Tudo começa pela comunicação da má notícia. Uma chamada telefónica, uma entrada silenciosa na assoalhada ou no corredor de hospital, um olhar pesaroso e as palavras que ninguém quer ouvir entram como farpas. “A sensação que se tem é que se perde o chão. Perde-se a sua referência e naquele momento nada faz sentido”, começa por explicar Cristina Felizardo, conselheira de luto.
O luto pode ou não estar relacionado com a morte, trata-se de um processo natural e inerente à vida que decorre de uma perda significativa. “As perdas dividem-se em duas categorias: real, por morte, ou simbólica, que é uma perda de expectativa. Como acontece com um divórcio; a perda de um amigo (seja por afastamento ou por imigração); a perda gestacional; a desvalorização social em caso de desemprego. Pode até mesmo ser um dano de amor-próprio na amputação de membros, como uma mastectomia, que altera aquilo que é o nosso autoconceito”, esclarece Cristina.
A especialista em aconselhamento de luto começa também por alertar que, por muito que queiramos fugir do tema, “o que a literatura nos diz é que todo o ser humano vai viver um processo de luto pelo menos uma vez na vida”, explica. “E sabemos que por norma vivemos cerca de 30 a 40 processos de luto ao longo da vida”, adianta.
Cristina Felizardo trabalhava em Serviço Social, era diretora técnica de um lar de idosos, quando uma perda simbólica lhe mudou o rumo de vida e de carreira. “Tinha uma vida normal, queria as mesmas coisas que todos os outros queriam; tinha casado com um vestido com uma cauda muito grande, um casamento lindo, um marido de sonho. Tinha um trabalho que adorava e a vida estava a correr toda dentro do plano. O meu filho nasceu, para mim era a coisa mais linda do mundo e foi assim durante 12 horas. Ao fim de 12 horas recebi a notícia que ele tinha lesões cerebrais”, relembra.
A literatura chama-a de perda de fantasia de afeto e está muito associado à perda gestacional ou ao nascimento de um filho com deficiência. “Aquilo que era um dado adquirido na minha vida, um plano perfeito que me levaria rumo à felicidade, ficou perdido e o meu mundo ficou virado de pernas para o ar”, conta Cristina. Começou aqui a sua jornada na investigação e intervenção na área do luto.
E o que é que vem a seguir?
“O que vem a seguir é tão dilacerante, pode abalar tanto a nível emocional, que efetivamente há um mecanismo de proteção que é como se fosse um torpor, uma dormência: a chamada fase da negação”, começa por explicar Cristina Felizardo. “A primeira coisa que a pessoa diz é ‘isto não está a acontecer’. E isto é uma negação ativa em que a pessoa recusa a realidade que lhe está a ser transmitida, seja por palavras ou pelo que os seus próprios olhos percecionam”, esclarece.
Apesar de todos reconhecermos as “fases do luto”, uma teoria criada em 1969 pela psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross, Cristina Felizardo prefere referi-las como momentos ou tendências de comportamento. “A ideia das fases dá a sensação que o processo de luto é muito rigidificado e sequencial e que as fases vêm umas a seguir às outras e têm de ser cumpridas num determinado período de tempo. Nós sabemos que não há fórmulas e que as estratégias são individuais e os fatores externos vão influenciar o tempo que cada pessoa vai demorar a fazer o seu luto”, explica a conselheira de luto.
“Aquela pessoa morreu, está feito e seguimos em frente. Não!”
Assim, não se espera que todas as pessoas tenham a mesma reação e forma de lidar com as perdas, nem que levem o mesmo tempo em cada um dos momentos do processo. “Há momentos em que a pessoa é capaz de estar orientada para a superação e acaba até por fazer algumas conquistas e há outros momentos em que fica orientada para a perda, em que deprime novamente e parece que vai oscilando entre um momento e outro”, explica.
