Marcelo Rebelo de Sousa deixa uma herança muito pesada ao seu sucessor. A completa vulgarização da função presidencial, a implicação diária na vida política, a incontinência da palavra que quase demonstra um grave problema de autoestima, obrigam a que os portugueses se encaminhem para a escolha obrigatória de um Presidente que seja em quase tudo o oposto. Tivemos a nossa dose de presidente-comentador.

Perante as mais recentes notícias sobre disponibilidades, avaliações e suposições, tudo a mais de um ano das eleições presidenciais de janeiro de 2026, importa olhar para o que vai aparecendo e identificar o que parece ser melhor para Portugal.

O centro-esquerda tem uma responsabilidade enorme perante o país. Sabendo-se que o Bloco de Esquerda se prepara para voltar a “usar” Catarina Martins em mais uma campanha e que o Partido Comunista Português não terá melhor do que João Ferreira, interessa pensar para além dos 8% que estas duas candidaturas valerão.

É, portanto, do universo do PS que pode nascer a verdadeira solução à esquerda.

António Vitorino e António José Seguro deram duas interessantes entrevistas em que afirmaram a sua disponibilidade para pensarem numa possível candidatura. São, sem qualquer dúvida, duas personalidades relevantíssimas do universo socialista e social democrata, com um passado que honra o PS.

Há, porém, um problema – afastados durante muito tempo da vida política portuguesa, correspondem a uma solução vitoriosa? O meu entendimento é que nenhum dos dois tem, neste momento, condições para isso.

Vitorino, inteligência fulgurante, político astuto, jurista eminente, está há muito dedicado à advocacia com tudo o que isso implica. Falta-lhe, ainda, a ligação ao território que, em presidenciais, nunca é negligenciável.

Seguro, docente probo, conhecedor da política europeia e internacional, agregador de fidelidades para a vida, afastou-se da vida política de uma forma inexplicável, resguardou-se perante os desafios da última década, deixou de partilhar as suas ideias.

É neste encontro de vontade que se situa a possível candidatura de Mário Centeno, o único que ainda não esboçou um único sinal sobre esse futuro.

Mas será Centeno um bom candidato?

Olho as sondagens e os números não indicam uma grande vantagem; ouço alguns comentários que dizem que Centeno não entra à esquerda; perceciono interrogações sobre o que pensa sobre o país e o mundo.

É exatamente sobre os “contras” indicados a Centeno que importa ponderar em 10 pontos.

1. Centeno foi um escolha de António Costa para o tal Governo que não iria durar e a que deram o nome de “geringonça”. O seu primeiro discurso parlamentar foi muito mau, preocupante até para os deputados mais experientes. Em menos de um ano, o Ministro das Finanças era já a figura mais popular do Executivo e em dois era candidato a presidente do Eurogrupo.

O que quer isto dizer? Três coisas simples: 1) Trata-se de uma personalidade com uma enorme capacidade política; 2) Consegue pressentir o que interessa aos portugueses de forma muito rápida; 3) É seguro e competente em tudo o que se mete.

2. Ao ser nomeado como titular das Finanças, Centeno arriscava quase tudo. O objetivo de conter o défice e a dívida, associado à obrigação de largar os cordões à bolsa para pagar as promessas do PCP e do BE, poderiam ter feito dele um “barata tonta”, mais um dos que, tendo passado pelo Terreiro do Paço, voltaram a por e causa a credibilidade das finanças públicas.

Foi tudo ao contrário do que lhe vaticinaram. Durante os seus cinco anos de consulado, Centeno conseguiu a proeza de obter o primeiro superavit do século, conseguiu renegociar quase toda a dívida publica e reduzir o seu impacto nas contas anuais, conseguiu corresponder aos objetivos políticos de reforço do SNS e da Escola Universal e concedeu condições para a sustentabilidade prolongada da Segurança Social.

3. Mas quem é a pessoa Mário Centeno? Essa vai ser a pergunta que vão fazer até lhe encontrarem as meias rodas no dedo grande.

Centeno é licenciado em Economia pelo ISEG e mestre em Matemáticas Aplicadas pelo mesmo instituto. Mas é também, e mais importante, mestre e doutor em Economia pela Universidade de Harvard, uma das mais prestigiosas escolas do mundo. É ainda professor catedrático da Universidade de Lisboa.

Vem desse tempo a sua preocupação com as novas formas de trabalho, com a sua visão da fixação do talento, a obrigatória mudança das práticas de concertação social que afirmem o diálogo entre quem cria empresas, quem fornece inteligência e tecnologia e quem entrega o seu trabalho.

4. Mas a função presidencial tem elementos de “luzes” que vão obrigar Centeno a travestir-se? Mário Soares foi sempre, ele próprio, luz. Mas a função presidencial exercida por Eanes, Sampaio, mesmo Cavaco Silva, foi sempre de contenção, de recato, de distância. Centeno talvez tenha uma leitura familiar próxima de Eanes, uma visão dos poderes presidenciais aproximada de Sampaio, para além de se bater com Cavaco nas preocupações económicas e poder ser um aluno brilhante de Soares nas preocupações sociais.

