Os resultados do Pordata são inequívocos: há mais pobres em Portugal; os que já eram pobres são hoje mais pobres do que eram (“profundidade da pobreza”) e as famílias mais pobres entre as mais pobres são aquelas que têm crianças. Destas, as famílias que são ainda mais pobres são as monoparentais (11% das famílias em Portugal) e as famílias com dois adultos e duas ou mais crianças. Ou seja, os portugueses mais pobres têm filhos. E os detalhes arrepiam.

Um estudo recente da Universidade do Minho (Diogo, Trevisan & Sarmento, 2021) demonstrou que uma família monoparentalizada por divórcio é especialmente exposta em Portugal à pobreza. Mesmo quando os tribunais o sentenciam e impõem, os pais não pagam às mães a pensão de alimentos quando saem de casa. Lançam as suas crianças numa vulnerabilidade de sobrevivência.

De todos os segmentos etários mais directamente atingidos pela pobreza, são as crianças aquelas que mais sofrem com o flagelo. Ainda que não seja uma inevitabilidade estatística, os ciclos de pobreza persistem poderosamente ao longo de várias gerações.

São muitos os estudos que documentam com consistência que as crianças tendem a aceitar como “naturais” as limitações económicas da sua vida e subestimam as suas expectativas de futuro por isso mesmo, resignadas a serem pobres para o resto da vida.

Os três Ds da pobreza

Divórcio, Desemprego e Doença são os factores decisivos que lançam na indigência as famílias com crianças.

Os valores da pobreza em Portugal estão bem acima da média europeia (Eurostat) e sempre estiveram. Importa recordar que este número só não é mais violento porque o Estado concede apoios e transferências sociais. Mas só 10% dos subsídios do Estado chegam às crianças. Além disso, fica patente nestes estudos que os apoios do Estado Português que são dirigidos às crianças, como o apoio social escolar e os apoios ao sucesso escolar, não beliscam, nem sequer minimamente, a incidência de pobreza, tal a sua exiguidade. São manifestamente insuficientes.

Baixos salários e trajectórias de emprego em carrossel afectam, essas sim e poderosamente, a necessária estabilidade do rendimento destas famílias. São intermitentemente sujeitas à absoluta destituição, apenas atenuada pela intervenção eventual e solidária da família ou da comunidade. E isto num país que, para manter a sua população nos números actuais, precisaria de um índice de fecundidade de 2,1.Temos apenas 1,43 (2019).

Ou seja, Portugal terá cada vez menos crianças no futuro e as poucas que tem hoje são mais expostas à pobreza do que qualquer outro segmento etário da população portuguesa.

Sexo e Cidadania? A sério?

A pergunta que se impõe é: perante um quadro tão pavoroso como este que se nos apresenta, como podemos nós andar a perder tempo a discutir os programas da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento?

Temos assim tanto cinismo disponível para discutirmos alarvidades extraterrestres em vez de andarmos todos obcecados em retirar milhares de crianças da miséria? Temos uma crise frumentária e mesas de jantar sem comida e andamos a falar da indecência que é estudar educação sexual nas escolas? Será possível que não ande ninguém a ver nada do que se passa nas escolas portuguesas? Nas famílias portuguesas?

Tornou-se moda considerar que estas perplexidades não passam de tartufice ou whataboutismo, como agora se diz. Estaremos nós num tal estado de torpor e jactância que nos resignámos à ideia de que acabar com a pobreza infantil não passa de uma quimera, de uma esperança fictícia?

Como podem os políticos querer dar-se ao respeito quando desprezam tão explicitamente estes números obscenos, que a todos devem angustiar?

Como se pode dar prioridade estratégica a um mísero currículo disciplinar quando ninguém faz nada de monumental para impedir que as crianças em Portugal tenham fome e frio. Será preciso recordar que 21% da população portuguesa não tem dinheiro para manter a casa aquecida? É uma em cada cinco pessoas. Percebem?

