Em Portugal, várias instituições de ensino superior oferecem pós-graduações em comunicação e marketing político, alimentando depois as equipas que assessoram os políticos na forma como comunicam. A ideia passa por avaliar e implementar de forma estratégica um conjunto de ações e formas de comunicação política. Foi o que fez, por exemplo, o publicitário brasileiro Edson Athayde para a campanha de António Guterres às eleições legislativas de 1995, ajudando o candidato do PS a colocar um ponto final a dez anos de governo sob a égide do primeiro-ministro Cavaco Silva. Em 2002, quando Durão Barroso (PSD) sucedeu a Guterres, uma das suas armas foi outro publicitário e especialista em marketing político, neste caso o também brasileiro Einhart da Paz.
Não obstante, nenhum destes dois estrategas de comunicação tinha no seu currículo qualquer formação em etologia, a ciência que estuda o comportamento dos animais, incluindo o dos seres humanos. Apesar de ser uma área de estudo com origem no século XIX, até à década de 1980 os seus investigadores ainda evitavam intersectar o que sabiam e estudavam com o campo da política, com receio de que as suas teorias ou conclusões fossem politizadas e gerassem polémica.
Só nas últimas décadas é que a etologia escapou a estas amarras e se expandiu e influenciou outras áreas, como a psicologia e o estudo da comunicação não verbal – do qual faz parte a linguagem corporal.
Pedimos a Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva, professor e investigador na área da etologia pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, que analisasse as expressões não verbais que caracterizam os líderes políticos dos partidos representados na Assembleia da República, os mesmos que irão disputar as eleições legislativas a 30 de janeiro de 2022, assim como do atual Presidente da República. Pelo meio, também quisemos saber de que forma os tipos de linguagem que exibem podem, ou não, ser uma vantagem.
Antes de mais, um aviso: “Fazer uma descodificação não verbal, de forma séria, demora uma eternidade”, pelo que esta análise, apesar de ser feita com base em vários vídeos e em diferentes contextos – incluem-se entrevistas, debates e discursos feitos em comícios, congressos de partido e no Parlamento –, terá sempre de ser considerada “superficial”, explica Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva.
Mais. “Quem disser que se consegue tirar o significado de uma intervenção apenas pela não verbalidade não está a ser honesto. É verdade que a não verbalidade explica a maior parte do efeito de um candidato; é até verdade que, por exemplo, numa entrevista de clínica psicológica se pode fazer juízos acertados sobre o tipo de queixas com base apenas nas imagens. Mas nos discursos políticos, que tocam sempre em vários temas, teremos sempre de ter em conta o que é dito. E, além disso, temos de tomar em conta o programa do partido e o eleitorado potencial do político.”
António Costa (PS e primeiro-ministro em funções)
“Não considero António Costa bom num frente-a-frente; tampouco o acho muito bom em entrevistas ou, menos ainda, um bom orador. Nas entrevistas e no frente-a-frente perde o ar que cultiva, de bonomia, e revela uma forte tensão, que pode ser interpretada mesmo como hostilidade (revela-se sobretudo na boca, reduzida a um fio, no olhar fixo, na musculatura rígida).”
“Nos debates parlamentares, quando encurralado, reage com uma agressividade (tom de voz, posição de corpo e expressão facial de pura agressão) que creio estar fora do aceitável para os indecisos de que Costa precisa.”
“Mas tem força: a voz grave, o ar seguro de si (posição relaxada, mas elocução afirmativa), um certo à-vontade (um pouco como, mas nada que se compare, com Mário Soares, que era mestre nisso) dão-lhe um ar de confiança segura que, aliada ao facto de estar no poder, o beneficia. Essa força ajudá-lo-á dada a dificuldade do período que atravessamos, já que se escolhem chefes fortes em períodos difíceis.”
“Outra coisa que o caracteriza é uma grande variedade de expressões; mas não nos debates, em que é significativamente mais rígido.”
