Quando chegaste ao campo de refugiados de Moria?
Cheguei depois do incêndio [que deflagrou a 8 de setembro 2020 e que destruiu o campo onde viviam 13 mil pessoas], as pessoas já estavam quase todas recolocadas no novo campo, o Moria 2.0. Agora estamos a enfrentar as condições super precárias do novo campo que é igual ou pior do que o anterior.
É a segunda vez que estou em Lesbos, já tinha estado em 2016 pela Plataforma de Apoio aos Refugiados portuguesa.
De onde vem este interesse e motivação?
Acho que as motivações vão mudando ao longo do tempo. Vamos crescendo e tendo um conhecimento mais alargado e mais consciente do mundo.
Também trabalhei em campos de refugiados noutros sítios, na fronteira com o Congo e no Bangladesh, com os rohingya. Também já tinha feito resgate no Meditarrâneo. Tenho dedicado a maior parte do meu tempo, quando não estou em Portugal a trabalhar, a esta temática dos migrantes e refugiados.
A primeira vez que vim para Lesbos foi no início da crise humanitária, em 2015/2016.
Senti uma obrigação enquanto europeia de dar uma resposta melhor, de tentar contrariar o arame farpado e a violência a que estas pessoas estão sujeitas.
Isto foi crescendo ao longo do tempo e por isso tenho-me dedicado ao ativismo, nomeadamente na organização Humans Before Borders (HuBB), sediada em Portugal, que faz esta denúncia do que se passa com os migrantes e refugiados.
Acho que as minhas motivações vêm da indignação e da responsabilidade coletiva e o facto de sermos responsáveis pelo que está a acontecer a estas pessoas – isto está a ser feito em nosso nome enquanto europeus, está a ser feito com o nosso consentimento e precisamos de criar uma onda de resistência e desobediência.
Claro que a assistência médica traz dignidade e esperança às pessoas e isso é urgentíssimo aqui, mas enquanto ativista sei que é urgente a criação de uma resistência política ao movimento atual.
Como é a tua rotina em Portugal e por que motivos decidiste ir para esse campo de refugiados?
Trabalho num centro de saúde em Freamunde, Paços de Ferreira, e antes de haver o fecho de fronteiras eu tentei vir para Lesbos durante seis meses, mas não foi permitido porque não poderiam abdicar de médicos no meio da pandemia. Usei as minhas férias e estou cá por quatro semanas.
Por um lado, queremos dar resposta a Portugal e à pandemia, é legítimo. Mas não podemos hierarquizar todas as coisas que estão a acontecer, nomeadamente na Europa. Algumas foram agravadas por causa da pandemia e outras continuam a acontecer silenciadas pela pandemia.
É um equilíbrio difícil. Claro que podia pensar “vou ser só médica e dedicar-me aqui à pandemia e à situação em Portugal", mas a situação da Europa e do mundo não nos permite o privilégio de nos dedicarmos só a uma coisa.
Como é o dia a dia em Moria?
Nós vivemos fora do campo, a dez minutos de carrinha. Todos os dias vamos para o campo e fazemos turnos de seis horas, dependendo das necessidades.
Temos uma clínica que é uma tenda. Tínhamos uma estrutura um bocadinho melhor no campo de Moria mas agora no novo campo é uma tenda precária e é lá que passamos o nosso dia e que tentamos dar assistência.
Tratamos de doentes crónicos, com diabetes, hipertensão, epilepsia e que precisam de ser seguidos e também de todas as doenças agudas, das respiratórias às gastrointestinais ou dermatológicas.
Além disso, há também o tratamento de feridas agudas, pela equipa de enfermagem, e depois toda a parte da emergência, que vai acontecendo muito no campo.
Ao final do dia saímos do campo e voltamos para casa. Ainda temos algum trabalho para fazer, como inserir os dados das pessoas, atualizar medicações, o que é preciso levar no dia seguinte, etc..
