Desde os primórdios da sua campanha que Kamala Harris é criticada por evitar entrevistas, fazendo aparências esporádicas e muito espaçadas fora dos comícios e dos púlpitos - em contraste com Donald Trump, que aparece nos mais obscuros dos conteúdos. Esta semana, a campanha da atual vice-presidente norte-americana mudou de estratégia e Harris andou de programa em programa e de podcast em podcast, uma viragem que a imprensa norte-americana catalogou como “media blitz”, com a qual tentou chegar a mais eleitores e, ao mesmo tempo, apresentar uma imagem mais definida e mais próxima do norte-americano “comum”.

A onda de entrevistas começou no domingo e na segunda-feira, no podcast “Call Her Daddy”, um dos programas mais ouvidos por mulheres norte-americanas no Spotify , para discutir os problemas desse eleitorado e os riscos aos direitos reprodutivos em causa nas presidenciais de novembro. Também na segunda-feira, foi emitida a tradicional entrevista dada ao programa “60 Minutes” da CBS, uma praxe para os candidatos às presidenciais que Donald Trump recusou cumprir, e que se centrou em política externa.

No dia seguinte, a candidata democrata esteve em três espaços diferentes em Nova Iorque, aparecendo no “The View”, da ABC News, popular entre mulheres de etnia branca; no programa de rádio de Howard Stern, um dos mais acompanhados do país, em particular por homens, onde falou de Fórmula 1; e, à noite, no ‘talk-show’ de Stephen Colbert, outro ambiente amigável para democratas e onde Kamala Harris até bebeu uma cerveja feita no Wisconsin.

A vice-presidente apareceu inclusive no Weather Channel, na quarta-feira, onde reiterou os apelos da Casa Branca e pediu aos habitantes da Flórida para se resguardarem do furacão Milton. E, finalmente, Kamala Harris foi a um “town hall” (conversa com eleitores) em Las Vegas, organizado pelo Univision, um canal informativo dedicado à comunidade latino-americana, para convencer o importante eleitorado hispânico dos estados-chave do Nevada e do Arizona.

O seu colega de campanha, Tim Walz, não se vai deixar para trás e vai dar arranque ao seu próprio ‘media blitz’. O ênfase está no público que foi incumbido de convencer quando foi escolhido para candidato a vice-presidente: os ‘bros’. Um eleitorado caracterizado tipicamente por homens, brancos, de classe média, cujas bolhas de redes sociais são definidas por desporto, armas e algoritmos que potenciam ‘guerras culturais’.

Esta sexta-feira, Walz vai ao “Good Morning America”, da ABC, falar com um antigo jogador de futebol americano no estádio da Universidade do Minnesota - o facto de o governador do Minnesota ser um ex-treinador desportivo é muito evocado pela campanha democrata. O candidato vai fazer uma ronda por programas em estações locais do Pensilvânia, Michigan e Wisconsin (três estados críticos para a eleição) e, no sábado de manhã, vai dar entrevistas a ‘podcasts’ e a influencers dedicados a públicos masculinos, incluindo a um ‘podcast’ sobre caça.

Se Harris deu entrevistas suficientes para ‘mover a agulha’ do eleitorado, e se as imagens da candidata a beber cerveja ou a falar de temas mais casuais ajudaram, resta esperar para ver. A meio da semana, os democratas tiveram mais uma boa notícia: o New York Times avançou que a campanha da vice-presidente angariou mais de mil milhões de dólares em menos de três meses, um feito histórico em eleições presidenciais nos EUA, um valor muito superior ao dinheiro angariado por Donald Trump, e que permite ao partido investir ainda mais em anúncios e eventos até ao dia 5 de novembro.

Fantasma de Joe Biden e revelação sobre arma encravaram corrida aos média

No meio desta tentativa de estar em todo o lado e falar para toda a gente, muitos especialistas têm duvidado se Kamala Harris tem conseguido cumprir o objetivo de distanciar-se de Joe Biden, sem manchar o legado que também tem a sua assinatura. E Harris, efetivamente, tem tido dificuldades em desfazer essas dúvidas.

