Meia centena de voluntários leva sorrisos e companhia ao domicílio de mais de 20 pessoas da cidade de Coimbra, lendo em sessões semanais alguns trechos de obras neorrealistas, no âmbito de uma parceria do Teatrão com a Cáritas.

Aos 84 anos, Maria Clara Faria abre a porta de casa a Helena Jorge e Inês Rodrigues, as duas voluntárias que semanalmente selecionam alguns capítulos para lhe lerem em voz alta.

As primeiras sessões tiveram lugar no Centro de Dia Rainha Santa Isabel, mas a cumplicidade e confiança estabelecida permitiu que as leituras passassem para o sofá de casa.

Alguns trechos de "Dia Cinzento e Outros Contos", de Mário Dionísio, levam Maria Clara até ao passado, recordando alguns pontos em comum com a obra que vai ouvindo com atenção.

De sorriso bem vincado, as recordações transformam-na numa verdadeira contadora de histórias da vida real, partilhando parte do seu legado graças aos estímulos que vai recebendo da leitura.

"Leem histórias muito bonitas, numa delas havia um namorado que namorou três anos e não se decidia, porque a sua vocação era ser padre. Também gostei muita da de Condeixa-a-Nova e Velha, até chorei por causa da cesta, porque me lembrei que o meu pai me fez uma cesta de vimes grande para me mandar as coisas para o Funchal", contou, dando a conhecer que é natural da ilha da Madeira.

Para a próxima semana, a oitava desde o início do projeto "Leituras a Domicílio", estão previstos alguns trechos de "Constantino, Guardador de Sonhos", de Alves Redol, que é também o mais recente espetáculo do Teatrão.

Foi precisamente no âmbito da programação paralela a este espetáculo que nasceram as "Leituras a Domicílio", numa parceria da Companhia Teatrão, com a Cáritas Diocesana de Coimbra, para combater o isolamento.

"Na minha meninice, a minha prima tinha em casa um palco improvisado, com cortinas e tudo. Divertíamo-nos muito e foi isso que me fez participar, no ano passado, numa iniciativa do Teatrão", partilhou.

O programa de leitura de obras neorrealistas serve para ouvir, mas também para mencionar que tem dois filhos, três netos e dois bisnetos e aguçar o apetite sobre as iguarias madeirenses, explicando com exatidão como se faz o 'panelo' ou mostrar a colcha que está a bordar.

"Sou de Ponta Delgada [freguesia da Madeira] e aprendi a bordar aos 11 anos. Esta colcha, que ainda não está acabada, é para a minha neta", mostrou orgulhosa às duas voluntárias.

À agência Lusa, Helena Jorge disse ter ficado muito surpreendida com a capacidade de Maria Clara, aos 84 anos, ter abraçado este desafio.

"Ela aceita este desafio de desenvolvimento, que é proporcionado através da relação, mediado por este instrumento que é o livro, a leitura, as histórias. Mas, na verdade, nós recebemos a oportunidade dessa partilha, desse legado, dessas memórias, que não são apenas factos revividos, mas informações que trazem um significado", referiu a voluntária, que é também psicóloga.

Já Inês Rodrigues, que trabalha na Biblioteca de Condeixa-a-Nova, evidenciou que o voluntariado tem sido "uma agradável surpresa em todos os níveis", permitindo-lhe dar o seu contributo à comunidade, aliado à sua paixão pela leitura.

"Para alguns utentes os voluntários são uma companhia, que proporcionam um dia diferente, para aprender, conversar e recordar", apontou Sónia Lopes, assistente social da Cáritas.

De acordo com a diretora artística do Teatrão, Isabel Craveiro, este projeto surgiu "para chegar a públicos e pessoas a quem não conseguimos chegar".

"Tivemos muitos voluntários, mas depois sentimos alguma dificuldade em fazer corresponder aquilo que foi o número de voluntários com o número de pessoas disponíveis para a leitura. Algumas pessoas tiveram receio de receber pessoas em casa, fazem as leituras no centro de dia, mas, outras, foram passando para casa, à medida que a confiança se foi estabelecendo", indicou.

O ciclo de leituras decorre até junho, mas "a ideia é fazer uma outra edição" e "atingir o máximo de pessoas".