Não acredito em Deus. Não rezo, não vou à missa, não celebro santos, e, quando alguém diz “vai com Deus” ou “até amanhã se Deus quiser”, agradeço com um sorriso por educação, não por devoção. E, no entanto, aqui estou eu — um jovem não crente — a escrever em memória de um Papa.
A Igreja e eu sempre tivemos um acordo tácito: ela segue o seu caminho, eu sigo o meu. Ela acredita, enquanto eu duvido.
O estudo da História e o olhar atento sobre a atualidade sempre me afastaram da fé católica, mas, sobretudo, da instituição. Mas depois comecei a ouvir com atenção Francisco. E, pela primeira vez, deixei de ver o Vaticano apenas como uma fortaleza de dogmas distantes e passei a escutá-lo como um farol (ainda que longínquo) de empatia.
Francisco não me fez passar a acreditar em Deus. No entanto, fez-me acreditar que talvez a fé — a verdadeira fé, aquela que se traduz em cuidado pelos outros — ainda tenha um papel a desempenhar no mundo. E isso, num tempo em que todos falam e ninguém ouve, já é um milagre em si.
O seu olhar para os pobres, para os migrantes, para os excluídos — todos aqueles que o mundo teima em esquecer — foi mais corajoso do que muitas “reformas” prometidas por governos. Enquanto tantos se escondem atrás de estatísticas, Francisco falava de rostos. E fazia-o com uma serenidade que desarmava até o mais cético entre nós.
Quando condenou o “capitalismo selvagem”, quando pediu perdão pelos abusos cometidos dentro da própria Igreja, quando lavou os pés de imigrantes muçulmanos — fê-lo como quem desafia não só a tradição, mas o próprio conforto do poder.
Um Papa a incomodar católicos? Quem diria, mas Francisco incomodava. Por seguir as mais belas lições dos evangelhos.
Num mundo onde a fé tantas vezes serve de escudo para o preconceito ou de palco para a vaidade, Francisco pareceu recuperar algo essencial: a fé como serviço, como presença no sofrimento do outro. Não era preciso partilhar da crença para reconhecer a sua entrega. Havia nele uma clareza moral que, mesmo envolta em símbolos religiosos, tocava algo anterior às religiões — aquilo que poderíamos chamar, simplesmente, de humanidade.
Talvez resida aí o paradoxo mais bonito: a força de uma figura religiosa não em converter, mas em inspirar. E essa inspiração não depende da crença, mas do gesto. Francisco mostrava que é possível liderar com ternura, falar com firmeza mas sem arrogância, crer sem excluir.
Francisco deixou muito por fazer, e tanto por questionar. No entanto, os passos dele, mais do que importantes para a Igreja Católica, foram importantes para a humanidade.
Via em Francisco algo raro: a tentativa genuína de ouvir, de compreender, de mover, ainda que devagar. E essa tentativa, num mundo onde a rigidez virou sinónimo de coerência, foi mais do que reformista — foi revolucionária.
Não o seguia por fé, seguia-o por respeito. Porque num mundo que se desfaz em cinismo, o Papa Francisco foi sempre uma voz de esperança.
E talvez seja essa a maior bênção que ele nos deixa: a de, mesmo sem converter, tocar.