Ao longo da vida, o ser humano vai construindo laços que são fundamentais para a sua segurança e bem-estar e quando um destes laços se quebra, a nossa estrutura também fica abalada. “Nós não temos um botão, ou não temos um clip em que tiramos o laço e pronto, aceitámos. Não funciona como ‘aquela pessoa morreu, está feito e seguimos em frente. Não!’”, esclarece Cristina. “Demorámos tanto tempo a manter aquele laço de afeto, que precisamos dele para nos continuar a dar segurança. Então, andamos em busca dele em tudo, nas roupas, nas fotografias, nas visitas ao cemitério, nos lugares onde costumavam ir…”
Mas estes comportamentos não são necessariamente maus. São chamados gatilhos importantes. “São estes pequenos confrontos, sejam pequenos gatilhos como músicas, fotografias, rotinas, como gatilhos major como por exemplo as datas significativas, aniversários e o Natal, que nos dão a tomada de consciência da realidade que é: a perda aconteceu e é irreversível”, conclui Cristina.
E entre estas oscilações vai-se fazendo o processo de luto – que é esta consciência da perda. “A pessoa aprende que aquela perda é real, aconteceu e é irreversível, toma consciência dela e já não agoniza. A dor pode ficar, a agonia não”, esclarece Cristina.
Apesar de não haver uma cronologia e um tempo definido, a conselheira de luto explica que se a fase de agonia e negação permanecer por muito tempo, e a pessoa não conseguir ferramentas para sair delas, poderá levar a uma patologia mental. “Existem dois tipos de luto: o luto sadio, também chamado de luto normal, e o luto complexo, o chamado luto patológico ou prolongado. O primeiro momento, o da negação, não pode durar muito tempo, não podemos dizer que demora meses. Quando isso acontece, já começamos a entrar na área da patologia”, conta.
“É preciso fazer a pausa do luto”
No dia 5 de maio, Cristina Felizardo organizou um evento científico, na Universidade de Aveiro, sobre o Aconselhamento no Luto, no qual a necessidade de capacitar profissionais para a diferenciação de um luto normal e um luto complexo, ou prolongado, foi abordada. “O aconselhamento no luto quando realizado por profissionais sem formação especializada pode aumentar o risco do luto complicado e eventualmente avançar para a perturbação do luto prolongado ou outro tipo de doença mental”, alerta Cristina.
No seminário estiveram presentes cerca de 120 pessoas e contou com a experiência de Andy Langford e Bianca Lavorgna, especialistas em intervenção em luto, do Reino Unido e Austrália, respetivamente, dois dos países com conhecimento consolidado nesta temática. “Há necessidade de criar um programa curricular em aconselhamento no luto para os profissionais portugueses nas áreas da Educação, Psicologia, Saúde e Serviço Social”, explica Cristina.
Em Portugal, em abril de 2019, foi lançada uma norma que reconhece um modelo de intervenção diferenciada para o Luto Prolongado. “Tem que ver com a intensidade daquilo que são os sintomas”, esclarece Cristina.
Alguns dos sintomas que são avaliados para perceber o risco são a raiva, acusação ou culpa, as relações atuais e a capacidade de adaptação ao luto. “Enquanto no luto normal temos oscilações, temos momentos de dor profunda, um desespero, um sufoco, mas depois volta-se a estabilizar; no luto prolongado, não temos esta oscilação, não há tempo de recuperação e aí sim, o que vemos é um sofrimento mental intenso com um processo de agonia que não altera, não oscila, não dá tempo de fazer a pausa do luto e é preciso essa pausa”, diz Cristina.
No luto sadio com algumas estratégias individuais e orientação terapêutica a pessoa consegue sair dos momentos de maior agonia, enquanto no luto patológico já pode ser necessária medicação para a pessoa ter ferramentas que sozinha não consegue ter.
Diferentes lutos: do médico, da mãe e da filha
O luto do médico: “Lamento informá-la que o seu marido morreu…”
O médico é na grande maioria das vezes o mensageiro das más notícias, aquele que dilacera qualquer esperança ou que surpreende com o que não se esperava.
Nuno Lobo Antunes, médico neuropediatra, lançou em 2009 o seu primeiro livro, “Sinto Muito”, em que abre o coração de médico e deixa a “alma falar”, como menciona António Damásio no prefácio, sobre as suas perdas. Como interno de Neurologia de Adultos, em Nova Iorque, foram muitas as vezes que teve de anunciar ao telefone a morte de alguém. “Minha Senhora, fala o Dr. Antunes, do Instituto de Oncologia do Centro Médico de Columbia, lamento informá-la de que o seu marido morreu…”. O silêncio ou choro vinham do outro lado.
