“Lembro-me de, durante o meu estágio da licenciatura, ter tido uma conversa com um aluno de doutoramento sobre a precariedade na carreira de investigação”. Faltavam ainda a Sandra Tavares “muitos passos” para terminar a formação e, pelo que hoje diz ser “uma certa ingenuidade”, achou “que nada podia ser mau durante tanto tempo”, “que as coisas iam, entretanto, resolver-se”. Mas nunca pensou que, 15 anos depois, viesse ela própria a ser “uma vítima do problema”.

“Quando entrei para a licenciatura em Bioquímica, na Universidade do Porto, na verdade, o que eu queria era entrar para a Polícia Judiciária, só que, depois de a concluir, decidi que queria enveredar pela investigação”.

A partir daí, conta, “foi um processo de experimentação”. Esteve um ano no Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB) com uma bolsa de investigação a estudar “o resgate de solos contaminados com componentes orgânicos”, mas, mais tarde, viria a perceber que, era maior “o entusiasmo” que sentia pelo “estudo dos mecanismos de cancro”. Hoje, como líder de projetos no i3S - Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, é no cancro da mama que centra a investigação. A realidade laboral, confessa, é “angustiante”.

“Quando eu defendi o meu doutoramento, em 2016, a minha bolsa era o dobro do salário mínimo nacional, agora, quase dez anos depois, eu ganho o dobro do salário mínimo nacional”, diz a investigadora. “Aumentei o grau, as responsabilidades e o trabalho, tenho pessoas que treino, pessoas a quem eu tenho de pagar e continuo a ganhar o mesmo”.

Contra a precariedade na ciência e pela integração nas carreiras

Esta tarde, investigadores, trabalhadores científicos e docentes do ensino superior juntam-se numa manifestação nacional contra a precariedade na ciência e pela integração nas carreiras. O protesto, que resulta da iniciativa conjunta de vários sindicatos e associações representativas dos trabalhadores científicos e docentes do ensino superior, decorre neste momento em frente ao Ministério da Educação, Ciência e da Inovação, tendo como destino a Assembleia da República e passando pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

A manifestação “tem como principal propósito exigir que o Governo, em particular, o Ministério da Educação, Ciência e da Inovação, e as Instituições de Ensino Superior e de Ciência deem uma resposta efetiva e imediata que ponha fim à precarização dos vínculos que abrangem investigadores, falsos docentes convidados, gestores e comunicadores de ciência e técnicos de investigação”, lê-se na nota enviada pela FENPROF- Federação Nacional dos Professores às redações.

Em causa está, indica o Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup) também em nota à comunicação social, “a falta de soluções efetivas e permanentes para a contratação de investigadores doutorados”. O sindicato calcula que, até ao final de 2025, mais de 2000 investigadores vão ver os seus contratos terminados. O programa atualmente em vigor, o FCT-Tenure, vai cofinanciar 1100 posições para contratações por tempo indeterminado, o que, segundo o SNESUP, “é insuficiente para as necessidades do sistema científico”.

São histórias como a de Sandra Tavares, que entrou para a carreira em 2021, quando depois de ter passado cinco anos na Holanda, conseguiu um contrato de trabalho em Portugal. Um contrato com validade de seis anos. “Decisões de longo prazo são muito difíceis de tomar”, conta. “Eu não sei como é que vai ser a minha vida daqui a três anos”. “Comprar uma casa” ou “constituir uma família” tem de ser “muito bem ponderado”.

Sandra Tavares tirou um mestrado em Biomedicina Molecular, em Aveiro, e um doutoramento em Biologia Celular, no Instituto Gulbenkian de Ciência.
Sandra Tavares tirou um mestrado em Biomedicina Molecular, em Aveiro, e um doutoramento em Biologia Celular, no Instituto Gulbenkian de Ciência. DR

“É quase como se fosses um freelancer, mas com contratos”, diz Sara Romão, bolseira de investigação. “Entras para a carreira e depois andas em concursos temporários de x anos ou x meses, sempre a pensar no próximo [o que] dificulta uma perspetiva de futuro”.

Para além disto, aponta, “na fase inicial, não se é visto como investigador, mas como aluno”. “Estás a fazer investigação, conferências, artigos, trabalhas em ciência, mas sem reconhecimento, quer da entidade empregadora, quer dos colegas, quer dos representantes das entidades e centros de investigação”, explica.

Com 27 anos, Sara Romão está no terceiro ano do doutoramento em Filosofia na instituição - e na área - em que fez todo o percurso académico, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Desenvolve investigação, principalmente, nas áreas da “estética e urbanismo”, mas, grávida e com o fim do período de bolsa a aproximar-se, admite, não o fará por muito mais tempo.

