Qual a sua resposta à pergunta ‘A maioria das coisas que lhe acontecem na vida são justas?’ A resposta dependerá da geografia onde vive. Em Portugal, menos de metade das pessoas (43% ) têm uma perceção positiva de justiça na sua vida, segundo um estudo do Centro de Pesquisa da Comissão Europeia, Joint Research Centre (JRC). Na generalidade, este estudo indica que a maioria dos europeus do Norte percebe a sua vida como justa, enquanto que os europeus do Leste e do Sul tendem a ter mais perceções negativas de justiça.
Os especialistas do JRC analisaram os resultados de uma pesquisa Eurobarometer para entender as perceções de justiça em toda a Europa e concluíram que, em média, cerca de metade dos adultos europeus concorda fortemente (11%) ou concorda (43%) com a afirmação de que as suas vidas são justas. Uma parcela considerável dos entrevistados (cerca de 22%) discorda ou discorda fortemente.
Mas perceções médias de justiça diferem amplamente entre os países da UE. No geral, os países do Norte e Oeste da UE apresentam níveis mais altos de perceção de justiça, enquanto que os países do Sul e do Leste da Europa são mais baixos. Dados específicos de cada país mostram que apenas 26% dos gregos, 36% dos croatas e 39% dos búlgaros e cipriotas acreditam que sua vida é justa. Em Portugal, como já dissemos, apenas 43% das pessoas têm uma perceção positiva de justiça na sua vida, ou seja, 57% sentem alguma frustração neste sentido. Por outro lado, observações de justiça particularmente positivas são sentidas na Irlanda (79%), Dinamarca (78%) e Finlândia (76%).
Na realidade, se pensarmos em ganhos económicos, os povos do Sul terão razão para se sentirem frustrados. Mas, do outro lado da balança, existem aspetos positivos no Sul que os povos mais a norte invejam, como o sol, a vida mais solta, o convívio, os relacionamentos mais próximos… e esses aspetos são essenciais para uma vida plena e equilibrada.
GRÁFICO 1: ‘A vida é justa?’ - Percentagem de concordância
Mapa mostra a percentagem de pessoas num país que concorda com a afirmação ‘a maioria das coisas que acontecem na minha vida são justas’. Em Portugal, o valor está abaixo dos 43%.
Mas, então, como ler estas diferenças acentuadas de perceção na mesma região? Para João Pombeiro, sociólogo, diversos fatores contribuem para diferentes perceções sobre se a vida é ou não justa. «As perceções humanas sobre o que acontece são criadas pelos filtros mentais (princípios, valores, crenças, regras sociais, padrões culturais, religiosos, experiência de vida, etc.). Este processo interior é igual no ser humano, sem diferenças de maior entre europeus do Sul e do Norte. O que difere é o conteúdo e valor atribuído a cada filtro e a cada fator. Por exemplo, a Teresa pode valorizar pouco a igualdade de acesso à educação e ver que isso está muito presente na realidade que conhece (família, amizades, país). Daí pode resultar, parcialmente, numa perceção de ‘vida justa’. Já o José pode valorizar muito a igualdade de acesso à educação e ver que esta existe muito pouco na sua geração; e, daí, considerar ‘a vida pouco justa’. Assim, aquilo a que a pessoa dá atenção e aquilo que ela valoriza refletem-se na sua perceção. O conjunto de filtros condiciona a perceção interna que se cria do mundo externo», sintetiza.
O prolongar do sentimento
Esses filtros que condicionam a perceção interna incluem as crenças que se foram apreendendo ao longo da vida, junto da família, na escola, no trabalho no círculo de amizades, etc. mesmo que não tenham correlação direta, como é o caso de que ‘quem tem mais estudos terá mais sucesso na vida’. «Para mim, em todo este processo, existe um fator decisivo: ao aferir se o que lhe acontece é justo, a pessoa cria uma balança mental (consciente ou inconscientemente). Num dos pratos da balança coloca ‘o que acontece na realidade’ e, no outro, ‘o que acha que deveria acontecer’. As respostas dos europeus do Norte indicam que estão a ver estes dois pratos mais equilibrados; enquanto as perceções dos europeus no Sul mostram a balança menos equilibrada. Disso mesmo parecem ser indicadores os números referidos no relatório, por exemplo, em relação a desigualdades em rendimentos, acesso à educação e proteção social no desemprego», explica João Pombeiro.
As perceções de justiça também diferem acentuadamente entre os grupos sociodemográficos, com níveis comparativamente baixos de perceção de justiça entre indivíduos desempregados e aqueles com baixos rendimentos. Para entender como essas perceções são moldadas, o relatório explora várias medidas de desigualdade. Desigualdades muito grandes em rendimento, educação ou saúde podem fazer as pessoas sentirem que a vida não é justa.
Embora a desigualdade de rendimento em toda a UE tenha diminuído levemente desde a última grande crise em 2008, segundo o relatório, esta aumentou no sul da Europa. A escolaridade também ainda depende muito das circunstâncias da família. E há evidências de que os sistemas de proteção social e tributação são cada vez mais desafiados pela digitalização da economia e pelas mudanças nas relações de trabalho.
Na UE, cerca de 83% das pessoas que têm pelo menos um pai e um avô com ensino superior (nível universitário) concluem o ensino superior. E apenas 31% das pessoas com avós e pais com menos educação fazem o mesmo. Por outras palavras, as hipóteses de frequentar o ensino superior são 2,7 vezes maiores no primeiro grupo do que no segundo. Essa diferença é mais acentuada no Sul e Leste da Europa do que no Norte da Europa.
