“Onde é que vai ser hoje?”, perguntavam alguns corvinos a Ching quando a viam passar pelo segundo dia com o carrinho ambulante. O primeiro dia aguçou o apetite e a curiosidade foi passando de boca em boca. Os que já tinham provado ajudavam a desmistificar o exotismo da comida taiwanesa e apareciam pessoas já decididas – “disseram-me que era tão bom que vim cá provar” foi a frase que se foi repetindo ao longo dos dias.
Foram dez os dias que Ching esteve no Corvo, na residência artística promovida pelo projeto "9x9: Artistas São Ilhas, Ilhas São Artistas", entre o dia 22 de outubro e o dia 1 de novembro, uma iniciativa do Azores 2027 – candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura 2027, em articulação com todos os municípios e ilhas do arquipélago.
O Corvo, por ser a ilha mais pequena, aguçava-lhe a curiosidade, e na pesquisa para preparar a sua candidatura à residência e conseguir aproximar-se do que seria a realidade local começou por procurar a vila no Google Street View. Não encontrou. E este foi o ponto de partida para a sua instalação – fazer o seu próprio mapeamento das ruas do Corvo. Mais do que a paisagem urbana interessava-lhe “documentar algo mais humano do que as ruas”.
Ching-Yu Cheng nasceu em Yilan, cresceu em Taipé, capital de Taiwan, e licenciou-se em Arquitetura. Foi inspirada pela obra de Siza Vieira que se interessou por Portugal e aterrou no Porto, em 2013, onde vive desde então, para fazer o mestrado em Arte e Design para o Espaço Público, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
Nos mercados noturnos de Taiwan aprendeu que a comida une pessoas. E juntar comida à ideia de mapear a paisagem corvina foi a forma de interagir com as pessoas locais e de as trazer a participar na instalação móvel.
Nem tudo correu como o previsto, e a meteorologia obrigou a muitas mudanças de planos. “As ruas e o tempo não permitiram fazer exatamente o queria, eu queria ir cozinhando e atraindo as pessoas enquanto passava e tive de mudar o plano”. Ching conta que os dias foram muito intensos e com muito trabalho. A instalação móvel obrigou-a a multiplicar-se em funções, curiosamente à imagem do que acontece com grande parte dos habitantes da ilha. E em poucos dias Ching foi artista, marceneira, videógrafa, cozinheira e vendedora ambulante.
Para quem foi acompanhando o processo, tudo pareceu muito fluído, não fosse a conjugação perfeita entre a aparente tranquilidade e empenho de Ching e a energia contagiante e incansável de Andreia Silva, a produtora local do projeto.
Além do acompanhamento desta residência artística, Andreia é também a cara da candidatura do Corvo ao projeto Azores 2027. Em outras funções, é técnica superior do EcoMuseu do Corvo, presidente da Associação Corvo Vivo e integra o grupo de teatro amador. Conhece o nome de todos os moradores da ilha e, interessada e formada em Património Cultural, tem sempre uma curiosidade ou história para contar. Fala-nos de tudo, das tradições do Corvo, dos araçás, pequenos frutos de cor vermelha que crescem do outro lado da ilha, e até do Espírito Santo, um culto religioso muito conhecido pelos açorianos, ligado à Igreja mas independente desta e que nas outras ilhas tem o nome de Império.
Ching confessa-se uma sortuda por trabalhar com Andreia, principalmente num local em que os habitantes sabem de cor o horário do avião e do barco. E nesta altura do ano, há dias em que a ilha fica por sua conta, entre a cor escura da terra do vulcão e o verde vibrante de cheiro tropical. Existem menos de meia dúzia de mercearias, uma padaria, um café/snack-bar e um restaurante. Ching trouxe uma mala cheia de comida taiwanesa, que comprou em lojas asiáticas do Porto. Além dos noodles de feijão-verde, algas, cogumelos desidratados, vieram na sua bagagem as rodinhas e outros itens para construir a instalação.
Depois, no Corvo, o que não há, arranja-se. As madeiras para construir o carrinho vieram da ilha vizinha e a Câmara de Santa Cruz das Flores disponibilizou-se para as cortar. Nos primeiros dias, Ching trabalhou na oficina de Luís Carlos, um sítio que estava fechado mas que foi cedido a David T.P., marceneiro húngaro que se mudou da Irlanda para a ilha há dois meses, e este por sua vez, já integrado no espírito corvino, apresentou o espaço a Ching e pôs as ferramentas ao seu dispor.
A Câmara Municipal do Corvo cedeu a cozinha comunitária para Ching cozinhar e testar alguns pratos. A Santa Casa da Misericórdia e o Bar dos Bombeiros do Corvo emprestaram as tigelas e alguns talhares e outra loiça vieram da casa da mãe da Andreia, a Sãozinha dos bolos lêvedos. Os ovos vieram da D. Isaura e as batatas-doce do Tintim. E o Espírito Santo emprestou os tabuleiros e as toalhas.
“A Andreia foi mesmo uma grande ajuda e notei que todas as pessoas se ajudam umas às outras, isso foi fundamental para que tudo corresse tão bem”, conta Ching.
Andreia confessa que quando recebeu o projeto e as várias camadas que o compunham, ficou um pouco assustada, tanto para assegurar a sua produção, mas também para garantir que conseguiria dar a conhecer o lado artístico do conceito. Lauris Vitolins, companheiro de Ching e também artista que vive entre Riga e o Porto, acabou por se juntar e acompanhar uma parte do projeto.
