As mulheres, e homens, vão voltar a sair à rua hoje na Polónia, naquele que será o oitavo protesto contra o endurecimento da lei do aborto no país, que impede agora as mulheres de procederem à interrupção voluntária da gravidez (IVG) em caso de malformação do feto, obrigando-as a ter estes filhos mesmo com todos os riscos e problemas que a situação acarreta. «É um retrocesso civilizacional num país em que a lei em vigor é das mais restritivas em toda a União Europeia. Este tipo de decisões remeterá as mulheres para a clandestinidade», declara Alexandra Alves Luís, cofundadora da Associação Mulheres Sem Fronteiras.
Segundo o jornal Gazeta Wyborcza, o protesto de hoje em várias zonas do país está marcado para as 17h. Na passada sexta-feira, mais de 100 mil pessoas saíram às ruas em Varsóvia, capital da Polónia, para protestarem contra uma decisão que, segundo uma sondagem realizada pelo mesmo jornal, merece a contestação de 59% da população.
Recorde-se que o Tribunal Constitucional da Polónia, país de maioria católica, invalidou no passado mês de outubro um artigo que autorizava a IVG em caso de uma malformação do feto, sendo agora apenas possível a uma mulher abortar voluntariamente em caso de violação, incesto ou se a saúde da mãe estiver em risco. O resultado desta medida será a viragem novamente para a clandestinidade, assinala Alves Luís: «Quem acompanha esta questão sabe que, perante alterações legislativas que restringem o aborto, mulheres com acesso a recursos económicos irão deslocar-se a um país vizinho ou outro dentro da União Europeia e realizarão a interrupção da gravidez em segurança em clínicas privadas. As mulheres pobres, com menores recursos económicos, vão procurar resolver a situação de forma clandestina, com riscos enormes para a sua saúde, podendo inclusive morrer».
Dunja Mijatovi, comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, alerta no Twitter para a a mesma situação: «Eliminar as razões para quase todos os abortos legais na Polónia equivale a uma proibição e viola os Direitos Humanos. A decisão do Tribunal Constitucional vai traduzir-se em abortos clandestinos no estrangeiro para quem pode pagar e mais sofrimento para os outros».
A decisão agora tomada não pode ser contestada, mas só entrará em vigor depois de publicada no Diário Oficial do país, embora não seja claro quando isso acontecerá. Porém, o impacto deste tipo de decisão nas mulheres e na sociedade está estudado e é tremendo, assinala Alexandra Alves Luís: «As consequências para a saúde sexual e reprodutiva são enormes, mas também para a saúde mental. Assistimos a isso em Portugal, pois desde que o aborto por opção da mulher é permitido nunca mais morreu uma mulher em consequência desta prática e os números de interrupções voluntárias da gravidez decrescem todos os anos».
A decisão duramente criticada pelos ativistas pró-escolha é, por outro lado, aplaudida por quem defende a vida acima de tudo. À BBC, o vice-ministro das Relações Exteriores da Polónia, Pawel Jablonski, disse que a decisão protegia os fetos da discriminação por motivos de saúde: «É uma coisa cruel de se fazer, matar fetos com base no facto de eles poderem ser portadores da síndrome de Down. Devemos discriminar as pessoas com síndrome de Down? Essas pessoas têm exatamente os mesmos direitos que qualquer outro ser humano».
«Em Portugal, desde que o aborto por opção da mulher é permitido nunca mais morreu uma mulher em consequência desta prática»
Alexandra Alves Luís teme que leis mais restritivas como esta possam pôr em risco os direitos das mulheres conquistados noutros países na Europa: «A União Europeia assiste a atropelos constantes a nível dos direitos humanos das mulheres e raparigas e permite que os estados-membros atuem com total impunidade. São vários os exemplos de tentativas de impedir que as mulheres decidam sobre os seus corpos. Veja-se o caso português, em que o governo de direita - PSD e CDS, em 2015, aprovou no fim da legislatura quatro normas que restringiam o direito à IVG. Nós, mulheres, temos de estar sempre vigilantes e unidas porque só assim conseguiremos garantir os nossos direitos. As mulheres polacas são uma grande fonte de inspiração».
A ativista portuguesa recorda que os direitos humanos das mulheres, raparigas e meninas nunca foram atribuídos de mão beijada. «São séculos de lutas que as nossas antepassadas vêm empreendendo e que continuamos em pleno sec. XXI. Os recentes acontecimentos na Polónia relativos ao direito a abortar, mas também no Brasil, na Argentina, mostram-nos o que muitas de nós sabemos, que os direitos conquistados pelas mulheres não são eternos, existe sempre um risco de retrocesso e de que direitos conquistados nos sejam retirados».
Em Portugal, a interrupção da gravidez, enquadrada pela lei n.º 16/2007, pode ser realizada nas primeiras 10 semanas de gravidez em estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos. Pode obter mais informações sobre as unidades de saúde na sua área de residência através do SNS 24 – 808 24 24 24.