“No meio da noite, na escuridão daquelas noites nova-iorquinas muito densas, de silêncios e do barulho das sirenes em simultâneo, aquele ‘lamento, minha senhora’ era um fio de humanidade que nos ligava e aquelas palavras eram uma mão que tocava o outro e era real: lamentava mesmo”, recorda.
Existem teorias de boas práticas para anunciar a morte de alguém, mas o médico considera que este papel é sempre personalizado. “Tem de haver disponibilidade de tempo, um sítio tranquilo, capacidade de empatia e tudo isso, há que tratar do cenário. Mas depois há a forma como cada médico, pela sua própria personalidade e a sua própria noção de vida, o faz”, diz.
No seu tempo de estudante de Medicina, a vulnerabilidade do médico não era encorajada e teria de haver um certo distanciamento, também como ferramenta de proteção. “Há muita coisa que não se prepara num curso de Medicina e esse contacto com a morte era um deles. Não havia propriamente cadeiras para esse tipo de dificuldades reais, para tudo aquilo que era a vulnerabilidade emocional e relacional com os doentes e famílias”, relembra.
Apesar da distância que um médico deve ter, houve casos que marcaram Nuno Lobo Antunes principalmente na sua experiência como neuro-oncologista pediátrico, em Nova Iorque. O caso de Jennifer, uma jovem com cancro no cérebro, é um deles.
“Chorei tanto, Jennifer, tanto. Olha, chorei tanto que os teus pais tiveram pena de mim. Verdade! Pegaram-me no braço, beijaram-me a face. E eu, minha querida, perdido. Perdido de dor e de remorso. E de saudade”, lê-se em “Sinto Muito”.
“Nos Estados Unidos não é raro, nos casos em que os médicos têm uma afinidade especial, irem ao enterro dos seus doentes. Eu confesso que para mim era uma prática que me era completamente estranha, mas era a Jennifer. Quando os pais me viram, acolheram-me e puseram-me entre eles os dois e foi um momento de intensidade emocional irrepetível. Espero”, desabafa.
Mas será que todas as mortes doem? Ou estão os médicos imunes e formatados para a finitude da vida que já não lhes toca a partida de um doente? “Dói de forma diferente, mas dói sempre. A relação que nós estabelecemos com cada doente, não é uma relação uniforme. E isso é natural, faz parte da condição humana, há pessoas de quem nós nos sentimos mais próximos do que outros. Não que isso interfira, espera-se, na qualidade da decisão médica, mas do ponto de vista emocional e afetivo, afeta de forma diferente. E nesse sentido houve perdas que foram mais dolorosas para mim do que outras”, conclui.
O luto da mãe: “Não há lutómetros, mas há uma perda que pode ser considerada a perda maior”
Tal como ainda não se inventou um medidor de amor, também não se inventou um medidor de dor. As pessoas amam e sofrem de formas diferentes. “Não existe um medidor de luto e não podemos desvalorizar as dores e os lutos”, diz Cristina.
Contudo, a investigação mostra que “há uma perda que pode ser considerada a perda maior, ou a dor maior, que é a perda de um filho.”
Mariana Abranches Pinto sabe que vai perder a filha para o cancro. Inês, ou Nini como a trata, foi diagnosticada com leucemia mieloblástica aguda, já fez vários tratamentos e um transplante. Já não há mais nada a fazer. “Nós fizemos tudo o que estava nas nossas mãos, confiámos absolutamente na equipa de médicos, não temos dúvida de que eles fizeram e estão a fazer tudo o que puderem por ela. Há limites. Esta é a nossa realidade. Aceitamo-la. A aceitação é uma coisa muito poderosa”, acrescenta. Agora o importante não é temer a morte, e sim proporcionar um final de vida bonito.
Mariana é presidente da Associação Compassio e toda a sua jornada começou há mais de uma década quando Inês foi diagnosticada com um cancro aos dois anos, nas vias óticas. Inês foi submetida a tratamentos até aos quatro anos, numa fase em que Mariana descreve como “grande angústia”. Já no fim do tratamento de Inês, e grávida do segundo filho, Francisco, é Mariana diagnosticada com um cancro na mama. “Portanto, nesta fase contactei muito com esta questão das doenças e da fragilidade humana e na altura criei o grupo ‘Ao 3.º Dia’, que fez agora dez anos, e que junta pessoas doentes que procuram encontrar sentido e luz”, começa por contar.
