A recente confirmação de uma morte por gripe das aves nos Estados Unidos e o surto detetado numa quinta em Sintra reavivam questões sobre o vírus H5N1. Especialistas entrevistados pela SIC Notícias esclarecem mitos, explicam os riscos, a propagação e como podemos prevenir novas infeções. Estão de acordo no que respeita à fraca transmissibilidade do vírus ao ser humano mas alertam que "o principal risco é que o vírus possa sofrer mutações que o tornem mais transmissível entre seres humanos, o que poderia desencadear uma pandemia".
A 6 de janeiro de 2025 foi confirmada nos EUA a primeira morte de uma pessoa com o vírus da gripe das aves. O homem, com mais de 65 anos, foi a primeira pessoa a ser hospitalizada com o vírus nos EUA, segundo o comunicado do Departamento de Saúde da Louisiana.
Na mesma semana, a Organização Mundial da Saúde Animal (WOAH) alertou para a existência de um surto de gripe das aves numa quinta de Sintra, em Portugal. Segundo dados publicados pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), o número de galinhas que morreram pela doença ou foram abatidas na sequência da confirmação do foco ascende a 55.427, o que corresponde ao total dos animais daquela exploração.
A Direção-geral da Saúde assegura que não há registo de pessoas infetadas em Portugal e esclarece que o vírus não se transmite pelo consumo da carne.
O que é a gripe das aves e onde surgiu?
O vírus H5N1, identificado em 1996, é a principal causa da gripe das aves, uma doença que afeta sobretudo aves, mas que pode também infetar mamíferos, incluindo seres humanos.
Miguel Castanho, cientista do Instituto de Medicina Molecular, explica que "a gripe das aves é uma doença viral que afeta principalmente as aves, mas apresenta um risco" para os humanos.
"O principal risco é que o vírus possa sofrer mutações que o tornem mais transmissível entre seres humanos, o que poderia desencadear uma pandemia".
Esta doença primariamente animal - uma zoonose - esporadicamente infeta humanos."Desde 1997, o H5N1 mostrou capacidade de ultrapassar a barreira das espécies, aumentando os riscos de adaptação ao organismo humano", segundo Lúcio Meneses de Almeida, médico de Saúde Pública.
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Como a gripe das aves se propagou pelo mundo?
Desde a sua identificação em 1996, o vírus H5N1 circula globalmente, tendo sido detetado em aves selvagens, explorações avícolas e até mamíferos, como focas e leões marinhos.
A partir de 2021, o H5N1 expandiu-se da Europa para as Américas, causando surtos em vacas leiteiras e aves. Em 2022, o vírus espalhou-se pela América do Sul, onde matou inúmeras aves e mamíferos marinhos.
Em março de 2024, o vírus foi detetado em vacas leiteiras dos EUA e, posteriormente, atingiu rebanhos em 16 estados. O vírus foi detetado em rebanhos leiteiros em três estados nos últimos 30 dias, segundo a agência norte-americana USDA/APHIS.
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Quanto a casos de infeção humana, em 2024, nos EUA, foram confirmados 66 e identificados sete como prováveis e um caso no Canadá, todos associados a variantes do vírus presentes em aves e gado.
“As vacas podem funcionar como vetores do vírus, transportando-o sem adoecerem gravemente. Nas explorações leiteiras, a transmissão pode ocorrer por contacto direto, como esfregar os olhos após manipular os animais", esclarece Miguel Castanho.
Como a gripe das aves se transmite ao ser humano?
- Por contacto direto com as secreções e excreções das aves infetadas, nomeadamente secreções respiratórias e fezes
- Por consumo de água e alimentos infetados
- Por contacto indireto através de materiais e produtos contaminados com o vírus da gripe das aves (veículos de transporte de aves, equipamentos, vestuário e calçado, produtos animais, insetos, etc.)
- Por via aerógena – disseminação do vírus numa determinada área geográfica através do vento.
A transmissão da gripe das aves para o ser humano ocorre principalmente através do contacto direto com aves doentes ou os seus excrementos. Embora a transmissão pessoa a pessoa seja rara, o grande receio é que o vírus sofra mutações que o tornem mais facilmente transmissível entre humanos.
“Se o vírus das aves se misturar com o vírus da gripe humana numa pessoa, pode originar uma recombinação, criando uma nova estirpe adaptada aos humanos. Esse cenário pode desencadear uma pandemia”.
É um vírus que se transmite, sobretudo, pelas vias respiratórias, mas o contágio também é possível através dos olhos, por onde consegue entrar no organismo, segundo Miguel Castanho.
“A transmissão é possível através de contacto próximo, se o vírus tiver características que permitam a infecciosidade. A gripe, independentemente de ser aviária ou humana, é transmitida por contacto, ou seja, a distâncias relativamente curtas, inferiores a um metro, explica Lúcio Meneses de Almeida.
"A infeção de um ser humano só terá transcendência em saúde pública se o vírus adquirir características que permitam transmitir-se a mais pessoas. O que tem acontecido com o H5N1 é que o vírus transmite-se esporadicamente ao homem e não houve grandes cadeias de transmissão. Em 2003, houve casos, mas não se alastraram", salienta Lúcio Meneses de Almeida.
É seguro consumir carne e ovos?
Sim. A cozedura dos alimentos elimina o vírus e o ambiente ácido do estômago humano neutraliza-o.
Miguel Castanho explica que “os vírus são frágeis e destruídos pelo calor durante o cozimento. Além disso, o nosso sistema digestivo neutraliza eficazmente qualquer vestígio viral”.
