Será talvez das regiões do mundo que menos tempo teve de contactar com a COVID-19. O primeiro caso foi identificado a 23 de janeiro deste ano e as vacinas chegaram menos de um mês depois. “Ficamos felizes com esta decisão do governo. Ninguém estava à espera e sentimo-nos mais seguros”, conta João Machado, proprietário do BBC – Bar Bombeiros do Corvo, um café que é também uma sala de estar da ilha.
O Corvo vai ser “livre de COVID”, como gosta de dizer António Almeida, médico e delegado de saúde da ilha. Em dois dias foram inoculadas 306 pessoas, 92,5% da população que pode ser vacinada, e a segunda dose está prevista para a segunda semana de março. Entre a euforia e a preocupação, por a vacina ser muito recente, “o número de pessoas que decidiu ser vacinada mostra este contentamento”, adianta o proprietário do café.
Houve muita crítica por serem os corvinos os primeiros a receber as vacinas, “principalmente dos açorianos de outras ilhas”, comenta ainda João. A distância aos hospitais centrais, as particularidades deste território atlântico e outros pormenores logísticos levaram a essa decisão.
“Nós estamos aqui no meio do mar, não temos um hospital mas temos uma unidade de saúde muito mais bem equipada do que muitas no continente”, garante António Almeida, que logo acrescenta: “É o sítio do país onde há mais médicos per capita.”
Contudo, em casos graves ou urgentes, o mais natural será haver uma evacuação para um dos hospitais mais próximos. Esta distância deixa os corvinos receosos, mas é ainda o médico que garante que “chega mais depressa um doente do Corvo ao Hospital da Horta ou de Ponta Delgada ou à Terceira do que muitos doentes que estão a meia dúzia de quilómetros dos hospitais no continente”.
As milhas náuticas que normalmente medem a distância no acesso à saúde traduziram-se agora em meses de proteção. “A sensação de estar aqui, é a sensação de algum privilégio, de ver o furacão ao longe”, partilha António Almeida, solidário com os colegas que trabalham no continente.
Segundo os Censos 2011, vivem no Corvo 430 pessoas. Todos se conhecem e o contacto social é muito intenso. Tiago Pereira, funcionário da Câmara Municipal, resume:
“Aqui todas as pessoas saem todos os dias, e todos se cruzam com todos. Várias vezes ao dia. Quem não sai de casa, vive com quem sai, portanto é a mesma coisa.”
“Se amanhã eu estiver positivo e me perguntassem quem seriam os meus contactos de proximidade, seriam umas cinquenta pessoas no mínimo, nós vamos todos aos mesmos sítios...”, completa João Machado.
Fechados em casa, a ver o vírus a chegar perto
Em março passado, o café, o restaurante, a escola e outros serviços fecharam. “As pessoas saíam para as suas lavouras e pouco mais. Tinham algum receio de se aproximar umas das outras”, conta Tiago Pereira. “No fim de semana, havia uma ou outra família a dar uma caminhada à volta do aeroporto e eu ia com dois ou três amigos para o mato fazer trilhos de mota, mas sempre à distância”, relembra o corvino.
João vive no Corvo há oito anos com a sua esposa e filha. Os pais e a avó vivem “numa aldeia mais pequena do que o Corvo, perto de Tondela, e o irmão em São Miguel. Ver a pandemia ao longe levanta ainda outras preocupações: “Quando vejo o Hospital de Viseu a ficar cheio, fico logo preocupado”, explica.
Em março de 2020, meses antes de o vírus chegar ao Corvo, João teve de fechar o café. Mesmo com o escudo do Atlântico, nunca houve revolta em confinar. “Nós somos muito solidários com estas situações. Às vezes ficamos esquecidos a nível de transportes, saúde, etc., mas nós não queremos ser tratados de maneira diferente, nem em relação ao todo regional e nacional, queremos ser tratados tal e qual como os outros. Queremos os mesmos direitos, por isso temos os mesmos deveres”, completa.
Tiago também recorda este tempo e identifica-o como um “duplo confinamento”: “Apesar de vivermos isolados foi assustador porque as pessoas não estavam habituadas a este tipo de rotina, a estarmos fechados. Já estamos fechados, é estarmos ainda mais.”
“Achamos que a Nossa Senhora dos Milagres nos protege”
Depois de algum tempo de relativa normalidade na ilha, em que se desconfinou e se aprendeu a viver com mais cuidados, a identificação do primeiro caso de COVID-19 obrigou as escolas, cafés e o restaurante a fecharem de novo em janeiro deste ano.
O teste positivo apareceu ao sexto dia da chegada à ilha de um dos seus habitantes, depois de um primeiro teste negativo dias antes.
Depois de um primeiro teste negativo na chegada à ilha, apareceu seis dias depois o temido positivo a um dos habitantes. “Vinha do continente, onde tem família e passou as festas de Natal e Ano Novo. Não é de cá mas é como se fosse, está cá há muitos anos, é muito sociável e amigo de toda a gente”, conta João, que teve de ter cuidados extras porque um dos contactos deste primeiro infetado era um funcionário do seu café.
Quando a notícia chegou, “uns queriam cruxificá-lo porque devia ter ficado em casa, outros porque diziam que nem devia ter ido passar o Natal fora, outros faziam a sua defesa”, explica Tiago, que além de trabalhar na Câmara é também bombeiro voluntário.
