No dia em que celebramos a Liberdade, vale a pena refletir sobre as instituições que a sustentam e garantir que o Estado de Direito não seja apenas uma promessa bonita — mas uma prática digna, transparente e merecedora da confiança de todos.
A Liberdade não é só um símbolo
O 25 de Abril não vive apenas nos cravos ou nas ruas cheias de esperança. A Liberdade protege-se e renova-se todos os dias nas instituições que servem o país — e uma delas é a Justiça. Se Abril nos devolveu o direito a escolher, também nos deixou a responsabilidade de garantir que o Estado de Direito não fique por boas intenções: precisa de ser exercido com rigor, transparência e respeito pelos cidadãos.
Como cidadão — e não como jurista — confesso que, tal como muitos, me inquieto ao ver notícias sobre processos sujeitos a segredo de justiça sendo divulgados de forma seletiva e estrategicamente calendarizada, sobretudo em momentos de maior sensibilidade política. Não aceito que seja uma prática tolerável e acredito que este é um desafio que pode ser superado. Criticar estas fugas de informação não é questionar o nobre papel do Ministério Público de investigar e acusar, como lhe compete nos termos constitucionais e legais. Pelo contrário — é reforçar a necessidade de que essas funções sejam exercidas com rigor, imparcialidade e respeito pelas garantias processuais. Assim, podemos garantir que a Justiça se realiza nos tribunais e não na praça pública, protegendo a autoridade das instituições e fortalecendo a confiança pública, essenciais à integridade do Estado de Direito.
Como funciona o nosso sistema judicial?
Antes de avançarmos, os meus amigos juristas alertaram-me para a importância de esclarecer o ponto de partida: em Portugal, os tribunais são independentes, respondem apenas à lei (artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa) e não estão sujeitos a ordens ou instruções de qualquer entidade. Já o Ministério Público é autónomo — o que significa que, embora atue com isenção e responsabilidade, funciona dentro de uma hierarquia própria (artigo 219.º da CRP), cabendo-lhe decidir quem investiga e quem acusa.
Este modelo, consagrado na Constituição, merece ser respeitado e valorizado. A autonomia e a independência da Justiça são pilares fundamentais de qualquer democracia saudável. Mas como qualquer sistema, também este pode beneficiar de melhorias. Há oportunidades para reforçar a proximidade com os cidadãos, clarificar procedimentos e partilhar mais informação sobre a forma como as instituições funcionam. Mais transparência e mais abertura ao escrutínio só podem contribuir para fortalecer a confiança pública e valorizar o papel da Justiça na consolidação do Estado de Direito. E isso é um sinal de maturidade democrática — de um país que não teme olhar para si próprio e encontrar formas de fazer melhor.
Separação de poderes… e escrutínio possível
Vivemos num regime constitucional baseado na separação de poderes (artigos 111.º e 203.º da CRP). É por isso inconcebível — e bem — que magistrados sejam chamados à Assembleia da República para explicar ou prestar contas sobre processos concretos. Isso colocaria em causa a autonomia do poder judicial e abriria a porta a pressões políticas, algo incompatível com a democracia que construímos.
Ainda assim, isso não significa que não haja espaço para reforçar mecanismos de escrutínio institucional. Os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, responsáveis pela gestão e disciplina dos magistrados, já integram membros nomeados pelo Presidente da República e pela Assembleia da República (artigos 217.º e 220.º da CRP), assegurando um equilíbrio saudável entre o poder judicial e representantes externos. Há margem, contudo, para aprofundar essa abertura e reforçar a ligação entre as instituições e os cidadãos. Aliás, várias instâncias europeias têm sugerido esse caminho: mais diálogo institucional, maior transparência e práticas que consolidem a confiança pública, sempre no respeito pela autonomia e pelos princípios constitucionais.
O que podemos aprender lá fora?