Mariana defende que que só se pode normalizar a morte falando dela. “Tudo o que não falamos vai crescendo e um dia vamos ter de lidar com o assunto. Acho que é muito mau não falarmos do tema”, partilha.
Mariana era arquiteta paisagista, contudo o seu percurso acabou por pôr a atividade em segundo plano. “Comecei a ver que ia mais a congressos sobre a Pastoral da Saúde, sobre morrer, sobre o cuidado com a pessoa doente (que é o que me interessa mais) do que a congressos de arquitetura paisagista, então pensei em mudar o meu foco”, diz. Por isso, tirou várias formações sobre o tema das “comunidades compassivas” e em 2019, em conjunto com mais 14 pessoas, fundou a Associação Compassio. “A compaixão é a base do nosso trabalho. E compaixão é a profunda consciência do sofrimento, do outro e do nosso, e fazer algo para o aliviar ou evitar”, esclarece Mariana.
Um dos grandes objetivos de Mariana, e do seu grupo de trabalho, era tornar o Porto numa cidade mais compassiva com a dinamização de ações que provocassem a comunidade e a pusessem a pensar. E em 2020 consegue, em conjunto com o Hospital São João, ganhar um concurso promovido pela Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos para criar o Porto Compassivo. Só existem três cidades compassivas em Portugal: Borba Compassiva, Amadora Compassiva e Porto Compassivo.
“O que nos interessa agora é a qualidade de vida dela, não tanto o tempo de vida dela”
Mariana reconhece que a formação e trabalho com as comunidades compassivas, bem como a sua caminhada na superação de doenças, permitem-lhe ter outra visão sobre a situação de Inês. “Se calhar, para umas pessoas é importante continuar a fazer tratamentos, continuar a mandar o barro à parede, mesmo que as hipóteses sejam nulas, e para outras, que é o nosso caso, o que mais queremos é viver este tempo juntos e que ela possa fazer o que seja possível fazer. O que nos interessa agora é a qualidade de vida dela, não tanto o tempo de vida dela”, desabafa.
Inês, ou Nini, nunca perde o ânimo. Já percebeu que o futuro pode não ser longe, por isso recuou as metas. “A doença é vencida quando a aceitamos”, podemos ler na bio da sua página de Instagram “A Morrer Comigo” onde partilha a sua vida e a sua ligação e aceitação da doença.
“Eu pus na minha cabeça que eu não ia deixar de fazer nada. Não me quero arrepender e vir a dizer ‘Eu devia ter ido com ela aqui e ali’ e por isso tentamos ao máximo estar juntos e vivermos intensamente. E tem sido um tempo uma grande beleza”, partilha Mariana.
O luto da filha: “Foi a minha primeira grande perda na vida”
Maria Cazenave tem 36 anos e ao longo de mais de três décadas nunca tinha sentido uma dor igual à do dia 25 de setembro de 2022. “A minha mãe faleceu com cancro, foi fulminante”, conta. “Foi a minha primeira grande perda na vida.”
Rita tinha 58 anos e foi diagnosticada com um cancro do sistema digestivo, mais propriamente na via biliar. Desde o diagnóstico até ao momento em que partiu passou um ano e cinco dias. As contas são de Maria que não saiu de perto da mãe desde o primeiro momento. “Eu basicamente parei a minha vida durante aquele ano e dediquei-me a ela”, conta.
Apesar dos meses difíceis e de muitos internamentos, Maria acreditou que a mãe se conseguia salvar. Recorda os dias no hospital em que faziam meditação, ouviam música ou jogavam às cartas. Só houve uma conversa sobre a morte. “Estávamos nos jardins do IPO sentadas, ela já estava de cadeira de rodas, e estávamos à espera de saber os resultados das análises, para saber se ela ia para casa ou ficava internada. E eu virei-me para ela e disse ‘Mãe, desculpa. Se calhar às vezes não consegui respeitar o teu tempo, quis tanto salvar-te… estive tão ansiosa’ e ela respondeu-me ‘Mas tu salvaste Maria. Salvaste-me da solidão de passar isto sozinha’”, conta Maria entre pausas a conter a emoção.