A comida a unir pessoas e as ruas labirínticas dos tempos dos piratas
“Oh, senhora, venha provar batata-doce caramelizada, é doce, vai ver que vai gostar”, apela Andreia no Largo do Outeiro a quem passa. “Vinha duas ruas abaixo e já estava a ouvir a tua voz”, responde uma conhecida de Andreia que vem provar os petiscos de Taiwan. “Olha que as batatas são do Tintim”, conta a vários dos que passam.
Vão chegando várias pessoas para provar. Sampa fala de uma receita semelhante, mas com leite, que se faz em Cabo Verde, Bárbara pergunta sobre o tipo de batatas-doce de Taiwan e muitos dos que passam vão provando e perguntando a receita. Áurea, de 9 anos, sobrinha de Andreia, e que acompanha e ajuda em quase toda a produção, não gosta da batata-doce usada tradicionalmente nos pratos salgados e delicia-se com esta versão.
O carrinho vai fazendo outras paragens e quando chega ao fim da Rua do Jogo da Bola, já há pessoas que perguntam pelo “pudim”, como resolveram chamar a este doce pelas semelhanças entre a calda da batata e o nosso pudim. Outros aparecem para provar os ovos de chá – um snack típico taiwanês, feito com um ovo cozido ligeiramente partido e fervido em chá e especiarias - que Ching tinha feito no dia anterior.
Antes de o carrinho se tornar um food truck, Ching transformou-o num dispositivo de recolha de imagens e deu mais uma volta pela vila. Muitas das ruas do Corvo, as canadas, são estreitas e tortuosas, propositalmente difíceis e labirínticas, construídas numa época em que era preciso enfrentar e despistar piratas. Hoje, nem de forma artística e figurada, o Google Street View ali passa. Além de a vila ser muito maior e ter muito mais ruas do que Ching esperava, fazer rolar o carrinho pelas canadas do Corvo foi uma das suas maiores dificuldades.
“São muitas ruas para documentar, já tinha visitado algumas ilhas e esta é muito diferente das outras. Nas outras senti que havia uma espécie de baixa ou centro histórico e aqui não”, explica a artista, que já tinha estado no Faial, em 2016, numa residência da Associação Cultural Fazendo.
No último dia em que a instalação móvel percorreu as ruas da Vila do Corvo, o mesmo carrinho que recolhia as imagens, mostrava-as agora aos seus habitantes. Os ovos e a batata-doce voltaram também ao carrinho, para alegria de muitos, e Ching ainda fez noodles, algas e cogumelos. Joana, corvina e vegetariana, afirma que “foi uma lufada de ar fresco” e que “toda a gente gostou muito da comida”.
Gustavo e Vânia, que se mudaram para do continente para o Corvo há cerca de um ano, vieram provar as iguarias de Ching e ver o trabalho em vídeo. Gustavo faz algumas questões a Ching sobre as imagens e diz ao SAPO que acha “muito positiva a ideia de agregar a comunidade à volta da comida”. No final da noite, já a fechar a banca, Áurea, que ficou fã dos ovos, diz num jeito tímido, mas assertivo, que foi tudo bom e que as pessoas gostaram.
Do trabalho no hotel com o avô às infinitas possibilidades da arte fora do seu circuito
Ching cresceu no hotel dos avós, vivia num dos últimos andares e para ela o hotel sempre foi a sua casa. Foi fazendo pequenas instalações e num trabalho final da sua licenciatura acabou por trabalhar em conjunto com o avô, apreendendo a forma como ele trabalhava com os fios metálicos e tecidos plastificados.
“Fiz disso um trabalho artístico. Ele não percebia muito bem o que estava a fazer, mas aprendi muito com a sua técnica e percebi que gostava muito de trabalhar com pessoas que estão fora do que é o mundo artístico”, explica a luso-taiwanesa.
A artista conta que para ela é importante trabalhar com a comunidade, não que se sinta obrigada a trabalhar para alguém mas acha que “o mundo artístico se desenvolve muito dentro do seu próprio circuito e que às vezes é complicado quem não estuda arte conseguir relacionar-se com os objetos artísticos”.
Pela sua formação, tem o hábito de fazer pesquisa no terreno e de relacionar o seu trabalho com o exterior. Sobre este projeto no Corvo, afirma que “o mais importante é trazer a ideia de que há muitas possibilidades na arte e que as pessoas soubessem isso”.
Sobre as imagens que foram recolhidas durante estes dias, Ching diz-se muito contente com o resultado. “Gosto do aspeto visual e da interação que tem com as pessoas”, conta. Agora regressa ao Porto para editar as imagens que ficarão disponíveis no seu website.
Durante estes dias, muitos perguntavam se o carrinho ia ficar no Corvo e atiravam ideias de como o utilizar para fazer pipocas ou assar castanhas. Entre as brincadeiras, foi já na despedida, na visita ao Caldeirão e com a paisagem de fundo que é o ex libris da ilha, que Ching passou a responsabilidade a Andreia de ficar com o carro e fazer as ações que entendesse na ilha. Este Google Street View à moda da Ching ainda não terminou as suas voltas e é provável que continue a rolar pelas ruas do Corvo.
*O SAPO viajou a convite do Azores 2027 – candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura 2027