5. Os portugueses não votam num candidato sem lhe conhecerem bem as características pessoais. Ora, os cinco anos que Centeno levou como ministro disseram dele o que importa?

O seu sorriso afável e sem dissimulação, a sua mão de ferro sem cedência ao essencial, a sua irritante ausência de exasperação perante as adversidades, a sua distância à espuma dos dias, a sua capacidade para juntar cinema, futebol, arte, literatura, viagens sem ceder na arrogância de certas elites, fazem dele uma personalidade que se senta num café a falar de Mourinho ou numa conferência a discutir metafísica.

6. Mas não sendo um homem de partido, nem tendo uma vida longa na política, pode dar garantias de que a nossa democracia não pode vir a estar em causa no que ao equilíbrio de poderes diz respeito?

É aqui que Centeno tem enorme vantagem. O seu sentido prático, associado à sua visão institucional, podem ser muito relevantes para que a magistratura de influência se possa ampliar.

Centeno sabe como abordar com os governos as questões económicas; sabe como equilibrar as relações entre legislativo e executivo; sabe como fazer implicar os muitos outros poderes que se revelam essenciais para a saúde da nossa vida coletiva.

Se quisermos, teríamos em Belém alguém que tanto sabe alinhar o passo com a música numa parada militar como sabe acelerar perante as obrigações que se impõem ao desenvolvimento de Portugal.

7. E Centeno terá condições para se fazer aprovar pelas estruturas do PS? Reconheço que Centeno tem um posicionamento mais central quando olhamos para o atual líder do PS. Mas há uma coisa que importa ter em conta – o PS de hoje está disponível para, passadas duas décadas, voltar a não discutir as presidenciais?

Dirão que Centeno nunca terá o apoio dos partidos à esquerda do PS. Porém, tal afirmação é fácil de reverter. Em 1986, Cunhal apoiou, de olhos fechados e na segunda volta, Mário Soares, o seu grande “inimigo”. Em 2015, o PCP e o BE apoiaram um governo em que Centeno era ministro preponderante. Em 2026, perante uma segunda volta em que estejam, do outro lado, Gouveia e Melo ou Marques Mendes, não há qualquer dúvida que Centeno fará o pleno do centro, da esquerda democrática e de todas as outras esquerdas.

8. Centeno tem rabos de palha que possam criar problemas à sua candidatura? Alguém como Centeno terá sempre pequenas coisas na vida que vão aparecer, umas já estafadas e outras que nascerão dos que dele desgostam como o antigo governador Carlos Costa. Mas vai ter de esclarecer bem duas coisas: 1) Ser mais um das portas rolantes; 2) O que o levou a aceitar poder ser primeiro-ministro depois da demissão de Costa.

Quanto ao primeiro assunto ele é fácil de tratar – Centeno era funcionário e dirigente do Banco de Portugal antes de ser ministro; regressou ao Banco de Portugal quando saiu e foi nomeado Governador. Não aqui portas giratórias, nem incompatibilidade alguma como se vê na maior parte dos países ocidentais. Quanto ao segundo tema, eu não tenho uma resposta, mas foi uma tontice a ideia.

9. E quais serão as suas grandes preocupações enquanto Presidente? Fui à procura das suas entrevistas e dos seus artigos dos últimos três anos e direi que assentam em cinco pontos: 1) Aumentar a qualificação dos portugueses e combater a pobreza; 2) Valorizar a gestão, a dimensão e a internacionalização das empresas; 3) Obrigar a uma eficaz utilização dos dinheiros públicos (em especial na Saúde) e à transparência das instituições; 4) Aumentar a qualidade da vida cívica e da nossa democracia; 5) Antecipar os cenários de instabilidade mundial que vamos inevitavelmente viver.

Centeno tem vindo a falar e a escrever muito sobre a qualificação académica, a empregabilidade e a satisfação profissional dos jovens portugueses. Ora, pela permanência destas questões no seu discurso, não será de descartar que este seja o principal desafio de um primeiro mandato em Belém.

10. Mas pode Centeno ser isso tudo querendo manter-se como Governador até ao final do mandato e deixando as portas abertas para que outros lhe ocupem os espaço de uma candidatura?

Esse é o principal problema de Centeno neste momento. Em política não há vazios e as pessoas não gostam de esperar para estarem na primeira fila.

Em 1985, logo no início do ano, Soares era ainda chefe do Governo. Mas Gomes Mota já tinha uma estrutura montada no país. Pelo que sei, e normalmente não me faltam notícias sobre esses movimentos, Gouveia e Melo já tem voluntários; Mendes já tem exércitos; Aguiar Branco já tem contactos; Seguro já tem militantes… E Centeno? Só tem os que lhe antecipam possibilidades de sucesso numa candidatura. Mas também esses podem começar a questionar-se. Centeno precisa, desde já, de falar com Seguro, com Vitorino, com Santos Silva, com Ana Gomes, com Elisa Ferreira, com Sampaio da Novoa, com Manuel Alegre, com Vítor Constâncio, com Ferro Rodrigues, com Jaime Gama e, o mais importante, acertar contas com Pedro Nuno Santos e Carlos César.

Aqui ficam razões de sobra para termos Mário Centeno na luta. O dia para o início do caminho já devia ter sido ontem.