O intrincado conflito israelo-palestiniano remonta aos fins do século XIX, onde se interligam aspectos político-ideológicos, estratégicos, religiosos e identitários, que o tornam muito complexo. A criação de Israel baseou-se numa decisão e resolução da ONU, que previa a divisão do território da Palestina em dois estados.
Um ano após o ataque hediondo do Hamas, que resultou no massacre de mil civis e no sequestro de centenas de reféns, Israel continua a devastar Gaza, com milhares de mortos e 70% das infraestruturas destruídas. As operações no Líbano, além das razões de segurança invocadas, serviram também para desviar atenções do fracasso político, do insucesso no resgate dos reféns e da catástrofe humanitária sem precedentes. Netanyahu persiste em instrumentalizar o conflito para a sua sobrevivência política.
O mundo assiste inerte às atrocidades cometidas pelo Hamas e aos bombardeamentos indiscriminados em Gaza. O direito de legítima defesa não autoriza Israel à punição colectiva dos palestinianos com uma clara violação do Direito Internacional. Isto acontece, porque Israel, há décadas, que se sente um Estado inimputável com a conivência intolerável dos EUA, Reino Unido e UE. Prevalecem a irracionalidade nos centros de poder.
O Tribunal Internacional de Justiça considerou alegações de genocídio e medidas preventivas, que Israel ignorou. A Comissão Internacional Independente acusou Israel e o Hamas de cometerem crimes de guerra e crimes contra a humanidade. No entanto, o regime de Netanyahu permanece impune, apesar da solicitação de mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional evidenciando o colapso do sistema internacional.
A relação entre Israel e os palestinianos tem sido marcada por constante violência com a cumplicidade da comunidade internacional. O conflito em curso expõe fragilidades da sua máquina militar (IDF), incapaz de eliminar o Hamas e com dificuldades crescentes no Líbano. A continuação da guerra parece dissimular um fracasso estratégico evidente, uma vez que a escala da violência e o ódio gerado vão permitir a regeneração inevitável do Hamas e Hezbollah, afastando qualquer esperança de coexistência pacífica.
A União Europeia permanece dividida e incapaz de reconhecer a sistemática obstrução ao processo de paz pelo regime de Netanyahu, sendo inaceitável manter a venda de armas e o acordo de associação. Mais alarmante ainda os EUA e a Europa não imporem sanções, como fizeram de forma diligente contra a Rússia e outras geografias. A falta de coerência mina a credibilidade. A inegável hipocrisia!
A presença da UNIFIL no Líbano tornou-se um foco de tensão inquietante. Israel critica a ineficácia da missão em implementar a zona tampão prevista em Resolução da ONU. No entanto, o mandato é complexo, porque o interlocutor estatal está refém do Hezbollah, que tem forte influência política no Líbano. A pressão para a retirada da UNIFIL é vista como manobra para descredibilizar a ONU e ampliar a liberdade de ação das IDF.
O desprezo de Israel pela ONU é flagrante, como ilustra o gesto de um embaixador israelita ao destruir uma carta da ONU em plena Assembleia Geral e o fato de Israel ignorar cerca de 90 resoluções do Conselho de Segurança. O país continua a violar os Direitos Humanos com a cumplicidade dos EUA. Todavia, como Estado soberano, Israel não pode estar acima da lei e a sua estratégia de hostilização da ONU não lhe será favorável.
Importa dar nota que o lobby israelita não se restringe ao intricado complexo militar-industrial, mas principalmente o que controla os media dos EUA e influencia todas as agências noticiosas do mundo, conforme referem alguns media e, mais recentemente, o Embaixador Martins da Cruz a um canal televisivo. Os factos nem sempre são fáceis de aceitar pelos que não saem das trincheiras onde prolifera o cinismo perverso.
É essencial ultrapassar simplificações maniqueístas e minimizar o efeito da construção de percepções e da manipulação cognitiva. Não se pode ignorar a origem e efeitos do êxodo palestiniano (Nakba), os massacres desde a criação de Israel, o malogro dos Acordos de Oslo, o financiamento promíscuo do Hamas, o regime de apartheid na Cisjordânia, o fracasso do acordo nuclear com o Irão. Nem as declarações extremistas sobre limpeza étnica em Gaza e a postura de Israel perante os alertas sobre a intenção de ataques do Hamas.
Ademais, até outubro de 2023, Netanyahu enfrentava enorme contestação interna por querer desmantelar instituições democráticas e parte das IDF a recusarem obediência. A guerra ofuscou ainda as acusações de corrupção e o enorme fracasso de segurança, transformando Netanyahu de vilão a herói, como indicam as sondagens recentes.
Não deixa de ser revoltante a impotência perante os terroristas do Hamas e os extremistas do regime israelita. Mas não se deve confundir o Hamas com a causa palestiniana, nem Israel com os seus radicais. Os ortodoxos extremistas desejam anexar a Cisjordânia, derrubar a Autoridade Palestina e reocupar Gaza, como relata o Economist. Propostas para matar à fome milhares de pessoas, defendidas por figuras como Ben-Gvir e Smotrich, revelam o nível de radicalização de parte da sociedade israelita.
É igualmente inegável o papel central do Irão nesta crise do Médio Oriente. O objetivo de aniquilar Israel é uma ambição estratégica e, por isso, os israelitas são forçados a responder pela sua sobrevivência. Pese embora, o Irão ter sinalizado o desejo de evitar um confronto direto existe a probabilidade de uma escalada, tendo em conta a explosão da frente libanesa e os ataques do Irão em retaliação aos assassinatos em Teerão e em Beirute por parte de Israel.
O previsível confronto directo entre Israel e Irão terá consequências imprevisíveis, tendo em conta a avaliação das opções do arco energético, infraestruturas nucleares ou militares e as incertezas quanto à arma nuclear. A expansão do conflito poderá ter consequências devastadoras para o Médio Oriente e para a economia global.
Contudo, o maior risco advém da fragilidade da administração Biden, da vulnerabilidade do momento diplomático e do unilateralismo anárquico do regime de Netanyahu. Este cenário pode impactar o final do ciclo eleitoral nos EUA que, por sua vez, vai determinar o desenrolar do conflito com Israel a procurar capitalizar o apoio de Trump para seus objetivos.
A diplomacia fracassou frente à hipocrisia da administração Biden. A sua política externa errática, ao tentar conciliar negociações com um apoio militar irrestrito a Israel, reduziu a relevância e a influência dos EUA na região. A incapacidade de Washington em impor soluções viáveis reforçou a intransigência de ambas as partes. Biden busca o impossível: manter uma influência continua no Médio Oriente com uma presença limitada.
O regime de Netanyahu preparou-se durante anos para a sua “guerra da ressurreição”, que espera luz verde de Washington e vai tentar arrastar os EUA sem o qual os ataques delineados terão menos probabilidade de sucesso. Biden procura a gestão de danos com a crise de reféns de 1980 a ensombrar o final do ciclo eleitoral.
Estamos perante uma guerra sem fim à vista em que não há inocentes, excepto os milhares de crianças e mulheres que morreram e que estão condenadas à fome, doença e morte. Esta é a realidade com que teremos que lidar com o ensurdecedor silêncio dos cúmplices da tragédia!