desconfiados uns dos outros, pois esta COVID veio para ficar.”