Segundo João Pombeiro, «a nossa cultura, como conjunto de comportamentos repetidos e transmitidos regular e continuamente, tem a sua quota parte na influência da perceção individual, claro. Mas não leva cada pessoa a responder que a sua vida é mais ou menos justa. A resposta/perceção terá mais que ver com a experiência e consciência de cada pessoa sobre a sua vida em sociedade. Isto para dizer que há mais do que a cultura, ou a última notícia na televisão, a influenciar a perceção da pessoa. Neste processo, destaco a perceção que a pessoa tem sobre se os resultados, e a vida, que tem são efeito de circunstâncias externas sobre as quais nada pode fazer. Ou se são produto, mesmo que parcialmente, das suas ações. Em Portugal, observo mais pessoas a acreditarem que pouco ou nada podem fazer para mudar algumas coisas que acontecem nas suas vidas do que pessoas a acreditarem poder fazer algo em relação ao que lhes acontece».
Toda esta engrenagem acaba por fazer prolongar um sentimento de maior ou menor frustração perante a vida. Assim sendo, em que medida a nossa perceção de justiça nos pode influenciar na relação que temos com a sociedade? Para o sociólogo, «a perceção de pouca justiça, ou vida pouca justa, conduz a menores níveis de envolvimento e de contributo para a sociedade, para o bem comum. Pode levar até à desagregação e à saída do círculo social, da comunidade local, da sociedade em que a pessoa esteja inserida. Acredito que, em parte, é por isso que a União Europeia criou e continua com os mecanismos de solidariedade, os apoios comunitários para regiões menos desenvolvidas, entre outras medidas. Que permitam criar maior equilíbrio, mais condições e mais oportunidades. Procurando equilibrar a balança e facilitar recursos (além dos monetários), de forma a serem criadas condições, para que cada pessoa possa, também, viver uma vida justa».
O relatório mostra que, durante o período 2006-2016, a desigualdade de rendimento foi maior na área geográfica mais pobre da UE, na Europa Central e Oriental. Foi o mais baixo na área geográfica mais rica, o Noroeste.
GRÁFICO 2: ‘As diferenças nos rendimentos das pessoas são demasiado grandes?’ - Percentagem de concordância
Gráfico mostra a percentagem de pessoas num país que concorda com a afirmação ‘As diferenças nos rendimentos das pessoas são demasiado grandes’. Em Portugal, o valor é o mais alto de todos, na ordem dos 96%.
Embora tenha ocorrido uma tendência ligeiramente decrescente da desigualdade em toda a UE nesse período, o cenário é mais misto quando se olha para diferentes áreas geográficas. A desigualdade de rendimento aumentou no sul da Europa entre 2007 e 2013. Na Europa Central e Oriental, diminuiu. A desigualdade de rendimento quase constante em toda a UE esconde aumentos no nível de desigualdade no sul da Europa, assinala o relatório.
Crise separa ainda mais as águas
À medida que a Europa começa a emergir desta crise pandémica, a justiça e as perceções de justiça são importantes para traçar estratégias. Segundo o relatório, estas podem ter um impacto real na felicidade e em como as pessoas se envolvem com outras pessoas na sociedade. Também está claro que os efeitos económicos e na saúde derivados da pandemia de COVID-19 estão a ser suportados de maneira desproporcional por aqueles que estão menos bem, ressaltam os especialistas do JRC.
O coronavírus abalou profundamente a Europa e o mundo, testando os sistemas de saúde e bem-estar, as sociedades e economias e nosso modo de viver e trabalhar juntos. Para proteger vidas e meios de subsistência, reparar o mercado único e promover uma recuperação duradoura e próspera, a Comissão Europeia propõe-se aproveitar todo o potencial do orçamento da EU, ambicionado uma recuperação sustentável, uniforme, inclusiva e justa.
Este relatório do CCI "Além das médias - justiça numa economia que trabalha para as pessoas" aborda algumas das dimensões de justiça mais pertinentes, como desigualdade de rendimentos, a desigualdade educacional e a cobertura incompleta dos sistemas de seguridade social. Assim, oferece um instantâneo do estado de justiça na Europa e é uma referência sobre a qual algumas das consequências da atual crise podem ser avaliadas.
Como podemos, então, fazer um caminho juntos na Europa se achamos que os vizinhos do lado são mais bem tratados pela vida do que nós? «Acredito que com ações que elevem níveis de empatia, de consciência sistémica e social e de autoestima que facilitem transformação de perceções, verdadeiro diálogo e colaboração. Isso acompanhado de implementação real e eficaz de políticas que diminuam diferentes discriminações, e outros fatores, que alimentam o perpetuar de situações vividas e vistas como injustas», sintetiza o sociólogo.
Mas o trabalho tem de ser feito também a nível individual, para olhar para a vidas com olhos menos dramáticos. Pois «a ‘galinha da vizinha é melhor do que a minha’ coloca a atenção no que está fora do controlo e da capacidade de influência pessoal. Também promove um abdicar da responsabilidade pessoal por fazer a respetiva quota parte para cocriar, viver e ver a sua vida como justa. Nada disto invalida desejar mais condições, mais oportunidades, uma vida mais justa. Pelo contrário, sustenta. Ao nos focarmos nas circunstâncias presentes, no que controlamos e no que podemos fazer», finaliza. Pode ser um caminho a seguir para alterar estes pratos da balança.