“ O consumo de carne ou ovos de animais infetados não representa risco, pois a temperatura durante o cozimento destrói os vírus. Além disso, o sistema digestivo humano é um ambiente hostil para os vírus”.
“Em relação ao ovo cru, a ingestão de um ovo infetado tem chances praticamente nulas de resultar em infeção, pois o sistema digestivo humano é eficaz em destruir o vírus".
Como prevenir uma infeção pelo H5N1?
A melhor forma de evitar a transmissão do H5N1 é limitar o contacto com aves selvagens ou domésticas infetadas e reforçar medidas de higiene em explorações avícolas. A medida mais drástica é o abate de todas as aves da exploração sinalizada.
As principais medidas de prevenção incluem:
- Isolamento de explorações infetadas
- Uso de proteção respiratória e ocular em contextos de risco
- Evitar contacto com aves selvagens, especialmente mortas
- Aves devem ficar em confinamento para prevenir gripe
“Existem as medidas de prevenção mais drásticas, como o que aconteceu em Sintra. Quando aparece um caso de gripe das aves numa exploração, isola-se a exploração, não entram aves, não saem aves e faz-se o rastreio de toda a gente que lá trabalha Essa é a medida mais imediata. É radical, mas é o que tem que ser feito para tentar conter o logo ali e quebrar-se qualquer cadeia de contágio", diz Miguel Castanho.
Lúcio Meneses de Almeida afirma:“As pandemias são fenómenos globais. Apenas uma resposta coordenada pode reduzir o impacto de uma eventual crise de saúde pública".
Na sequência do caso da exploração em Sintra, Macau e Hong Kong proibiram a importação de frango a partir de Lisboa.
Eficiência e letalidade do vírus
O H5N1 é, por enquanto, pouco eficiente na transmissão entre humanos. Porém, o maior perigo reside na possibilidade de recombinação genética. Miguel Castanho alerta para o cenário em que uma pessoa com gripe humana é simultaneamente exposta ao H5N1.
“Se ocorrer uma recombinação, pode surgir um vírus híbrido, mais eficiente na transmissão entre humanos".
Esse tipo de mutação poderia ocorrer em regiões de grande densidade populacional, onde humanos, aves e outros animais convivem em proximidade, como mercados de animais vivos na Ásia, como salienta Lúcio Meneses de Almeida.
“O H5N1 é um vírus muito pouco eficiente em termos de transmissão (...) a inda se transmite muito mal à espécie humana, mas isso não significa que o vírus não possa adquirir características que o tornem mais transmissível".
Vigilância epidemiológica e previsão da evolução e letalidade do vírus
É essencial manter a vigilância epidemiológica para identificar mudanças no comportamento do vírus e prevenir possíveis surtos. "A evolução do vírus é imprevisível, por isso é necessário estar preparado para diferentes cenários", sublinha Miguel Castanho.
"A vigilância epidemiológica tem duas dimensões: clínica e laboratorial. A clínica permite identificar os casos e a gravidade da doença, enquanto a vigilância laboratorial permite caracterizar o vírus geneticamente e prever a sua evolução. Existem indicadores moleculares que ajudam a prever a evolução, mas as amostras são colhidas com algum atraso em relação à evolução real do vírus, explica Lúcio Meneses de Almeida.
Planos de contingência para preparar o pior cenário
Os planos de contingência devem ser elaborados com antecedência, com base em possíveis ameaças, mesmo sem saber qual será a doença exata. “A preparação é fundamental para evitar que a sociedade seja apanhada de surpresa”, sublinha Lúcio Meneses de Almeida, porque ”seguramente haverá uma nova pandemia".
Situação epidemiológica em Portugal
Atualmente, não há casos de gripe das aves em humanos em Portugal, mas é importante manter a vigilância para que, se ocorrerem, possam ser controlados rapidamente. A monitorização constante é crucial para evitar que qualquer surto se alastre.
Desde 2005, há vigilância sentinela de aves selvagens, que são o reservatório natural do vírus. Na corrente época epidemiológica, foram confirmados em Portugal, três casos de infeção pelo vírus da gripe aviária de alta patogenicidade em aves selvagens: numa gaivota-de-patas-amarelas, em Quarteira, Loulé, numa gaivota-de-asa-escura, em São Jacinto, Aveiro, e numa gaivota-de-patas-amarelas em Olhão, Faro.
"Uma coisa difícil de controlar são as aves selvagens, que são o reservatório destes vírus, e não é propriamente fácil controlar aves migratórias. Pode-se é fazer uma vigilância sentinela, capturar uma ave ou outra, ver se está infectada ou não".
Será a gripe das aves a próxima pandemia?
O vírus H5N1 apresenta, por agora, uma letalidade elevada que limita a sua transmissão. No entanto, o perigo reside na possibilidade de o vírus evoluir e sofrer mutações que aumentem a sua transmissibilidade entre humanos. Este cenário, embora ainda hipotético, poderia desencadear uma pandemia com consequências devastadoras.
A vigilância epidemiológica, os planos de contingência eficazes e a cooperação internacional são, por isso, fundamentais para prevenir que pequenos surtos se transformem numa crise global de saúde pública.
"É fundamental apagar todos os pequenos fogos antes que a floresta arda toda", alerta Lúcio Meneses de Almeida, sublinhando que, apesar de não haver motivo para alarme imediato, é crucial estar preparado para o pior e esperar o melhor, num contexto global de múltiplas ameaças, incluindo pandemias, guerras e instabilidade nuclear.