Nuno Melo disse, e o Público concluiu, o que se anda a dizer em privado nas capitais europeias: estes Estados Unidos não são de confiança.

“Nuno Melo afasta compra de F-35 aos EUA por causa de Trump. ‘O mundo já mudou’”, era o título da entrevista ao Ministro da Defesa, no Público, sexta-feira passada, ao começo do dia. Algumas horas depois, o título já era: “Nuno Melo admite compra de caças europeus a par de F-35. ‘O mundo já mudou’”.

Do Twitter dos Republicanos contra Trump ao Times of India, o que o Público resumiu do que Nuno Melo disse correu o mundo. Não é difícil imaginar quantos telefonemas foram feitos entre as duas capas, da embaixada dos Estados Unidos da América para o governo, do governo para o jornal, e mais umas quantas pelo meio, entre NATO, Força Aérea e a embaixada de Portugal nos Estados Unidos. Mas factos são factos.

Trump mudou a posição americana sobre a guerra e sobre a Rússia. E para o concretizar precisava de convencer os americanos, pelo menos alguns, de que isso acontecia por responsabilidade dos Ucranianos. E que Zelensky, em particular, era o culpado. Esse foi o guião daquela sessão na Sala Oval. Tudo o resto, esta reacção ou outra de Zelensky, são detalhes. E os líderes europeus sabem-no. Estes Estados Unidos da América não são de confiança para os europeus. Pelo menos para os europeus que sejam democracias liberais. Foi isso que Nuno Melo reconheceu.

O que Nuno Melo disse, exatamente, foi que estes “Estados Unidos não oferecem garantias, como no passado” de que se pode confiar “que no ciclo de vida das aeronaves (…) esse aliado, que ao longo de décadas foi sempre previsível, (não) poderá trazer limitações” na sua utilização. O Ministro da Defesa até teve o cuidado de dizer que os Estados Unidos “são um aliado importantíssimo”. E que não confunde a administração com o país. Mas o que importa ficou à vista: qualquer país aliado dos Estados Unidos da América sabe que pode ser a próxima Ucrânia. E qualquer líder sabe que pode ficar a fazer de Zelensky na Sala Oval. E, no entanto, as alternativas não são óbvias.

Quando a Europa começou a reagir à exigência americana de gastar pelo menos 2% ou mais em defesa, em Bruxelas dizia-se, e ainda se diz, que esse seria um gasto pesado, mas também que seria uma grande oportunidade para a reindustrialização europeia. O que não se dizia, mas devia ter sido dito, é que a administração americana obviamente contava que uma boa parte desse investimento fosse feita em compras aos Estados Unidos da América. E os europeus com certeza que sabiam isso. Só França insistia, e insiste, em dizer que essas compras deviam ser exclusivamente europeias. E dizia-o sozinha. Até Trump, Vance e Musk chegarem. Entretanto, o mundo de facto mudou. Mas comprar só a europeus será mesmo abrir uma guerra com a América.

Depois dos discursos de Vance em Paris e Munique, do que o Secretário da Defesa tem dito, e da cena na Sala Oval, os europeus sabem que o problema não é não poderem descarregar a sua segurança no aliado americano. O problema é não poderem contar com esse aliado. Ao dia de hoje, a NATO e o seu Tratado não valem o papel em que estão escritos. Até porque o pressuposto do seu valor é não haver dúvidas. Havendo, não há dissuasão. O que não quer dizer que sejamos nós, europeus, a ter interesse em fechar a Aliança. Seria um erro, como João Vale de Almeida explicou aqui no Expresso. Mesmo sendo uma ficção, é preferível não a cancelar. E é mais fácil ressuscitá-la se a mantivermos assim. Mas não tenhamos ilusões, este mundo mudou e nós temos de mudar com ele. Para onde e como? Não sabemos.

O Ministro da Defesa abriu a discussão mais importante e difícil que Portugal e a Europa precisam de ter: até onde vai o estrago da relação transatlântica e o que é que isso implica? Se o fez inadvertida ou intencionalmente, não é é claro. Se o devia ter feito assim, também não. Mas a conversa terá de ser tida. E está a comçar a acontecer.

Não é apenas pensar em como temos de assumir maior responsabilidade pela nossa segurança. É muito mais que isso. Como será, e como deveria ser, a segurança europeia sem confiar nos americanos? De quem nos defendemos? E com quem? Queremos trocar uma aliança por um exército europeu? E se o próximo Trump for alemão ou francês? E a Portugal, no meio do oceano, com bases americanas e uma natureza atlântica, interessa o quê? Nada disto pode ser discutido com excitações. O Ocidente dificilmente é a Europa sem a América. Mas nada disto pode deixar de ser conversado.