Em várias das entrevistas que deu a programas informativos e ‘talk-shows’ (alguns deles pró-Harris, especialmente o de Stephen Colbert e o “The View”) a vice-presidente foi questionada com a mesma pergunta: o que faria diferente de Biden? Harris evitou dar uma resposta definitiva. A Colbert, disse, em jeito de brincadeira: “Bem, quer dizer, obviamente não sou Joe Biden, portanto isso seria uma mudança.”

A declaração que mais refletiu este posicionamento de Harris em relação ao Presidente dos Estados Unidos surgiu no “The View”, em que, questionada sobre o que faria de diferente nos últimos quatro anos, admitiu: “Não há nada que me ocorra de momento.” A ABC News escreveu que a vice-presidente “ampliou o seu alcance mas teve dificuldades em se diferenciar”, enquanto o New York Times destacou que Harris “continuou a esquivar-se” às perguntas desconfortáveis.

O Partido Republicano não perdeu tempo em aproveitar a citação para atacar a adversária do Partido Democrata. Na sua rede social, a Truth Social, Donald Trump considerou a resposta “a mais parva até agora” e criticou Harris por “ser exposta como uma ‘totó’ todas as vezes que aparece num programa”. Já o candidato republicano a vice-presidente, J.D. Vance, gozou com a vice-presidente porque “depois deste tempo todo, depois de pensar tanto”, ela deveria saber responder apropriadamente à pergunta.

A questão da “mudança” é trazida recorrentemente à baila por ambos os lados desta corrida. Harris vende a “mudança” em relação ao passado, Trump a “mudança” em relação a Biden, mas a verdade é que ambos fazem parte, de certa forma, do passado recente da Casa Branca. Uma sondagem de setembro da NBC News perguntou que candidato representa melhor a palavra “mudança”: 47% dos inquiridos escolheu Harris e 38% escolheu Trump. Contudo, o mesmo estudo notou que 40% da amostra mostrou-se preocupada com Harris continuar com a mesma abordagem de Biden; já 39% disse estar mais preocupada com a possibilidade de Trump manter a mesma abordagem que marcou o seu primeiro mandato como Presidente.

Ainda assim, o comentário mais divisivo saiu da entrevista mais desafiante do roteiro, ao programa “60 Minutes”. Kamala Harris já tinha admitido, mais do que uma vez, que é dona de uma arma de fogo - disse-o em 2019 pela primeira vez e repetiu no debate contra Donald Trump em meados de setembro -, mas revelou na entrevista qual a arma que possui. “Tenho uma Glock e já a tenho há algum tempo”, disse.

A novidade foi mal acolhida por grupos conservadores pró-armas, que acusaram Harris de ser hipócrita ao defender medidas mais restritivas para a posse de armas de fogo nos Estados Unidos. E outros grupos, alguns mais à esquerda, questionaram sobre como é que Harris teve acesso a uma Glock, dadas as leis muito rígidas em torno da arma no estado da Califórnia.

Segundo a NBC News, a campanha da candidata democrata não especificou quando e onde é que Harris comprou a sua Glock, qual o modelo e onde é que a mantém guardada. O órgão norte-americano explica que a lei da Califórnia de 2001, que está a ser contestada em tribunais, limita a compra e venda de armas que não cumpram com os requisitos de segurança do estado, e os modelos antigos da Glock incluem-se nessas armas (modelos fabricados depois de 2010 já estão isentos).

A vice-presidente foi procuradora do estado da Califórnia, começando a sua carreira na justiça em 1990, e tem justificado a sua decisão de ter uma arma de fogo para “autodefesa” pelo facto de, nessa altura, a sua profissão e o trabalho em casos mediáticos colocar a sua vida em risco. “Se alguém entrar em minha casa, vai levar um tiro”, disse, num evento com Oprah Winfrey.