Esta foi a única conversa sobre a morte, ainda que velada. Dias depois, já com Rita internada, Maria teve o seu primeiro confronto com a possibilidade de a mãe não se salvar quando sugerem que Rita fosse acompanhada num Centro de Cuidados Paliativos. Rita estava perto de morrer, mas a esperança de Maria morreu nesse dia. “Quando sai do IPO, tive um dos maiores ataques de choro. Foi no dia que caiu mesmo a ficha e todo o processo a partir daí foi uma preparação...”. Preparação para a partida da mãe. Maria quis que fosse em casa e por isso contratou uma empresa para fazer o acompanhamento dos cuidados paliativos ao domicílio. “Morrermos sozinhos numa cama de hospital, para mim, é das coisas mais desumanizantes. Respeito quem o faça, mas não queria isso para a minha mãe”, diz.
Maria recorda a energia da mãe e a boa-disposição ao longo da vida. “Ela era muito sensitiva e tinha uma inocência muito bonita. Foi ela que me ensinou a apreciar a beleza da vida, como o pôr-do-sol, o mar, a praia. Ela adorava praia.” Também por isso quis proporcionar um fim de vida bonito. “O quarto estava lindíssimo, com flores, com cheirinho de alfazema, com fotografias. Também contratei uma doula de fim de vida que lhe dava massagens e recebeu visitas de todas as pessoas. Portanto, tudo isto foi muito importante também para nós enquanto família.”
Rita esteve nove dias em casa, o corpo já estava muito debilitado e a mente vazia, mas o coração transbordava quando decidiu parar. “A minha mãe partiu em casa rodeada de amor, não havia forma mais digna de partir”, conta.
“A única forma de lidarmos e curarmos o luto é senti-lo”
Os meses que se seguiram, ainda que Maria se tivesse preparado para a partida da mãe, foram de muito sofrimento. “Acedi a lugares de mim que não conhecia, ao nível de dor”, diz. A saudade e o questionamento tomaram conta de Maria. “Foi arrebatador pensar que não ia poder falar mais com ela e depois também estava sempre naquela de ‘eu devia ter feito isto, devia ter feito aquilo’ e será que ela sabia que eu a amava? Mas nem uma eternidade bastava”, desabafa Maria.
Numa fase inicial do processo de luto as pessoas têm esta tendência para o questionamento, sentimentos de culpa e insuficiência. Cristina Felizardo alerta, “estes pensamentos ruminativos podem gerar pensamentos obsessivos.” E por isso as consultas de luto sadio podem ser uma grande ajuda. “O que fazemos é desconstruir estas narrativas. Procuramos sempre ajudar a pessoa de maneira que o seu luto não demore tanto tempo e que, por isso, não seja tão doloroso, mas o luto tem de ser feito pela pessoa, porque as estratégias são as dela, em consulta só ajudamos a aceleram este processo”, explica Cristina Felizardo.
Todas as estratégias são válidas. “Há pessoas que encontram conforto na meditação, outras no desporto, outras focam-se em trabalho de voluntariado, outras dedicam-se a outros projetos. A fé ou a crença em algo superior também podem ser estratégias”, esclarece.
Maria, além de acompanhamento terapêutico, também procurou grupos de apoio ao luto junto da LinQue que começou a frequentar em janeiro, quatro meses após a sua grande perda. “Eu podia ter arranjado várias formas de fuga, e não faltou vontade, porque a primeira reação do ser humano é fugir da dor. Mas eu tinha consciência de que a única forma de lidarmos com o luto e curarmos o luto é senti-lo e quis ir fundo nesse processo.”
Hoje não tem dúvidas de que partilhar a sua dor, falar da saudade, da morte e da mãe é um exercício necessário num processo que está em constante atualização. “Por exemplo, em março, sem que nada previsse, apaixonei-me. E veio um processo de grande culpa, porque na minha cabeça comecei a questionar-me: ‘Como é que há espaço dentro de mim para eu poder estar a sentir essas coisas novas? Estarei a esquecer-me dela?’ E eu partilhei isto numa das sessões e foi muito interessante porque ouvi outras partilhas de pessoas que também já sentiram isso. Ajuda este sentimento de identificação”, conta.
