O conflito em Cabo Delgado, Moçambique, tem estado um pouco longe dos holofotes internacionais, mas vive-se lá uma tragédia humanitária. O que está a acontecer?
Os ataques iniciaram-se em Cabo Delgado em outubro de 2017, na vila de Mocímboa da Praia, quando um grupo de insurgentes atacou edifícios do Governo e da Polícia, e a reação inicial do Governo foi a de menosprezar os ataques. Mas com a passagem do tempo houve a multiplicação de mais ataques e não era possível já para o Governo de Moçambique desmentir e dizer que se tratava só de malfeitores normais e que tinha a situação sob controlo. Então, agora, temos uma crise não só dos ataques em si, mas também uma crise humanitária. Temos acima de 500 mil deslocados espalhados por toda a província de Cabo Delgado, alguns estão em Niassa, outros em Nampula, Zambézia, Sofala e até na província de Inhambane, no sul do país. Alguns deslocados estão também na Tanzânia. Não têm condições básicas para viver e a situação continua a piorar a cada dia que passa.
Quem é este grupo de terroristas que está a causar estas atrocidades inqualificáveis na região e a fazer com que a população fuja? O que sabem deles?
O grupo de insurgentes é composto por elementos locais. A maioria da juventude que aderiu a este grupo é das zonas locais, é de Mocímboa da Praia, Quissanga, Muidumbe, Nangade, ou seja, dos distritos do norte da província de Cabo Delgado. São locais que têm um sentimento antagonista contra o Governo de Moçambique. Nós em Moçambique temos muitos problemas de desigualdades económicas e sociais, e que estão em condições extremas no norte do país, em particular em Cabo Delgado. Grande índice de pobreza, de analfabetismo, de casamentos precoces são problemas sociais e económicos que afetam bastante as províncias do norte de Moçambique. Segundo a nossa análise, cremos que estas condições são favoráveis para a emergência e continuação deste tipo de insurgência.
Também houve expropriação de terras sem compensação, sem consultas comunitárias. As pessoas foram simplesmente retiradas das suas terras, retiradas da costa para criar espaço para a exploração mineira e exploração de gás. Isto tudo criou um problema sério de desafeto contra o Governo de Moçambique. Grande parte deles é a juventude local.
Mas se a juventude local está descontente com o Governo, porque é que, para além de destruírem elementos do Governo, estão a atacar a população, e a fazer mal aos seus vizinhos, aos seus familiares?
Isso é um problema que ainda precisamos todos de compreender. Porque eles ainda não explicaram com detalhe as suas reivindicações. Já disseram que estavam desgastados com os chefes em Maputo, que só queriam lucros para si e não se interessavam pela vida e bem-estar da população, mas não deram mais detalhes. Nós não sabemos porque é que atacam a população local, também porque não há possibilidade de os jornalistas e os investigadores entrarem em contacto com os insurgentes, porque o Governo também não permite que os jornalistas e investigadores se desloquem ao local do conflito. Essa é uma incógnita que mesmo nós ainda não conseguimos decifrar.
Consta que esses jovens estarão relacionados com o grupo terrorista Al-Shabaab, ‘Movimento do Jovem Guerreiro’, que atua na Somália. Confirma?
O grupo é conhecido em Moçambique em localmente como Al-Shabaab, mas não conhecemos nenhuma ligação entre este grupo e o Al-Shabaab da Somália.
Consta também que querem criar um califado na região. Isto, a acontecer, seria o primeiro califado em língua portuguesa?
Eu acho que não seria um califado em língua portuguesa porque grande parte desta juventude não se expressa em português, utilizam línguas locais, o quissuaíli, o macua, o maconde. Poucas vezes eles falam em português. Naquelas zonas há um índice de analfabetismo muito alto. Seria um califado em português, mas de uma forma muito teórica.
Em conversas com familiares desses terroristas que também estejam em fuga não se consegue perceber as suas motivações? Porque é que deixam as famílias, entram num grupo terrorista e atacam depois a própria comunidade?
Até agora ninguém teve acesso às famílias. Quando se tenta saber quem são os familiares dos insurgentes, chegam-nos relatos de que eles levaram as suas próprias famílias para as bases. Temos poucas evidencias de famílias que foram entrevistadas e falaram abertamente sobre os insurgentes, porque é muito perigoso para as famílias falarem dos seus familiares que se aliaram aos insurgentes, porque há grande possibilidade de serem mortos. É um tema muito sensível, por isso, as pessoas evitam falar disso. Não têm só medo dos militares de Moçambique, mas também têm medo dos insurgentes e é por isso que essa informação é muito escassa.
