Há uns tempos, numa conversa para o podcast Orgulho e Preconceito, o poeta e consultor em diversidade de género André Tecedeiro disse que “o cancro do útero não é do homem nem da mulher, é do útero”. Embora pareça uma lapalissada, o facto é que esta questão sobre quem detém direitos de propriedade sobre determinados órgãos humanos continua a causar polémica e estranheza, nomeadamente nos membros da Assembleia da República e na opinião pública. Esta semana, os direitos da saúde sexual e reprodutiva das mulheres — dever-se-ia dizer “das pessoas com útero”, como o BE persiste em afirmar — voltaram ao âmago da discussão na Assembleia da República. Das propostas dos vários partidos, quatro foram rejeitadas e seis foram viabilizadas, mas a contragosto dos partidos que constituem o Governo.

O Chega começou então por aludir e criticar a linguagem inclusiva, a deputada Rita Matias exigiu um pedido de desculpas por parte do BE às mulheres e que a palavra “pessoa” fosse substituída pela palavra "mulher" nos projetos de lei. Sabemos bem que tentar implementar novos conceitos cria fricção e reação — no sentido reacionário, mesmo —, porém, a mudança é inevitável; quer queiramos quer não, a linguagem acompanha os tempos. Mas talvez faça sentido a confusão expressa pela deputada Rita Matias — que bom seria que tivesse sido uma pergunta genuína, embora saibamos que discussões etimológicas e/ou filosóficas não abundam nas bancadas daquela casa da democracia —, quando perguntou exaltada durante a sessão: “O que é uma mulher?”

Se recuarmos um pouco, digamos dois ou três séculos na História, percebemos a variedade de respostas que poderíamos dar a esta pergunta, sem recorrermos à obviedade da constituição biológica. Há outras tantas questões que podem fundamentar o conceito, nomeadamente os direitos e deveres. Por exemplo, o escritor francês Victor Hugo augurou erroneamente o estatuto e consequente poder da mulher quando disse: “Se o século XVIII foi o dos direitos do homem, o século XIX será o dos direitos da mulher.” A verdade é que os períodos oitocentistas e novecentistas escreveram um parágrafo bastante austero na história da condição feminina. A inferioridade jurídica da mulher casada, a ideologia puritana que encerrava a mulher no lar e a eliminava da vida pública; isto era ser mulher no século XVIII. Seria ideal continuarmos a perpetuar o conceito de mulher diante dos direitos e deveres estanques que descreviam a condição feminina? Um conceito pode e deve ser alargado perante o mundo em transformação. A mulher oitocentista, tirando a constituição biológica tem, de facto, pouco ou nada em comum com a mulher do século XXI. Agarrarmo-nos a estigmas diante das evidências da mudança não contribui em nada para a evolução social e humana que seria desejável.

Sou feminista, embora saiba que ainda hoje esta afirmação nos possa prender, pelo menos os pés, em areias movediças, dado um sem-número de preconceitos e constrangimentos sobre o próprio conceito "feminismo". Tenho a certeza de que designar e defender os direitos de pessoas com útero não faz de mim, nem nunca fará, menos feminista, bem pelo contrário. O feminismo deve ser interseccional e defender todas as outras minorias; longe vão os tempos de queimar só os nossos próprios sutiãs. Há espaço para queimarmos binders, calças, vestidos, saltos altos e saltos rasos; uma espécie de niilismo inflamado e libertador de categorias de género. A luta pela conquista de direitos para todas as pessoas com útero não faz de ninguém menos feminista, nem baralha o conceito de mulher, pelo contrário, torna-o mais abrangente e contribui para a dignificação e liberdade das pessoas em causa.

Em todos os períodos da História, podemos encontrar protagonistas que lutaram pelos seus direitos e pelos direitos de outras pessoas. Eleanor Roosevelt, por exemplo, insistiu que devia ser usado “todos os seres humanos são iguais” em vez de “todos os homens são irmãos”, quando o Art. º 1. º da Declaração Universal dos Direitos Humanos foi redigido em 1948. Esta formulação clarificou que os direitos humanos pertencem a todos os seres humanos, não importa se mulher ou homem, e introduziu a igualdade como um dos princípios capitais.

A reformulação de conceitos e direitos é fundamental na reestruturação de uma sociedade que quer ser mais evoluída e justa. E, por mais desvios que se tente fazer à questão da saúde sexual e reprodutiva das pessoas com útero, a verdade é que as leis pouco avançam porque continuam a ser revistas e aprovadas por um grupo maioritariamente constituído por homens cis, cujos preconceitos se sobrepõem às questões propriamente ditas. Que se escudam eticamente na defesa da palavra e do conceito “mulher” para continuarem a enaltecê-los de uma forma romântica e postiça. Trancam na palavra “mulher” os respetivos direitos. E, de uma forma reacionária, querem invisibilizar a pessoa com útero e os seus direitos básicos à saúde.

Enquanto o poder não estiver mais bem distribuído por cabeças e mãos diversificadas, algumas pessoas continuam a viver este binómio maniqueísta, mulheres ou pessoas com útero, miseráveis ou triunfantes, consoante o que dá jeito às marés do poder patriarcal.