Entrou “no mundo da investigação científica” a não conhecer, “de todo, a realidade de quem está na área”. “Ao saber que a candidatura à bolsa de doutoramento tinha sido aprovada, achei que seria uma escolha importante”, conta. Por isso, despediu-se do trabalho que tinha na altura e pensou, nesse momento, que poderia seguir uma carreira em investigação.

Hoje, admite que o quadro que pinta é “muito negro”, mas que é preciso “falar sobre estes problemas, para que quem vê a investigação como um futuro se inteire das condições reais do trabalho na área”. A situação é “ingrata” e “bastante desencorajadora” para “um trabalho reconhecido como importante para o progresso científico e como um contributo para resolver problemas sociais”.

Remunerações baixas e pouca proteção social

Na empresa privada em que estava, Sara Romão tinha condições que “pareciam impossíveis no contexto dos jovens em trabalho”: “um contrato com segurança, um seguro de saúde e subsídio de férias”; ganhava “acima da média”. Tendo passado por esta realidade, diz perceber “muito facilmente a disparidade” com uma possível carreira em investigação, quer em termos “monetários”, quer em termos de “direitos laborais”.

Sara Romão numa ação de protesto contra a precariedade na investigação.
Sara Romão numa ação de protesto contra a precariedade na investigação. DR

O valor da bolsa de investigação “não está atualizado conforme a inflação, mas de acordo com o salário mínimo”, explica a bolseira. “Não tenho direito ao 13.º e 14.º mês e as férias não estão regulamentadas”, acrescenta.

Para além disto, porque não são feitos descontos para a segurança social, alguns mecanismos de proteção social não se aplicam a investigadores nesta situação. “Quando acabar o período da bolsa, não terei subsídio de desemprego”, diz, por exemplo, Sara Romão. Em breve, entrará “em licença de maternidade” que, explica, “será paga pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), não pela Segurança Social”.

Também o “acesso ao crédito sem um fiador” é difícil para quem não paga contribuições sociais. “Quando eu era aluna de doutoramento”, conta Sandra Tavares. “Pensava: como é possível uma pessoa fazer este caminho de estudos e de desenvolvimento, não só pessoal, mas da comunidade, e não conseguir comprar um micro-ondas a crédito?”


Ir para fora ou abandonar a investigação

Para as jovens investigadoras o futuro da área não parece mais promissor. “Em vez de fazermos uma caminhada que leve à sustentabilidade e à estabilidade da carreira de investigação e que a torne atrativa, estamos a fazer exatamente o contrário”, diz Sandra Tavares. “É cada vez mais difícil ter oportunidades e estas posições em Portugal”.

“Se eu chegar ao fim dos seis anos do meu contrato e não tiver outro, vou deixar a ciência e como eu, muitos”, diz Sandra Tavares. Para as gerações mais jovens “tem de existir uma componente de motivação muito forte e a ciência é um campo altamente competitivo, em que a recompensa emocional demora muito tempo a chegar”, refere. “Num ambiente em que a precariedade é tão forte, se não há dinheiro e não há motivação, os jovens não vão ficar”.

Sara Romão diz que há que “pesar bem os dois pratos”, e a precariedade que adivinha para um futuro na investigação “não justifica o gosto, nem a curiosidade científica”. “Acabando o doutoramento, vou sair da academia”, conta. “Para quem já esteve num trabalho com outras condições”, explica, esta “é uma não questão”.

“Estamos a perder muita gente muito bem treinada e muito capaz”, diz Sandra Tavares, porque se não abandonam a área, “vão para fora”. E, para Sandra Tavares, que fez investigação no estrangeiro, as diferenças são palpáveis. “Na Holanda, em que até os alunos de doutoramento têm um contrato de trabalho, todos os anos existe uma atualização salarial”, explica. “Para subir de estatuto não é preciso ir a um concurso nacional, é feita uma avaliação interna”, acrescenta.

“Não temos problema nenhum em ser absorvidas pelos outros países, porque estamos muito bem treinados, pensamos muito bem e temos uma capacidade muito boa de usar poucos recursos”, diz. “Se calhar, isso é um problema que nós temos, porque habituamos quem nos financia a continuar à espera que nós consigamos fazer limonadas sem limões, porque a verdade é que continuamos a fazer”. “Eu percebo a luta de toda a gente, mas quando é que chega a nossa vez?”


*Artigo escrito por Mariana Ramos Loureiro e editado por Pedro Candeias