É através dos retratos e das histórias das pessoas que vivem no campo de Moria que o jovem iraquiano partilha com o mundo que se está a passar, aqui, na Europa. Depois, quando este “inferno” acabar, quer continuar o trabalho noutras fronteiras. "Alguém tem de o fazer”, conta ao SAPO numa entrevista em jeito de denúncia, com o desejo de que a mensagem seja também um manifesto.
Como chegaste a Lesbos e por que motivos?
Eu deixei o Iraque por muitas razões, mas a principal é que sentia que a minha vida estava em risco. Então, fui para a Turquia, fiquei lá três meses e vim pelo mar para a Grécia, para esta ilha, Lesbos.
Estavas sozinho ou com a tua família?
Sozinho. Completamente sozinho.
Quando chegaste à Grécia sentiste que estavas seguro?
Não, de modo nenhum. No início eu achei que sim, mas depois vi as máfias em Moria de que estava a fugir.
Como foi a tua chegada?
A Guarda Costeira apanhou-nos no mar e levou-nos de ferry para o porto de Mitilene. Ficámos à espera umas três ou quatro horas e depois levaram-nos de autocarro para Moria, para o campo de refugiados.
Quando se chega há a Tenda de Recepção. É uma tenda para umas 50/60 pessoas, mas éramos uns 200 ou 300.
Alguns tinham camas, mas havia pessoas a dormir no chão e por todo o lado: mulheres, homens, crianças, novos e velhos, uma grande mistura de nacionalidades também — a única coisa em comum era o mar que tínhamos cruzado.
Foi horrível. Os primeiros dias em Moria foram os piores.
Eu sabia que não era bom, mas eu estava a fugir da morte no Iraque. Eu só queria fugir para qualquer lado. Queria fugir do inferno e vim encontrá-lo na aqui na Grécia.
Como era a tua vida no Iraque?
A minha vida até 2016 era uma vida completamente normal e maravilhosa. Eu sou de uma boa família e éramos muito próximos. Passei os meus melhores anos até 2016, cheguei até a jogar na seleção iraquiana de futebol até aos 17 anos.
Estava na escola, estudei Ciência dos Computadores e já me tinha inscrito na universidade para estudar Eng. Informática. Também trabalhei como taxista e fotógrafo de casamentos durante algum tempo para poupar dinheiro para ir para a universidade, mas entretanto tive de sair do país.
Com a guerra, o meu pai decidiu voluntariar-se para o exército. Eu decidi voluntariar-me também. Estive seis meses no exército, mas vi muitas coisas de que não gostei, não eram coisas humanas, eram coisas horríveis.
Fiz um relatório para sair e vir embora, mas desde então tenho muitos problemas no Iraque. Ainda há poucos meses, voltaram a ameaçar a minha família.
Como é a tua situação agora?
Eu vivi em Moria durante um ano e meio. Depois, o meu pedido de asilo foi aceite e desde então tenho o estatuto de refugiado. Agora já não tenho permissão para receber dinheiro do governo ou de viver em nenhum campo.
Vamos trabalhar ou fazer o que for preciso para sobreviver. O problema é que se queremos trabalhar, precisamos de um número de contribuinte.
Mas se vamos requerer um número de contribuinte, pedem-nos o contrato de trabalho. Se não podemos trabalhar, então não podemos arrendar um apartamento nem comer.
Ficamos perdidos no meio disto e há muita gente a dormir na rua, mesmo no continente, em Atenas, na Praça Vitória. Há centenas de pessoas nesta situação.
Metem-nos numa condição como se nos quisessem matar de novo.
E como está a situação no campo de Moria 2.0?
Eu vou todos os dias ao campo de refugiados. Mesmo antes do confinamento na Grécia, muitas vezes não deixavam as pessoas saírem dos campos. Na verdade, metade da população do campo não saía.
Não há chuveiros nem nenhum sítio para tomar banho. Há algumas organizações que têm chuveiros,mas estão à espera de permissões para os poderem instalar no campo.
As condições são bem piores do que no outro campo. Parece que o Governo está a fazer de propósito por nos termos portado mal no outro campo.
