Num arquipélago em que 27% do PIB está relacionado com o turismo, o impacto é visível nos mais bonitos resorts e infraestruturas mas também no lixo acumulado pela ilha, principalmente em Ugunja – a maior ilha de Zanzibar; a outra ilha deste arquipélago tanzaniano, Pemba, ainda está a começar agora a fazer parte dos roteiros turísticos.
Suleiman Ali Mohammed, natural de Zanzibar, e Anneloes Roelandschap, neerlandesa, são um casal a viver na ilha há muitos anos e decidiram criar a Chako, uma empresa focada em transformar o desperdício em artesanato. Suleiman e Anneloes andaram nos últimos vinte anos com malas, bagagens, projetos, o casamento e filhos entre África e Europa – Tanzânia e Países Baixos.
Em 2010, fundaram a Chako, com o lema “Do desperdício à criação” (“From waste to creation”) e ficaram com ainda mais ligações e objetivos neste país africano. “Sentíamos que havia imenso lixo. Sabemos da importância da indústria do turismo, mas precisávamos de fazer algo para a comunidade local. A maior parte dos trabalhos em hotéis são para os continentais, que têm mais acesso a formação, ou para pessoas que vêm do Quénia, que falam melhor inglês”, explica Anneloes ao SAPO no dia da visita do ministro do Turismo e Património de Zanzibar para inaugurar oficialmente as novas instalações da empresa.
O objetivo da Chako é claro: recolhe as garrafas que animaram noites em restaurantes, hotéis e resorts e transforma-as em candeeiros, jarras, copos, azulejos e mesas ou até pavimento. No total, são 12 objetos criados a partir de lixo. Chako, em suaíli, a língua oficial da Tanzânia, significa “o seu”. “Temos turistas a virem para a ilha, usam uma garrafa, o que o Chako faz é: recolhe essa garrafa que é ‘sua’, dá-lhe e dá de novo ao turista – é ‘sua’ de novo”, resume Hapiness James Makalele, gestora do projeto.
“Há empresas que eram pagas para fazer essa recolha e que podiam despejar em qualquer lado, nós recolhemos três vezes por semana sem custos e trazemos o lixo para aqui”, explica Suleiman.
A recolha de lixo é um problema sério na região. São geradas 230 toneladas por dia em Zanzibar. Não há uma grande estratégia de recolha e há uma lixeira oficial em Kibele, onde se despejam os resíduos a céu aberto. Destas 230 toneladas, apenas 120 chegam a Kibele. As restantes são despejadas e queimadas em aterros informais.
Nesta ilha, onde à primeira vista tudo se assemelha a um paraíso, o lixo é cada vez mais uma questão a resolver e a Chako tenta dar alguns passos nessa direção. Esta empresa recolhe mais de cinco toneladas de vidro por ano e neste mesmo período transforma cerca de um milhão e meio de garrafas.
“Todas as garrafas têm propósito, nada é desperdiçado”, conta Happy. Além das várias encomendas internacionais, há peças que requerem uma grande quantidade de vidro. Por exemplo, são necessárias 60 garrafas de vidro para fazer cada metro quadrado do pavimento para exterior.
Plástico: o próximo passo no artesanato e nos currículos escolares
De momento, o vidro é a maior matéria-prima dos belíssimos objetos que saem da Chako. Contudo, o plástico à volta da ilha não passa despercebido e a empresa social tem trabalhado também neste sentido.
Simai Mohammed Said, ministro do Turismo e Património, foi claro nas suas palavras aos jornalistas: “Precisamos de nos livrar do plástico. Sabemos que temos um problema, mas também estamos a melhorar.” A pressão sobre o tratamento de lixo e a educação ambiental são temas fortes na Europa e que começam a ganhar alguma expressão em África. Na mesma visita, que decorreu no final de novembro com pompa, circunstância, muitos discursos e descontração, o ministro garantiu que “40% do orçamento do governo de Zanzibar é gasto em educação” e que “está a ser revisto o currículo para dar mais importância às questões ambientais”.
Neste momento, há três estudantes neerlandeses – duas de Design do Produto e outro de Desenvolvimento Social – a trabalhar para desenvolver novos objetos com estes resíduos. “Já queríamos ter começado em 2019, mas a COVID-19 atrasou o projeto e as máquinas só chegaram no ano passado. Agora, estamos só a recolher e a colecionar o plástico duro, as garrafas de plástico simples enviamos para Dar es Salaam [a capital da Tanzânia] para reciclar”, conta Hapiness. É contabilista, mas faz de tudo um pouco na Chako e diz que adora a possibilidade de ser multitask. Nota-se bem a facilidade com que se move, com que apresenta as pessoas que ali trabalham e todos os processos de transformação artesanal dos objetos.