Ainda segundo a análise de Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva, dado que o atual primeiro-ministro fica a “perder quando é agressivo“, nomeadamente quando se sente “encurralado” nos debates parlamentares, é expectável que até ao dia das eleições legislativas essa faceta não se revele, pois António Costa “precisa quer da esquerda quer da direita se quiser sobreviver” enquanto líder do Governo.
Rui Rio (PSD)
No que se refere ao PSD, o etólogo considera que o partido consegue vencer eleições “com chefes que prometem um retorno à ordem”, líderes políticos que são “carismáticos, severos, pregnantes [causam uma forte impressão], afirmativos, fortes, rigorosos”, dando os exemplos de Francisco de Sá Carneiro, Cavaco Silva e Passos Coelho.
“Nada disto caracteriza Rui Rio (tampouco Paulo Rangel) que, pelo contrário, brinca demais e que quando se indigna o mostra com demasiada franqueza, além de não revelar um conhecimento detalhado dos temas.”
“Transmite uma imagem de sinceridade, tanto mais que, de todos os políticos que observei é, de longe, o menos construído em termos de imagem pública, mas não cultiva o que neste momento seria necessário, que é a precisão de gestos, de discurso, as frases curtas e definitivas, e uma seriedade geral que é justificada pela situação presente”, opina Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva.
Catarina Martins (Bloco de Esquerda)
No caso da líder do Bloco de Esquerda, a sua opinião é a de que “tem de se considerar a sua aparência física, que é redonda e suave, e mesmo a aparência social – parece uma «pequeno-burguesa» –, além do seu comportamento e da sua voz, que é, creio, um soprano doce”. Isto porque, na visão do professor da Universidade de Lisboa, a mensagem política do Bloco de Esquerda é “muito radical” e ela está em “completa contradição com a não verbalidade” de Catarina Martins.
“De início o contraste era muito visível, tanto mais que apresentava uma não verbalidade justificativa, apologética – em suma, uma imagem fraca. Com o tempo, Catarina Martins conseguiu uma não verbalidade mais afirmada: gestos mais firmes, embora ainda com demasiados apontadores (isto é, ilustradores de discurso) pouco definidos e marcadores com as mãos, muito pequenas, abertas, que são ineficazes e dão um sinal de fraqueza. Mas a voz ficou mais firme, a elocução, que foi sempre precisa, tornou-se mais pregnante, a expressão facial mais móvel e, fenómeno curioso, a própria pronúncia, de início bastante precisa, se tornou, por vezes, mais popular.”
Jerónimo de Sousa (PCP)
“Foi o político que mais me surpreendeu. Cultiva vários registos, sendo os mais nítidos os da piedade, da indignação e da condenação.”
“A piedade aparece sempre que fala das classes laboriosas: eleva a voz, como se comovido, as sobrancelhas unem-se-lhe altas, aparece-lhe ou um sorriso triste ou um descair de lábios, inclinando-se para a frente. Mas transita com toda a facilidade para o registo da seriedade justiceira: corpo direito, cabeça ereta, sobrancelhas unidas severamente, lábios mais comprimidos, voz mais grave.”
Para Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva, dos nove políticos que o SAPO pediu que analisasse, a nível de comunicação não verbal, o líder do PCP “é o que melhor sabe ilustrar a condenação, com voz grave e frases curtas”. E, “sem violência, mas com firmeza, baixa a mão, de palma aberta, sobre a mesa, mostrando que o assunto está arrumado e que a condenação é sem apelo, indiscutível”.
“Tem uma pronúncia popular, mas usa-a de maneira curiosa e muito eficaz: rola os «r» brandos mais do que é habitual; mas há uma palavra em que o faz mais do que em qualquer outra: «goverrrno», o que imediatamente dá a ideia de uma entidade predatória.”
“No caso deste político tenho de considerar o físico, sempre importante, mas que não se destaca em nenhum dos outros candidatos homens analisados: tem uma face perfeitamente proporcionada, extremamente viril, de «homem de confiança». Além disso, revela, discretamente, as suas origens proletárias.”
Francisco Rodrigues dos Santos (CDS-PP)
“Apresenta uma novidade no CDS: a mensagem parece ser a de um verdadeiro conservador (o que Paulo Portas, por exemplo, nunca foi). Mas é novo demais, comunica mal, parece um «garoto» a fingir-se crescido e é pouco carismático.”