Qual é o sentimento de quem anda no terreno?
Todo os dias estamos no campo, damos cuidados médicos e assistência mas todos os dias vimos embora do campo para as nossas casas e as pessoas vão dormir para as suas tendas e voltam para o campo onde são violadas, espancadas, maltratadas e sujeitas a uma violência indescritível, e estas pessoas não estão nesta posição porque fizeram algo de errado ou porque não têm sorte na vida.
A posição que ocupam neste momento é imposta pelos governos europeus e nomeadamente a Grécia que as torna vulneráveis ao ponto de as deter num campo e de as segregar, colocando-as num local onde têm restrição de movimentos e onde as condições são desumanas e os seus direitos humanos não estão assegurados.
É muito difícil, por um lado tentamos dar assistência, por outro lado, sabemos que a assistência médica e humanitária em geral nunca vai ser suficiente enquanto estas pessoas estiverem a viver em campos de refugiados.
Chegamos ao fim do dia com a sensação de que o que quer que façamos nunca as vai libertar da vulnerabilidade que lhes foi imposta e da violência. É muito frustrante, nós cuidamos de um lado e vem alguém e magoa do outro.
Enquanto estivermos a dar assistência médica, a assistência não as liberta, não as tira daqui. Não chega. É uma crise política. Não é uma crise humanitária, se fosse uma crise humanitária, estaria resolvido, mas não está
Sinto que a solução passa por movimento político que devolva dignidade a estas pessoas, que as liberte e evacue e as coloque em países europeus. É simples mas durante os últimos cinco anos não tem sido feito.
De que forma é que achas que a pandemia teve e está a ter impacto em Moria?
No início, em março, [com a Humans Before Borders] lançamos uma campanha em Portugal para ajudar uma ONG aqui em Lesbos, e conseguimos 60 mil euros em dez dias. Foi incrível e isto lembrou-me de que as pessoas são boas e que não querem que haja outras pessoas nestas condições.
Por outro lado, trouxe várias dificuldades à assistência humanitária.
A pandemia colocou os países em lockdown e fechados dentro de si próprios. E isso faz com que seja mais fácil ignorar o que acontece do outro lado da fronteira. Cada país cuida dos seus e esquecemo-nos de que há pessoas que não são cuidadas por ninguém.
Houve uma vulnerabilidade acrescida e as pessoas que não são cuidadas por ninguém ficaram ainda mais desprotegidas. Com as medidas de confinamento, de restrição de voos e com o fecho das fronteiras, muita da ajuda humanitária não chegou onde é precisa.
Isto fez crescer em cada pessoa a sensação de ter de se proteger a si própria. Acho que temos aquela sensação de que chegamos a casa, fechamos a porta, desinfectamos tudo, lavamos as mãos e estamos seguros e esquecemo-nos de que do outro lado da porta há muitas pessoas que não estão seguras por toda a Europa.
Em relação a 2016, que diferenças achas que existem?
Há um acumular de anos de irresponsabilidade e de violência e isso nota-se.
Dizem que a real tragédia foi Moria ter ardido...? Não! Moria já ardia há muito tempo.
A tragédia é que durante anos temos sujeitado e exposto estas pessoas a esta violência. Não é de agora. É uma violência que se acumula e isto a um nível que não é tolerável e isso é muito difícil de perceber.
Na transição para o novo campo a solução normal deveria ser evacuar as pessoas. Não deviam ter entrado num novo campo. Elas já estavam na rua. Os estados europeus não deram uma resposta adequada.
O campo é novo, a violência é a mesma.
O campo está aberto das 08h às 20h, mas nem sempre se pode sair, há uma restrição de movimento dentro do campo também, há arame farpado a toda a volta, e está militarizado ao máximo. Há algumas pessoas que se recusam a entrar no campo porque o campo é um centro de detenção e têm receio de não poder sair quando querem.