Para Cristina Felizardo, os grupos de partilha podem ter um papel importante nesta questão de pertença a uma “tribo”, bem como “naquilo que também é a solidão do luto que acontece normalmente a seguir ao funeral, que é quando todos os outros vão à vida deles, porque a vida continua”, explica. “Por muita compaixão, muita empatia que as pessoas possam ter, a verdade é que não sofreram a mesma perda e nesses grupos quase que existe uma linguagem muito específica e muito própria de quem está a sofrer uma perda”, explica.
A etiqueta do luto: tudo o que devemos e não devemos dizer
Cristina Felizardo fala-nos ainda da “etiqueta do luto.” “Há muitas variantes, dependendo da perda. Aos viúvos diz-se coisas como ‘então mas não achas que está na hora de conhecer alguém?’; às viúvas ‘há tantas pessoas interessantes por aí, ainda és tão nova, tens tanto para dar’. Ou pior ainda, nas perdas gestacionais: ‘Deixa lá, fazes outro’”, conta.
Uma vez que não existem palavras suficientes para confortar ou diminuir a dor do outro, a melhor solução é nada dizer. “As pessoas não são especialistas da vida de ninguém, e efetivamente não sabem a perda que aquela pessoa teve, mesmo que sejam membros da família com ligações diretas à pessoa perdida, não era o mesmo laço, e portanto o mais sensato é dizer ‘Não sei o que hei de dizer, mas estou aqui’”, completa.
Frases como “não chores” ou “isso vai passar”, por muito bem-intencionadas, também não ajudam porque, segundo Cristina Felizardo, “a única coisa que estamos a dizer àquela pessoa é que não tem espaço para partilhar a sua dor”.
Também para Mariana Abranches Pinto falar sobre a morte e deixar que as pessoas partilhem a sua dor é fundamental para as pessoas doentes ou em processo de luto sentirem que são ouvidas. “As pessoas gostam de dizer ‘isso vai passar’, ‘não penses mais nisso’, mas isso é fugir: é não ouvir. E não se tem de reformular o luto da outra pessoa, nem minimizá-lo”, diz.
Neste sentido o projeto Portugal Compassivo tem promovido workshops ou dos Death Café (Cafés da Morte) onde a morte é o tema central. “Há bolo, chá e refresco e à volta de uma mesa fala-se sobre a morte. Uns querem falar do funeral, como é que gostavam que fosse o seu funeral, outros querem falar das saudades das pessoas que morreram e outros querem falar em termos mais espirituais. É uma tertúlia, tudo é válido”, explica Mariana.
Também existem os grupos de partilha para pessoas com vivência de doença e para pessoas em luto “O grupo chama-se Casa. São sete sessões de sete semanas seguidas, vamos percorrendo o hall, o quarto, a sala com propostas sempre de partilha e tem sido um caminho muito bonito”, conta.
O luto nem sempre é um caminho bonito e por isso, Cristina Felizardo alerta para a importância da presença. “A sociedade moderna tem muitas exigências, mas se pudermos tirar um bocadinho das nossas vidas frenéticas para uma mensagem, para um café e para dar espaço ao outro para falar, seria bom. É importante lembrar que o luto continua.”
Mariana Abranches Pinto deixa-nos também a mensagem que a “a boa morte é responsabilidade de todos”. “A morte em si deve ser um segundo, o processo de morrer é que pode demorar muito e podemos fazer com que seja o melhor possível, dando os melhores cuidados de saúde possíveis, fazer companhia, proporcionar bons momentos, ouvir…”, lembra. É também isto que está a fazer com Nini e, apesar de ter ferramentas que outras pessoas não têm, Mariana não sabe como será a partida de Inês. “Nunca perdi uma filha, não sei como vai ser”, remata.
Maria já conseguiu fazer o luto integrado onde a relação com a mãe permanece. “A relação começa a ser interna e eu continuo a relacionar-me com ela com a noção do amor interno. É como se eu fosse integrando a minha mãe dentro de mim”, partilha. Maria acredita ainda que a mãe continua presente e o luto permanece ali mas “a vida começa a crescer à volta”.
De uma coisa todos estamos certos: mesmo após as nossas perdas a vida continua. Talvez continue de outra forma. O amor não desaparece, a dor também não – mas não será sempre igual – e a saudade vai-se reinventando. Porque as pessoas que nos morrem, não nos morrem cá dentro.