Os homens solteiros não podem sair da tenda quando querem. Têm um horário durante o dia: das 12h00 às 20h00. São oito horas por dia. No resto do dia, não podem sair. Estão numa prisão.
Há polícia por todo o lado. São centenas. Há uns dias um refugiado foi ter com um polícia a pedir ajuda porque lhe tinham roubado o telemóvel e disseram que não podiam ajudar.
A questão é: porque é que há centenas de polícias se não é para ajudar?
Há duas refeições por dia: o pequeno-almoço (é entregue água e uma maçã) e o almoço. A comida é mesmo muito má e muitas vezes vem em más condições.
Se ficamos doentes, não nos querem levar para o hospital porque não há vagas. Têm muitos casos de coronavírus.
Se temos a sorte de sermos levados a um hospital, temos de fazer o teste da COVID-19. Temos de pagar e, se não se fala a língua e não se sabe onde se faz o teste, isto é ainda mais complicado. Se for para uma pessoa da ilha há sempre um espaço, mas para nós não há espaço.
Sinto que nos estão a pedir para morrermos. Há muita violência. É muito perigoso estar aqui.
Como se tem lidado com a pandemia no campo de Moria?
Há pessoas que estão com muito medo do vírus, outras não ligam muito porque têm problemas muito maiores.
Quando eu trabalhava no IRC — International Rescue Committee (Comité Internacional de Resgate), trabalhava num programa de proteção de menores, com psicólogos e assistentes sociais. O que percebi é que talvez 90% das crianças estão traumatizadas. Há crianças que são vítimas desde muito novas, que quando se pede para fazer um desenho, desenham o mar com corpos mortos ou aviões a atirar bombas.
Há também pessoas que têm doenças crónicas e não têm acesso à sua medicação. E a pandemia deixa de ser um problema.
Há aqueles que não saem das tendas, nem vão para as filas da comida, porque têm medo de apanhar o vírus. As casas de banho portáteis são usadas por toda a gente e não há água corrente também. A água que dão de manhã ao pequeno-almoço é usada muitas vezes para higiene ou para cozinhar.
Escreves que as pessoas precisam de comida, camas, banho e principalmente segurança. O que é para ti segurança?
Segurança significa muita coisa. As pessoas precisam de uma casa. Não de uma tenda, mas sim de uma casa segura. Não há escola nem local seguro para as crianças brincarem.
Não nos podemos esquecer que há muitas máfias no campo. Há muitas pessoas más. Há sempre pessoas boas e pessoas más em todo o mundo. Não é só nos campos de refugiados, é no Reino Unido, na Alemanha e em todo o lado. Mas há máfias no campo que o tornam muito violento e inseguro.
Salvem as pessoas que não têm acesso a comida, a segurança, a cuidados médicos. É inverno, está frio e vai haver muitos mais doentes até ao fim do inverno.
Há pessoas que estão em campos à espera há três anos. Há algumas muito doentes e que não podem sair da ilha.
Alguns são sírios e estes estão a receber muitas rejeições aos pedidos de asilo. Não podem enviá-los para a Turquia nem para o continente grego, então estão presos nessa situação ninguém sabe até quando.
É uma das razões pelas quais fotografas? Como começou este interesse?
Um dia estava no campo e decidi: “Basta! Eu quero mostrar ao mundo o que se está a passar. Quero mostrar os desafios pelos quais estamos a passar, quem somos e porque estamos aqui. Somos seres humanos como quaisquer outros.”
Quero contar as nossas histórias como alguém que está dentro, não como alguém que está fora e só percebe o que quer perceber. Quero mostrar o que vejo todos os dias.
Pedi a várias organizações para arranjar uma câmara, mas um amigo acabou por me emprestar uma por dois dias. Comecei a tirar fotografias. Às imagens, juntava algumas linhas e publicava no Instagram. As pessoas interessaram-se e começaram a ajudar-nos.
Diziam-me para não parar de contar a nossa história ao mundo. Entretanto, trabalhei cinco meses numa quinta e juntei dinheiro para comprar a minha primeira câmara. Fiz o meu site, onde também vou partilhando o que vejo.
Como é o teu quotidiano?
Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Costumo fazer duas coisas. Trabalho com o IRC e quando termino trabalho como fotógrafo.
Há cerca de duas semanas a polícia parou-me no campo de Moria e ameaçaram-me por estar a fotografar. Disseram que ia ter problemas e que me iam mandar para o sítio de onde tinha vindo. Foram racistas e tem sido um problema poder fotografar à vontade.
Continuo a fotografar, mas não tanto como antes.
Como tem sido o impacto do teu trabalho?
Recebo muitas mensagens no meu Instagram. As pessoas começaram a agir. Já recebi mensagens do México, do México! a enviarem-me caixas com roupas. É bom saber que as imagens têm impacto. Sinto que posso ajudar os outros a contar as suas histórias. As pessoas querem mostrar-se e mostrar quem são.
Contas histórias muito duras mas há sempre alguma beleza nas tuas fotografias. Como geres estes contrastes e os juntas na mesma imagem?
Sempre que tiro uma fotografia, eu sei que é uma imagem triste. A situação é horrível mas dentro das pessoas existe sempre algo positivo e é isso que torna as imagens bonitas. Essa positividade sente-se nos olhos das pessoas, nas suas ações e nos seus sorrisos. Sente-se esperança e é isso que faz com que haja beleza.
E para ti qual é a esperança que tens para o futuro?
O meu maior desejo é fechar este campo. Eu não quero ninguém no mundo, nem mesmo os meus inimigos, a passar pelo que eu passei neste campo. É realmente difícil. Daria tudo para fechar este campo.
Depois quero continuar pelo mundo. Tenho o objetivo de ir para o Sudão do Sul, quero correr o mundo. Tenho o plano de ir ao Sudão do Sul. Há um exército com menores que foram para a guerra. Eu também era menor e estive na guerra. É horrível e não posso explicar a tristeza de nos colocarmos num sítio tão horrível como uma guerra. Quero ir lá e documentar o que se está a passar.
Mas não seria de esperar que, assim que conseguisses sair de Lesbos, quisesses sair dessa realidade de guerra e dificuldades?
É uma realidade no mundo. Alguém tem de falar sobre isso. Isto tem de vir a público. Há muita gente que também não aceita que outros humanos passem por estas situações miseráveis. Não quero isto e há muita gente que não quer. Mesmo aqui vê-se pessoas na rua a tentar ajudar desconhecidos.
É esta a beleza do nosso mundo: pessoas a ajudarem-se umas às outras, não é?
Como queres fazer isso? Trabalhar para uma ONG ou para um jornal ou agência?
Quero ser sempre freelancer. Não quero seguir os critérios ou políticas de um jornal ou de uma ONG. Quero documentar o que vejo e o que acho certo fazer.
Aluguei um apartamento e vivo por mim. Comecei a trabalhar com a Choose Love recentemente, por várias razões: trabalham com cerca de vinte organizações na ilha e mais de cem à volta do mundo. O meu contrato termina no fim do ano, mas por enquanto trabalho como fotógrafo para eles e assim as minhas fotos podem chegar a mais pessoas e ter mais impacto.
A Choose Love é uma organização incrível e fazem um trabalho maravilhoso e há mais algumas assim, mas acho que grande parte das ONG que estão no terreno são más, não acho que estejam aqui para ajudar, estão aqui para fazer os seus negócios e para se servirem a elas próprias.
O que se pode fazer para ajudar?
Na verdade, mandarem ou comprarem coisas é a melhor opção porque o campo está fechado, mas há muitas mais formas: escrever aos seus governos, chamar a atenção para o assunto, partilhar informações com as pessoas à volta. E doar, com cuidado a quem se pode doar. Claro que eu direi a Choose Love porque engloba muitas organizações e vejo as doações a serem cumpridas. E protestem.
Vais ficar até quando na ilha?
Enquanto houver Moria e fizer a diferença, eu fico aqui. Tenho a oportunidade de dizer ao mundo o que se passa aqui. Não vou perder esta oportunidade que tenho entre as mãos. Milhares de pessoas não têm essa oportunidade de se apresentarem ou terem representação, e mostrar a realidade. Vou ficar cá até a situação mudar.