O governo está a tentar fechar o campo de Kara Tepe e de Pikpa [ambos também em Lesbos], dois campos para pessoas vulneráveis, para transferir todas as pessoas para este campo desumano de Moria.
Criminalizar quem faz a travessia é a punição. Na Europa em 2020, culpabilizamos quem é refugiado e esta é a maneira como o fazemos.
Esta também é uma mensagem que é intencionalmente passada para que mais pessoas não venham, para que passem a mensagem e a ideia de que as condições são tão más que ninguém queira vir. Há pessoas a suicidar-se no campo diariamante.
Se as sujeitarmos a condições que as façam prefir morrer nas bombas da Síria, pelos talibã no Afeganistão ou na travessia, se as desumanizarmos ao ponto de quererem morrer, certamente que os contactos que têm na Turquia ou nos países de origem serão persuadidos a não vir – é uma tática consciente e política.
Há uma expressão curda que diz: “Um cordeiro que está morto não tem medo da faca”. Toda a violência a que estão sujeitos, seja nos países de origem ou nas travessias ou a tentar chegar a algum lado não é pior do que morrer lá, por isso vão tentar sempre vir.
Como é a relação com a população local da ilha?
Comparando com o que sentíamos em 2016, há um desgaste enorme da população local. Há um desgaste de tantos anos de ausência de solução, e um campo de refugiados no meio de uma vila tem também um impacto nas comunidades, que às vezes é desvalorizado mas é real.
Há um ambiente agora muito mais pesado do que havia em 2016. Há esta sensação de invasão a toda a hora. Já não há uma abertura tão grande às ONG. Há uma separação entre três grupos de população: os locais, os refugiados e as ONG.
Claro que os refugiados são os que estão segregados e marginalizados mas também há uma separação entre a comunidade grega local e a comunidade internacional de voluntários humanitários. E estas relações são difíceis. Há também algumas movimentações de extrema-direita que são pontuais mas que causam inquietação.
Há também alguma perseguição de ativistas e humanitários que não existia antes. Alguns ativistas foram levados pela polícia para interrogatórios de várias horas. Não podemos denunciar nem fotografar sob ameaça de sermos expulsos do campo e de não podermos trabalhar.
Quando não estás no campo a trabalhar, como geres o teu tempo livre e o que fazes para te distrair?
É sempre preciso um tempo de transição entre o campo e casa e tentar não carregar tudo, só o necessário. Temos sorte porque a ilha é incrível, podemos ir ao mar, nadar um bocado, ler, escrever ou estar sozinhos.
Independentemente das estratégias, há uma frustração que carregamos que tem que ver com a responsabilidade de as pessoas que vivem no campo estarem confinadas a este sítio.
É uma gestão de frustração muito exigente, mas temos de aprender a lidar com ela, para estarmos capacitados ao máximo para lidarmos com as coisas que vivemos diariamente. É o nosso trabalho de casa, para ter a certeza de que cuidamos da melhor maneira.
O que pode cada um de nós fazer se quiser ajudar?
Nós [na Humans Before Borders] lançamos uma campanha de evacuação de Moria 2.0.
Há uma série de cartas dirigidas ao primeiro-ministro e a ministros portugueses a pedir que ponham em prática o acordo bilateral com a Grécia, que cumpram os acordos que fizeram de recolocação dos menores não acompanhados, que se esforcem e que façam mais porque o que têm feito é completamente insuficiente.
Há a chamada de atenção e pressão que tem de ser feita pela sociedade civil dirigida aos governos e aos decisores políticos, para que saibam que não decidem estas coisas em nosso nome e que não têm o nosso consentimento quando o que decidem viola constantemente os direitos das pessoas que aqui estão.
Há alguns protestos que temos organizado em Lisboa e no Porto. Tentamos dar voz à sociedade civil para que não se esqueça que tem essa voz e temos de exigir uma Europa justa – nem é solidária, que não estamos a fazer nada de extraordinário, é justa.