“Quando falou depois de vencer o Congresso [em janeiro de 2020] esteve no seu melhor: afirmado, frases precisas e curtas, pregnantes. Mas quando mostra esta imagem está a ler [o discurso]. Quando improvisa o desempenho deteriora-se: gestos mais vagos, expressão facial muito variável (perde a gravitas conservadora), frases muito mais longas.”
Apesar de identificar estas características no líder do CDS, Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva frisa que “ainda assim é convincente”, mas que “nas entrevistas é muito irregular.”
“Além disso, os seus gestos nunca não precisos. Usa principalmente dois tipos: marcadores – isto é, acentuações rítmicas do discurso – e uma expansão de braços vaga, usando aquilo a que se chama «o gesto de contentor» (como se tivesse uma coisa à sua frente e a quisesse agarrar) quando se refere a um problema concreto. Não há gestos firmes.”
Expressões não verbais que não o beneficiam, acredita o etólogo, pois “ser vago, em política, nunca é bom”.
“Mais. Quando condena eleva o tom: isto é, a voz fica mais aguda. Ora, para mostrar segurança quando se condena deve-se baixar a voz em tom de quem termina o juízo; elevá-la fá-lo parecer inseguro, como que esperando, ao falar mais agudo, convencer, quando deveria apresentar a condenação como absoluta e indiscutível. Tem uma grande mobilidade facial, o que poderia ser bom, mas não indicia segurança.”
Contudo, também constata em Rodrigues dos Santos “algumas expressões que são positivamente estranhas: franzir muito a testa, elevar muito as sobrancelhas, abrir muito os olhos (tudo coisas que o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa também faz, mas de outra maneira)". Em suma: “a ideia deve ser a de tentar convencer, o problema é que se nota precisamente isso, e um político conservador, penso eu, deve ser seguro, não um vendedor de propostas.”
Inês Sousa Real (PAN)
“Mais uma vez, a aparência física e a voz têm de se considerar: fácies redondo, sorriso simpático (nem todos os sorrisos o são: basta lembrar Álvaro Cunhal ou Cavaco Silva), voz doce.”
“Contudo, quando defende os pontos mais agressivos do seu programa fica transformada”, menciona Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva, isto porque, na sua opinião, o PAN tem muitos pontos programáticos de extrema-esquerda. É ao defendê-los que, frisa, se dá uma alteração: “a voz salta-lhe de oitava, fica destimbrada, os gestos são estereotipados e, no geral, o efeito é ao mesmo tempo paradoxal e pouco convincente, dado que parece zangada mas impotente, e a zanga [o sentimento de zanga], quando ocorre em política tem de ser acompanhada por uma demonstração de força – Sá Carneiro era o maior especialista desta técnica, o que justifica o seu carisma”.
André Ventura (Chega)
“Também ele é completamente diferente em entrevista, em discurso ou em debate. Dos mais complexos de analisar”, destaca Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva.
“Emotivo (com muita mobilidade geral); muita variação de expressões faciais; curiosamente a voz é monótona, mas a cadência não o é. Tem gestos bem marcados, que podem ser violentos, [funcionando como] marcadores de discurso eficazes porque o tornam mais pregnante.”
“A pregnância é fundamental para um chefe radical ou em momentos de grande perigo: juntamente com a autoconfiança e a força, são o que determina o carisma.”
Outros pormenores do líder populista do Chega? Recorre à «personagem» de “vítima heroica e vingadora”, algo visível ao “elevar as sobrancelhas e uni-las quando se refere ao que considera ser perseguições ao seu partido”, usando um “tom de voz a cair, mas que é firme na denúncia, com frases bem marcadas e cadenciadas quando faz uma condenação”.
A isto junta-se uma expressividade “popular”, devido à sua “maneira de falar, especto e pronúncia”, além de que, adianta o etólogo, André Ventura “transmite uma sensação de dinamismo, ainda que não de força”, com “mobilidade corporal, de expressão, rapidez, intensidade e pregnância dos gestos”.