Happy, como a tratam carinhosamente na empresa, tem 30 anos e começou a trabalhar ali em 2013. Depois, saiu para Dar es Salaam para tirar a licenciatura e regressou este ano. A oportunidade de sair da ilha para ir estudar para o continente e ter formação superior não é comum neste país ainda em desenvolvimento. Em Zanzibar, o acesso à educação e ao trabalho não é fácil, especialmente quando se é mulher.
Empoderamento feminino a contrariar os dados de um país em desenvolvimento
Apesar de a Constituição do país promover a igualdade de género e a participação das mulheres na vida política, social e económica, não é isto que acontece na prática. A Tanzânia faz parte da lista das Nações Unidas como um dos países menos desenvolvidos do mundo. E aqui as desigualdades entre géneros são gritantes.
Segundo o Estudo Demográfico de Saúde da Tanzânia de 2015/16 (o mais recente publicado), 15% das mulheres e 8% dos homens não têm qualquer tipo de formação, há muita violência física e sexual contra mulheres – quatro em dez foram vítimas de violência física até aos 15 anos e os números relativos à violência doméstica também são igualmente alarmantes.
Depois, os dados demográficos: uma em cada três mulheres casa-se antes dos 18 anos. As mulheres com menos estudos e com menos recursos financeiros têm mais filhos em comparação com as que têm mais estudos e condições económicas. Existe uma média de 5,2 filhos por mulher. E 27% das adolescentes (entre os 15 e os 19) ou já tinham sido mães ou estavam grávidas do primeiro filho.
Quem vem de passagem vê grandes sorrisos e braços abertos, mas a diferença de papéis entre os homens e as mulheres e a dificuldade no acesso ao trabalho pela pressão de assumir as tarefas domésticas é algo que passa longe dos olhares turísticos. Afinal, há mulheres a trabalhar nos hotéis, restaurantes e serviços da ilha, mas parece não ser assim tão simples. Há aliás muito preconceito no que toca a trabalhos que possam envolver contactos sociais com estrangeiros.
Na Chako, trabalham cerca de 40 artesãos e artesãs; 65% são mulheres e não é um acaso. O empoderamento feminino é um dos objetivos da empresa. Se para Annaloes o assunto é uma bandeira, para Suleiman é pessoal e esta foi uma preocupação clara quando começaram a criar o projeto: “O meu pai morreu quando eu era novo e eu vi a minha mãe educar sozinha cinco crianças. Vi como foi complicado educar-nos e acho fundamental que as mulheres possam ter os seus rendimentos para apoiar as famílias.”
Apesar de tudo, não parece complicado encontrar mulheres para trabalhar. “Trabalhamos até com comunidades mais pobres e não temos critérios quase nenhuns, a maior parte das mulheres estão motivadas, querem trabalhar e receber o rendimento”, explica Annaloes.
“Quando se casam, as mulheres precisam de ser autorizadas pelo marido a trabalhar”, explica a fundadora. Num país maioritariamente muçulmano, Annaloes sabe que é fundamental deixar as portas abertas e incentiva os maridos e famílias a visitarem o espaço. “É importante que vejam que o que estão a fazer é seguro, mas a cultura é uma questão. Acontece engravidarem, casarem e saírem, mas às vezes regressam porque também gostam de voltar a ter rendimento”, conta a neerlandesa.
Comércio justo e as rotinas de trabalho
Aqui trabalham mulheres dos 18 até aos 45 anos, mas a média anda nos vinte e poucos anos. Há trabalhos mais simples de limpeza dos copos, mas há outros de corte de vidro e de marcenaria.
“Todos as pessoas sabem fazer tudo, mas há quem goste de fazer algo mais específico e ficam nessa posição, mas encorajamos todos a fazer tudo”, explica. A empresa pertence à Organização Mundial do Comércio Justo – a World Fair Trade Organization (WFTO) que junta organizações que têm o objetivo de melhorar os meios de subsistência de produtores economicamente desfavorecidos e se regem por princípios tais como: transparência, respeito pelo bem-estar social e ambiental, pagamento justo, renúncia ao trabalho infantil, etc.
Quando as pessoas começam a trabalhar têm direito a transporte, comida e a algum dinheiro de bolso. Depois, começam a receber por peça. “Pagávamos salários, mas não trabalhavam quase nada e não estávamos a conseguir manter a empresa”, conta Annaloes. “Fomos aconselhados por um membro da WFO a pagar por peça e, desde que adotámos este sistema, as coisas estão a funcionar a 200%”, continua. “Agora, quem quer fazer mais e ter mais rendimento, fica focado nisso, mas quem quer relaxar mais um pouco ou tirar a tarde, também pode fazê-lo”, conclui.