Se Portugal fosse um automóvel de cinco lugares, um dos passageiros vai passar frio neste Inverno. No Luxemburgo são 2,1%. Somos 2,1 milhões de pobres em Portugal.

Cidadãos de corpo inteiro

Há dezenas de milhar de professores em Portugal que dão aulas de Cidadania desde que há em Portugal aulas de Cidadania. A disciplina chama-se hoje Cidadania e Desenvolvimento e é muito frequentemente ministrada por professores de História e professores de Geografia. Fazem de tudo nestas aulas.

Muitos dos meninos que os portugueses encontram à porta dos hipermercados a ajudar nos peditórios de tantas instituições são voluntários que adoram participar em iniciativas que os professores de Cidadania lhes recomendam e apresentam.

Participam no Parlamento Jovem por causa das aulas de Cidadania. São Delegados ambientais para se responsabilizarem por medidas de sustentabilidade e higiene pública. Vemo-los a entrevistar idosos e a perguntar-lhes como era tudo no seu tempo.

Visitam Lares e Centros de educação especial, renovam casas de gente pobre ao fim de semana. Visitam países estrangeiros para que não pensem que Portugal é tudo o que há.

Celebram os dias mundiais de tudo e de mais alguma coisa e sabem quem foi Braille, Exupery, Keller e Tocqueville e quem foram todas aquelas pessoas que não cabem nos currículos escolares; e sabem-no por causa das aulas de Cidadania e Desenvolvimento.

As bandeiras dos comícios

São também esses os miúdos que os políticos vêem todos os dias nas galerias da Assembleia da República, a casa de uma tal Democracia, conduzidos ali pelos professores de Cidadania e Desenvolvimento que querem que os miúdos vejam in loco o que é a separação de poderes e o que é a Constituição. São estes os miúdos que se iniciam politicamente nas juventudes partidárias e que acenam as bandeirinhas quando os partidos precisam de bandeirinhas a dar a dar nos seus comícios.

A maioria vai parar às juventudes partidárias porque perceberam a importância dos partidos na vida política de um país. Debateram isso nas aulas de Cidadania e Desenvolvimento. E sim, debateram todo o género de assuntos, sobretudo os mais controversos, por serem aqueles que mais os ajudaram a definir as fronteiras éticas que desejam estabelecer para si mesmos. Com quermesses, saraus e muita criatividade, apoiam inúmeras instituições de apoio social. Fazem cabazes solidários e escolhem a quem os dar em absoluta discrição.

As aulas de Cidadania já mataram a fome a muitos portugueses. Nas aulas de Cidadania e Desenvolvimento debate-se sexualidades, géneros, casas de banho, gravidezes (das desejadas e das outras) e bofetadas em casa, na rua e na escola. Entre muitos outros assuntos.

Não há uma única notícia de que um único aluno ou aluna deixou de ser ou passou a ser heterotranscishomossexual por causa do que quer que alguém lhe tenha dito nas aulas de Cidadania e Desenvolvimento. Pensar assim insulta a inteligência e a sensibilidade destes miúdos.

Mais tempo para os miúdos

O resultado concreto destas aulas de cidadania é serem elas hoje o último reduto curricular dos nossos jovens onde se lhes pode conferir a liberdade de poderem decidir o que querem aprender. E "isto", por ser o que mais importa na vida dos nossos miúdos, é a única coisa que interessaria debater.

O demais é apenas o rebaixamento insolente e ignorante do superior interesse das crianças a um mero erotismo partidário e eleitoral.

Num momento em que tanto se advoga a necessidade de "pacificar as escolas", é intolerável e doentio que, por motivos ulteriores, se criem falsos tremores de terra que, no fim de tudo, em nada modificarão o trabalho sério e consistente que os professores vão fazendo junto dos seus miúdos. Sobretudo daqueles que, alheados destas petulâncias, ainda não sabem se têm uma refeição para comer hoje à noite.