João Cotrim de Figueiredo (Iniciativa Liberal)
“Ausência de expressão, poucos gestos, pouca ou nenhuma variação de timbre, sobrolho quase sempre baixo (o que significa que não pretende convencer, mas afirmar). As frases nem sempre são curtas, mas a elocução é cuidada, a pronúncia boa, e as explicações são claríssimas. Diria estar perfeito para o eleitorado liberal.”
Marcelo Rebelo de Sousa (Presidente da República)
“É um comunicador excecional. Talvez a característica mais marcante seja – e nota-se isso na televisão – que quando fixa a pessoa com quem está a falar parece que apenas ela existe para ele. Tem um contacto próximo, toca fisicamente as pessoas com quem fala, inclina-se para ela, criando uma sensação de intimidade, de segredo, com o interlocutor. Em televisão isso nem sempre se consegue.”
“Diria que tem dois registos diferentes. O primeiro é o da proximidade, da intimidade, da empatia, que consegue pelos meios que referi acima. O outro, necessário à figura de presidente da república, é um registo mais sereno, mais formal, mas que, dado o modo dominante que utiliza, se torna menos convincente por com ele entrar em contradição.”
“Pode não ganhar debates com adversários muito pregnantes e acutilantes precisamente por cultivar demasiado o registo da simpatia: um exemplo claro foi o debate presidencial com António Nóvoa [em janeiro de 2016] que, por pouco, não virou o resultado eleitoral. Ainda assim, a sua não verbalidade adequa-se perfeitamente ao papel de pacificador político que escolheu.”
O dia em em que a descontração de Mário Soares o ajudou a vencer o debate presidencial contra o "crispado" e "inseguro" Freitas do Amaral
Aqui chegados, sobra uma questão de fundo: será que este tipo de expressões não verbais conseguem mesmo influenciar o eleitorado, em menor ou maior grau? E há algum exemplo na política portuguesa que possa sugerir uma resposta positiva à pergunta? Recuemos algumas décadas.
Foi a 4 de fevereiro de 1986, durante o debate televisivo da segunda volta das eleições presidenciais desse ano, que se definiu a histórica vitória de Mário Soares sobre Diogo Freitas do Amaral. Quem o diz é Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva, apontando o dedo a uma expressão não verbal que terá condenado à derrota o candidato apoiado pelos partidos mais à direita.
“O Freitas do Amaral, nesse debate, esteve constantemente com um ar crispado, visível nos olhos, e perdeu por causa disso. Não tenho dúvidas. O Mário Soares fez uma campanha fenomenal, mas o Freitas do Amaral tinha tudo para ganhar. Ele conseguiu perder por causa daquela crispação, que fez parecer que não estava seguro de si. Não sou a única pessoa a julgar isso. Se revirmos as imagens desse debate dá para reparar que Soares estava quase sempre assim na cadeira [encosta todo o torso para trás, apoiado de forma descontraída nas espaldas da cadeira, transmitindo uma expressão de serenidade e tranquilidade]. Mesmo que as pessoas não tivessem percebido o que ali tinha sido falado elas achavam que o debate tinha corrido mal ao Freitas do Amaral. E correu mal porque ele não estava seguro.”
Há que recordar que na primeira volta das Presidenciais desse ano, a 26 de janeiro, Soares ficou bastante atrás de Freitas do Amaral, com um fosso de quase 1,2 milhões de votos. Somente um mês depois, e quase duas semanas após o segundo debate, deu-se o volte-face total nas urnas de voto, com o candidato socialista a ganhar à tangente, por uma margem inferior a 140 mil votos. Apesar de Soares ter recebido o apoio dos candidatos da esquerda que ficaram para trás na primeira volta, esta foi uma vitória que muitos, à época, consideraram inesperada. Os motivos para este resultado ainda hoje são complexos de analisar, mas não há dúvida de que se estava face a dois candidatos bastante diferentes na forma de comunicar com o eleitorado, incluindo ao nível das expressões não verbais que usavam.