“Eu acho que nós corvinos vivemos descontraídos porque achamos sempre que a Nossa Senhora nos protege, mas como caso positivo, acho que caiu um bocado a ficha e as pessoas ficaram em casa”, continua Tiago.
Controlo popular e testes em massa
Durante este tempo, o Corvo parou. “Há muita vigilância popular, não há medo da GNR, mas sim dos vizinhos, que chamam logo a atenção”, afirma o médico, António Almeida, que chegou a receber chamadas quando uma das pessoas que deveria estar confinada saiu de casa: “Essa pessoa tinha-me pedido para ir buscar o computador ao trabalho, que não estava lá ninguém, e eu tinha autorizado, mas bastou sair para me ligarem.”
Depois do primeiro caso, apareceu um segundo “ainda difícil de explicar e criou algumas dúvidas”, conta. Com as dúvidas surgiram várias teorias e relembram o caso, que abalou um pouco o verão, por um grupo de turistas polacos que tinha saído do Corvo ter testado positivo na chegada ao Faial.
“Não é fácil aparecer um caso e mais ninguém dar positivo, nós dizemos na brincadeira que o vírus passou por cá e ninguém deu conta e estamos imunes ou então é obra da Nossa Senhora dos Milagres”, diz na brincadeira João Machado.
O caso resolveu-se rápido, o médico explica: “A ilha sendo pequena também tem uma população pequena. De repente, tivemos um caso, apareceu um segundo caso.... Tínhamos testes e testámos mais de 300 pessoas, 90% da população.”
Com unanimidade de negativos, o Corvo voltou ao “novo normal”. No meio disto, o proprietário do café, considera-se um sortudo por conseguir manter o espaço aberto e os salários pagos: “Financeiramente, nós tivemos a sorte de mesmo fechados, e com o apoio do Estado, termos vendido algumas coisas em take-away. A nossa ementa é muito curta, mas as pessoas foram pedindo e as coisas foram aparecendo. Não paga as contas, mas ajuda e muito.”
Esperar pelo barco e pelo avião
Para António Almeida, o Corvo pode parar facilmente. “O turismo está parado, o mar como está não há pesca, o resto são serviços e as pessoas servem-se umas às outras. Se fecharmos a economia mundial não vai sentir”, conclui numa crítica à falta de sustentabilidade da ilha.
“Incomoda-me que grande parte da terra agrícola esteja abandonada e ver o avião a descarregar batatas. No Corvo, há terra e não há batatas, há mar e não há peixe. Há vacas e não há leite, nem manteiga, nem iogurtes, nem queijo... Alguma coisa está mal. Vive-se à espera do barco e do avião”, lamenta.
Este verão, os barcos e aviões continuaram a trazer turistas, não os continentais ou estrangeiros como habitualmente, mas os conterrâneos do arquipélago, impulsionados por um programa do governo regional para esse efeito.
O proprietário do BBC vê o turismo com bons olhos, mas quem faz a diferença nas caixas registadoras são os corvinos e também explica que o turismo muitas vezes não traz uma distribuição igual para todos. “Muitas vezes veem o Corvo como parte do pacote turístico das Flores. Os turistas vêm de barco e passam cá três horas, visitam o Caldeirão, almoçam e vão embora, não há retorno para o hotel ou para quem tem residenciais.”
Mesmo assim, acredita que a imunidade à vista vai trazer muitos benefícios ao turismo. Mas adverte:
“Esperemos que não se lembre toda a gente do Corvo. Se vier muita gente de fora e não estiverem vacinados... nós vamos poder transmitir a doença, não vai ser tudo simples. É bom que olhem para o Corvo de uma forma diferente, mas com boa conta, peso e medida.”
Também ele quer poder viajar: “Estava habituado a ir três ou quatro vezes de férias e não saio há mais de um ano. Eu gosto muito de viver no Corvo mas é psicologicamente pesado. Precisava de sair, ir a Cabo Verde ou às Canárias, como costumamos ir... Depois de tomar a segunda dose, talvez vá a São Miguel visitar o meu irmão.”
Um verão sem festas mas mais alegre
Sem as habituais festas de verão, “sem beijinhos de aniversário e com o ‘bom ano’ dado de cotovelo”, Tiago Pereira acredita que as pessoas vão sentir-se mais seguras depois de receberem as duas doses da vacina, mas “sem à-vontade, com máscaras e sem festas vai ser um verão semelhante ao passado”, diz-nos.
Tiago é testado à COVID-19 mensalmente por ser bombeiro voluntário. Tanto estes profissionais, como os que trabalham no lar da Santa Casa da Misericórdia vão continuar a ser testados. “Eu pensava que com a vacina iria deixar de ser testado, mas não. Já fiz uns cinco ou seis testes e até já deixei de ir de férias para não ter de fazer mais”, confessa, cansado dos testes PCR.
Com baixas expetativas, mas ansioso que a vida retome alguma normalidade, Tiago afirma que “nada vai mudar até que as pessoas do continente e no resto do mundo estejam também vacinadas e que comecemos a tirar as máscaras”.
Além do barco ou avião, os corvinos ficam agora à espera das notícias do resto do país. António Almeida diz-se contente com o decorrer da vacinação e mostra-se otimista: “Estamos quase resolvidos. Se o resto do país se resolver até maio ou junho, iremos ter um verão alegre.”