O recente escândalo de assédio sexual no meio jazzístico português, protagonizado pelo pianista João Pedro Coelho, levanta uma questão fundamental: quem realmente é protegido pela lei nestas situações?

Este caso, que se soma a outros como, por exemplo, a recente situação envolvendo o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, expõe as complexidades e falhas do sistema legal quando se trata de denúncias de assédio e abuso sexual.

O dilema legal

Em teoria, a lei deveria proteger as vítimas.

No entanto, a realidade é frequentemente mais complicada.

O sistema jurídico, com a sua necessidade de provas concretas e o princípio da presunção de inocência, muitas vezes coloca um fardo pesado sobre quem denuncia.

As vítimas enfrentam não só o trauma do alegado abuso, mas também o escrutínio intenso e potencialmente revitimizador do processo judicial.

Por outro lado, os acusados têm o direito a um processo judicial equitativo e à presunção de inocência.

Este princípio fundamental da justiça pode, paradoxalmente, criar um escudo para agressores, especialmente em casos onde as provas são escassas ou baseadas principalmente em testemunhos.

As dificuldades de prova

Um dos maiores desafios nos casos de assédio sexual é a dificuldade de apresentar provas concretas.

Muitos incidentes ocorrem em ambientes privados, sem testemunhas.

A natureza frequentemente subtil do assédio também complica a sua documentação.

Como se prova um olhar inapropriado, um toque "acidental" ou uma insinuação verbal?

A psicóloga Conceição Nogueira sublinha a importância do problema, ao afirmar "O assédio é uma violência de género brutal, na minha perspectiva com vários patamares de funcionamento."

Esta afirmação destaca não só a gravidade do assédio, mas também a sua natureza multifacetada, que contribui para a complexidade legal e social do tema.

As estatísticas revelam um quadro desanimador.

Segundo dados da APAV, as denúncias de assédio sexual e moral aumentaram mais de 150% em quatro anos, atingindo 160 queixas em 2022.

No entanto, estima-se que estes números representem apenas uma fração dos casos reais.

O papel das redes sociais

Confrontadas com a morosidade e ineficácia do sistema judicial, muitas vítimas transformam as redes sociais em tribunal público, expondo os seus agressores e procurando justiça onde as instituições tradicionais falham.

Plataformas como o Instagram e o X tornaram-se palcos para denúncias públicas, como aconteceu no caso do jazz português, onde dezenas de relatos surgiram em poucos dias.

Este fenómeno, embora muito eficaz na sensibilização pública, levanta questões éticas e legais.

Por um lado, oferece às vítimas uma voz que o sistema judicial muitas vezes nega.

Por outro, pode levar a julgamentos precipitados na opinião pública, potencialmente prejudicando investigações oficiais e reputações de inocentes.

O caso Boaventura de Sousa Santos

O caso do sociólogo Boaventura de Sousa Santos ilustra a complexidade destas situações.

Em setembro de 2024, intentou uma ação judicial contra as 13 mulheres que o acusaram de assédio numa carta aberta.

O sociólogo alega possuir documentação que demonstra nunca ter assediado ou prejudicado profissionalmente as referidas mulheres.

Esta ação judicial gerou controvérsia, com as alegadas “vítimas” a acusarem Boaventura Sousa Santos de criar uma "guerra jurídica" contra as denunciantes.

O caso suscita preocupações sobre a potencial instrumentalização do sistema judicial por figuras proeminentes, levantando questões sobre o equilíbrio entre o direito à defesa e o risco de intimidação judicial contra denunciantes de assédio.

Esta situação coloca em evidência a complexidade de lidar com acusações de má conduta contra personalidades influentes, desafiando a capacidade do sistema judicial de proteger tanto os direitos dos acusados quanto os direitos das alegadas vítimas.

Em busca do equilíbrio

É fundamental reconhecer que o sistema judicial tem a dupla responsabilidade de proteger tanto as vítimas quanto os acusados de falsas alegações.

O princípio da presunção de inocência, pilar essencial de um Estado de Direito, deve ser rigorosamente respeitado.

No entanto, é fundamental garantir que este princípio não seja manipulado para silenciar ou desacreditar denúncias legítimas, especialmente em casos que envolvem figuras públicas ou indivíduos em posições de autoridade.

O verdadeiro desafio para o sistema judicial reside em alcançar um equilíbrio meticuloso: salvaguardar os direitos dos acusados, ao mesmo tempo que cria um ambiente onde as vítimas se sintam seguras e encorajadas a denunciar, livres do medo de represálias ou de serem automaticamente desacreditadas.

Este equilíbrio é vital para manter a integridade do processo judicial e a confiança pública no sistema de justiça.

Para atingir este equilíbrio, é necessária uma reavaliação criteriosa dos procedimentos em casos de assédio sexual. Isto implica considerar:

  1. O aperfeiçoamento dos mecanismos de recolha e preservação de provas, adaptados à natureza frequentemente subtil do assédio sexual.
  2. A implementação de formação especializada para profissionais do sistema judicial, focada na compreensão das dinâmicas complexas do assédio sexual.
  3. A criação de ambientes de apoio para as vítimas durante o processo judicial, minimizando o risco de revitimização.
  4. A revisão dos prazos de prescrição para os crimes de assédio sexual, reconhecendo que muitas vítimas podem levar muito tempo para processar o trauma e ganhar coragem para denunciar.

Estas medidas visam não só proteger as vítimas, mas também assegurar que as acusações sejam tratadas com a seriedade e a imparcialidade necessárias, mantendo o respeito pelos direitos fundamentais de todas as partes envolvidas.

Mudança cultural necessária

Para além das reformas legais, é essencial uma mudança cultural mais ampla.

Um exemplo recente que ilustra a relevância deste problema é o caso do diretor do Continente despedido por apalpar uma funcionária, abordado no meu artigo "Apalpa e Sai", publicado no Expresso.

Esta mudança cultural inclui:

  • Educação sobre consentimento e respeito mútuo desde cedo.
  • Implementação de políticas rigorosas contra o assédio em instituições e empresas.
  • Fomento de uma cultura de apoio às vítimas e de não tolerância ao assédio.

Os casos de assédio no jazz português e o processo de Boaventura de Sousa Santos expõem as lacunas de um sistema legal que muitas vezes falha tanto às vítimas quanto aos acusados.

Enquanto a lei luta para encontrar um equilíbrio, a sociedade deve trabalhar para criar um ambiente onde o assédio seja inaceitável e onde as vítimas se sintam seguras para denunciar.

A pergunta "Quem protege a lei?" não tem uma resposta simples.

O ideal seria um sistema que protegesse igualmente os direitos das vítimas e dos acusados.

Até lá, continuamos num compasso de espera, buscando uma harmonia que ainda parece distante no jazz da justiça portuguesa.