Se olharmos para outras democracias consolidadas, encontramos formas de reforçar a transparência sem comprometer a independência judicial:
• Em Itália, França ou Espanha, os Conselhos da Magistratura incluem juristas, académicos e cidadãos de reconhecido mérito.
• Na Noruega, uma Comissão independente, eleita pelo Parlamento, fiscaliza a conduta dos juízes.
• Na Alemanha, os responsáveis judiciais prestam contas no Parlamento — não sobre processos, mas sobre o funcionamento dos tribunais e a gestão do sistema judicial.
• No Canadá, publicam-se relatórios acessíveis a qualquer cidadão, com dados sobre o desempenho dos magistrados e informações disciplinares.
Portugal tem aqui boas oportunidades para se inspirar nestas práticas e adaptá-las à sua realidade constitucional, reforçando a transparência e o diálogo institucional. A Comissão Europeia e o GRECO já apontaram esse caminho, não como crítica destrutiva, mas como contributo para um sistema mais aberto, mais claro e ainda mais respeitado pela sociedade.
Mais responsabilidade, mais força institucional
É importante sublinhar: mais responsabilidade e escrutínio não significam menos autonomia. Pelo contrário — reforçar a transparência é a melhor maneira de proteger a legitimidade de quem exerce funções de soberania em nome do povo. A História mostra-nos que, quando as instituições se abrem ao escrutínio e ao diálogo, elas se fortalecem.
Nos últimos anos, o Ministério Público tem sido alvo de críticas, sobretudo pela gestão de tempos processuais, fugas de informação e investigações que, por vezes, não têm resultados concretos. O combate ao crime económico-financeiro — ou a qualquer outro — deve, sempre, ser conduzido com rigor e justiça, sem cair em abusos processuais ou julgamentos precipitados na praça pública. Quando este processo é bem conduzido, a confiança dos cidadãos é mantida e a Justiça sai mais coesa.
Caminhos possíveis para Portugal
Inspirando-nos nestas boas práticas internacionais, há caminhos que podem e devem ser debatidos e ajustados à nossa realidade constitucional:
• Integrar juristas e cidadãos de reconhecido mérito nos órgãos de governação judicial;
• Desenvolver relatórios públicos sobre desempenho e gestão de processos;
• Reforçar a fiscalização por entidades externas;
• Promover maior diálogo institucional e audições periódicas, sem nunca tocar na autonomia de processos ou investigações.
Ao promover a transparência e o diálogo, as instituições reforçam a sua credibilidade e cumprem melhor o seu papel na sociedade. É com um sistema mais aberto e responsável que podemos garantir uma Justiça mais eficaz, digna da confiança de todos e capaz de responder às exigências de uma democracia madura.
Abril é responsabilidade, não só memória
O 25 de Abril ensinou-nos a corrigir o que precisa de ser ajustado e a garantir a dignidade das nossas instituições. Zeca Afonso cantou-nos "Grândola, Vila Morena" como um hino à igualdade e à ordem democrática, onde "o povo é quem mais ordena". Mas a verdadeira democracia constrói-se também pela responsabilidade de processos bem conduzidos, longe de julgamentos públicos e sempre próximos da verdade.
Se quisermos uma metáfora cultural, podemos lembrar a capa do álbum ...And Justice for All, dos Metallica, onde a estátua da Lady Justice aparece vendada, desequilibrada e capturada por interesses. Mas o 25 de Abril ensinou-nos o contrário: que é possível lutar contra essa visão, defendendo um Estado de Direito em que ninguém está acima do escrutínio e onde as instituições servem a Liberdade com respeito e rigor.
Que possamos, com coragem, honrar Abril — não apenas nas ruas e nas canções, mas também na construção de instituições sérias, transparentes e respeitadas, capazes de defender a Liberdade com a mesma dignidade que o povo sonhou naquela madrugada.
Vemo-nos hoje pela Avenida da Liberdade.
Viva o 25 de Abril!