De portas abertas estão também para os turistas, escolas e todos os que tenham interesse em conhecer melhor este projeto. Há mesmo visitas à empresa, em que se mostra todos os processos de transformação e se fala do impacto do lixo no ambiente e as suas nefastas consequências. Foram recentemente formados três guias para este novo projeto e espera-se que o número de visitas (e de compras) também venha a aumentar.
O turismo e os dois lados da mesma moeda: o rendimento e o desperdício
O impacto do turismo já é imenso e espera-se que continue a aumentar. Só em 2019, Zanzibar recebeu mais de 500 mil turistas. O ritmo abrandou um pouco com a pandemia, mas os últimos números de 2022 já revelam que se mantém em crescimento. O impacto do turismo no desperdício é notório quando ouvimos que “80% do lixo de Zanzibar é gerado por hotéis e restaurantes”, segundo dados da Chako.
Segundo o Censo da População e Habitação de 2022, Zanzibar tem uma das taxas de crescimento populacional mais elevadas do mundo. Ou seja, entre turistas e locais, a pressão populacional já se sente. E não é apenas no lixo. Apesar de 47% da população não ter acesso à eletricidade, “já se nota também sobrecarga em algumas infraestruturas e às vezes há cortes de luz”, exemplifica Annaloes.
“Há bastante pressão, mas a maior receita é também do turismo”, conta a fundadora, explicando a ambivalência desta questão. Afinal, dados do World Bank mostram que o turismo contribui para 27% do PIB de Zanzibar e estima-se que crie cerca de 60 mil postos de trabalho.
Entretanto, a TUI Care Foundation, uma fundação independente, mas associada e financiada pelos clientes do operador turístico TUI, juntou-se desde dezembro de 2019 ao projeto, para uma primeira fase que se concluiu nesta visita do ministro e de investidores às novas instalações. A inauguração do novo espaço feito de contentores em segunda mão, um escritório, um centro de formação, sala de reuniões e boutique marcou o fim desta primeira fase, mas dá o arranque para uma segunda e que se irá estender até junho de 2025.
Com a proximidade ao operador turístico, a fundação conseguiu parcerias com resorts e restaurantes para aumentar a recolha de vidro e de plástico. Só da indústria do turismo chegaram durante a primeira fase 5,1 toneladas de plástico e 1800 toneladas de vidro. Ao mesmo tempo que se aumentam as parcerias para a recolha, espera-se que até ao final da segunda fase possam ser transformadas 15 toneladas de plástico e 4000 toneladas de vidro e que se criem mais dez postos de trabalho.
Parte do investimento da fundação passa também por mentoria. Desde há alguns meses, os fundadores têm tido esta preciosa ajuda na gestão da empresa através da Áustria e via remota. Val Wilkinson é business partner na área de ski na TUI Kitzbuhel, especialista em Finanças, e juntou-se também à visita para conhecer pessoalmente Anneloes e Suleiman.
Também desta ligação mais próxima, espera-se que os produtos continuem a fazer parte da decoração dos hotéis e que os hóspedes comecem a fazer os tours e comprar artesanato – espera-se que cerca de 2400 turistas possam visitar a Chako até 2025.
Peças em forma de artivismo à venda em Portugal
Os candeeiros, copos, jarras e outros tantos produtos estão à venda na pequena boutique recentemente inaugurada, mas também numa loja no centro de Stone Town, a capital de Zanzibar.
Apesar de serem feitos artesanalmente no outro hemisfério e de o processo de exportação ainda estar em desenvolvimento, estes produtos estão já à venda em Portugal. Francisca Shearman, criadora da United to Remake (U2R), uma empresa também de cariz social criada no verão de 2021.
“Trabalhava no mundo corporativo já na área de responsabilidade social, mas durante a pandemia decidi mudar de vida, com o objetivo também de poder mudar a de outras pessoas”, começa por contar ao SAPO Francisca. Abriu a U2R que trabalha sobretudo com reciclagem e upcycling e quer contribuir para a sensibilização das pessoas e para passar a mensagem de que “o lixo pode ser sexy, bonito e voltar a ter vida”. “É uma forma de mostrar que o Design é uma forma de artivismo”, explica a fundadora da United to Remake.
A empresa trabalha sobretudo com parcerias e foi através de um amigo dos Países Baixos que conheceu o trabalho da Chako. “Adorei os produtos e quando conheci melhor o projeto, identifiquei-me muito”, conta Francisca, a representante da marca em Portugal e Espanha.
Os primeiros produtos chegaram agora em dezembro e já podem ser comprados online. Em breve, as garrafas usadas por turistas em Zanzibar que ganharam uma nova vida pelas mãos dos artesãos de Chako estarão disponíveis em algumas lojas em Portugal.
O SAPO viajou até Zanzibar a convite da TUI Care Foundation.