«As pessoas que fogem relatam situações de terror ao verem os seus familiares serem mortos de uma forma muito bárbara»
E as pessoas que fogem e chegam às outras províncias, o que elas relatam?
As pessoas que fogem relatam situações de terror, relatam situações de verem os seus familiares a serem degolados, a serem mortos de uma forma muito bárbara. São pessoas extremamente traumatizadas e são pessoas que necessitam de uma assistência psicológica muito séria porque viram horror e terror naquelas zonas. O Bispo de Pemba tem falado disso frequentemente. Eles lá têm um centro onde albergam pessoas com esse tipo de trauma. São crianças, são mães, são jovens que viram os seus familiares serem degolados. As pessoas contam esse tipo de episódios quando chegam às zonas seguras, mas em termos de falar se conhecem ou não os insurgentes, se são membros das famílias ou não, isso eles não dizem.
As pessoas quando fogem não levam rigorosamente nada?
Sim, porque os insurgentes entram de forma surpreendente nas aldeias. As pessoas saem e fogem com a roupa que têm no corpo, mais nada. Deixam tudo para trás, as suas casas, as suas lavras, as suas palhotas, tudo o que lhes pertence, e fogem para as zonas supostamente seguras sem praticamente nada. Sobrevivem comendo folhas, raízes, e continuam caminhando através das matas e também através da costa para chegarem às zonas seguras. É uma situação muito extrema, dá pena mesmo.
E estamos a falar de quanto tempo de fuga a caminhar pelas matas?
Depende. Há pessoas que levam dois, três dias, outras levam até oito a dez dias, porque uma família quando foge tem pessoas com várias capacidades para se deslocar. Tem idosos, crianças, e isso faz com que muitas famílias passem muito tempo no mato, nas florestas, a tentar chegar às zonas seguras. É esse o cenário.
Nós temos informação de decapitações de 50 civis na aldeia de Muatide em outubro passado. Mas entretanto o governador de Cabo Delgado já veio dizer que tal não ocorreu. Confirma ou não este massacre?
O governador de Cabo Delgado não tem como saber sobre os acontecimentos do distrito de Muidumbe, porque ele lá não tem governo. Os distritos do norte de Cabo Delgado estão completamente abandonados, não há governo praticamente aí. Então não é possível o governador de Cabo Delgado saber o que é que se passa. Testemunhas dizem ter havido várias decapitações e alguns deles viram mesmo os seus próprios familiares serem decapitados. Nós preferimos levar a sério as informações que recebemos de testemunhas em vez do que diz o governador de Cabo Delgado, que está baseado em Pemba e que não tem acesso aos distritos do Norte. As decapitações aconteceram mesmo, as testemunhas falam nisso. É verdade, infelizmente.
Há informação de que não são só os insurgentes a atentarem contra os direitos humanos, também a Polícia de Moçambique comete atos bárbaros. Que informação tem sobre isso?
Nós já analisámos vídeos das ações dos membros das Forças Armadas de Defesa de Moçambique em que eles torturavam, batiam e também cortavam pescoços a alguns insurgentes capturados e que eram depois atirados numa vala comum. Nós analisámos esses vídeos e chegámos à conclusão que na verdade as Forças Armadas de Defesa de Moçambique também participam na violação dos direitos humanos. Não há dúvidas sobre isso porque desde o início deste conflito que recebemos reclamações, alegações de violação de direitos humanos pelos membros do exército de Moçambique, pela Polícia, bem como pelas Forças Armadas. Isso é verdade e é por isso que temos exigido investigações imparciais, independentes, para apurar as verdades e responsabilizar os culpados.
Já lá vão três anos. Porque é que o Governo de Moçambique e as entidades internacionais ainda não conseguiram travar este conflito?
Nós apelamos ao envolvimento da comunidade internacional para resolver o problema e a restaurar a paz e a prosperidade na província de Cabo Delgado, porque foi aparente desde o início que o Governo de Moçambique não estava em condições de conter a insurgência. E com a passagem do tempo está a ficar cada vez mais claro que o Governo de Moçambique não é capaz de conter a insurgência. O próprio presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, já fez apelo à comunidade internacional, a pedir apoio para combater a insurgência em Cabo Delgado. Então, nós achamos que o problema que estamos a viver em Cabo Delgado não é só um problema de Moçambique, é um problema de África, é um problema da região da África Austral, é um problema internacional. Têm de ser todos estes intervenientes a participarem na resolução daquele conflito. Essa é a nossa posição. O Governo de Moçambique não tem capacidade de fazer face àquela insurgência.
Mas é o Governo de Moçambique que não tem deixado entrar as entidades internacionais ou estas simplesmente ignoraram o problema?
No caso da União Africana e da SADEC - Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, as autoridades regionais ainda não mostraram nenhum interesse em prestar assistência ao Governo de Moçambique na resolução deste conflito. E também na comunidade internacional, em termos de Organização das Nações Unidas, de União Europeia, só alguns países é que manifestaram interesse e disponibilidade para prestar assistência ao Governo de Moçambique, como foi o caso do Governo português e do Governo francês. O resto da comunidade internacional ainda continua indiferente aos acontecimentos em Cabo Delgado, infelizmente.
E sem esta ajuda internacional o que vai acontecer?
Sem intervenção internacional achamos que o conflito vai continuar e vai piorar. E a intervenção não pode ser simplesmente militar, tem de haver uma intervenção compreensiva, multidisciplinar, porque lá temos uma crise humanitária que está cada vez mais a agravar-se. Precisamos de uma intervenção humanitária, psicológica e social. Precisamos de desenvolvimento social e económico na província de Cabo Delgado. Guerra, só, não vai resolver o problema de Cabo Delgado. O militarismo, só, não vai resolver o problema.
«Os insurgentes iniciaram ataques na Tanzânia. Querem construir um Estado Islâmico para além das fronteiras de Moçambique. É do interesse da comunidade internacional, da União Africana e da região da África Austral conter este conflito o mais cedo possível»
Em relação a estes mais de 500 mil deslocados, qual é a ajuda urgente de que precisam e que apelam à comunidade internacional?
As pessoas saíram das suas zonas de origem sem nada. Precisam de alojamento, porque não existe alojamento para onde elas se dirigem, precisam de alimentação, água, saneamento, precisam de tratamentos de saúde, porque muitas pessoas contraíram doenças ao longo do percurso das zonas de conflito para as zonas seguras. E a situação de saúde, de mulheres grávidas, crianças e idosos, está a agravar-se cada vez mais.
Outro caso é o das famílias que albergam os deslocados de guerra na província de Cabo Delgado e na província de Nampula. Uma família que normalmente tem 4 ou 5 elementos, agora 20, 30, 50 ou mais pessoas a viverem num espaço confinado, inadequando, sem alimentação, sem água, sem saneamento, sem ventilação, sem condições básicas. São condições muito precárias, essas famílias precisam de assistência para que continuem a prestar assistência aos deslocados. O Governo não pode simplesmente ignorar e pensar que as famílias vão continuar a prestar assistência. A responsabilidade é do Governo, deve garantir as condições básicas, os direitos económicos, sociais e culturais das comunidades. Essa é a responsabilidade do Governo de Moçambique.
Então os deslocados estão a fugir para casas de familiares? Não há campos de acolhimento?
Existem campos de acolhimento, mas também existem os refugiados que se deslocam até às suas famílias e famílias de amigos. Existem campos de acolhimento em Cabo Delgado. Fora da cidade de Pemba há um campo com mais de 20 mil deslocados. Em Niassa e em Nampula também existem campos de acolhimento. Estamos a falar de um conflito com mais de 500 mil deslocados e acima dos 2000 mortos já. E a maioria dessas são civis, são pessoas inocentes.
Que mensagem quer deixar a quem ler esta entrevista?
Nós fazemos apelo ao Governo de Moçambique para abrir as portas à comunidade internacional, para que a comunidade internacional participe na resolução deste conflito. Mas também apelamos à comunidade internacional que se interesse pelo conflito de Cabo Delgado, porque estamos a assistir dia-a-dia ao agravamento da crise humanitária que está a acontecer em Cabo Delgado. Se isso não acontecer, vamos ver o país a arder e vamos ver a continuação de violação dos direitos humanos. E este conflito tem potencialidade para se alastrar ao sul de Moçambique - a seguir a Nampula e Zambézia - até ao sul de Moçambique. Por isso, apelamos a ambas as partes – Governo de Moçambique e comunidade internacional – para que levem este conflito a sério e tratem de resolvê-lo o mais rápido possível, antes de se alastrar.
É um país inteiro que está em risco?
Na verdade, é um país que está em risco de um efeito dominó, onde cai um país, mas também podem cair outros países. Os insurgentes também iniciaram ataques na Tanzânia. Isso significa que têm ambições além de Moçambique, querem construir um Estado Islâmico para além das fronteiras de Moçambique. É do interesse da comunidade internacional, é do interesse da União Africana e da região da África Austral conter este conflito o mais cedo possível.