Apanhada de surpresa pela petição nascida no dia da árvore contra o abate de uma larga maioria dos jacarandás da avenida 5 de outubro, que em pouco tempo foi assinada por quase 54 mil cidadãos, a Câmara de Lisboa expôs-se numa desnorteada tergiversação, com promessas vãs logo desmentidas no dia seguinte pela sua própria ação, anunciando que abatia, depois suspendia, depois replantava, afinal plantava novas árvores, como alguém que estica um curto cobertor que ora tapa o tronco, mas destapa os pés.

Como os cidadãos bem sabem, o executivo municipal – tal como uma boa parte dos decisores políticos do país – mostra uma confrangedora insensibilidade face ao papel insubstituível que as árvores desempenham, em particular em ambiente urbano. Prova disso é a forma como tão facilmente se descartam delas, ao mesmo tempo que nos ludibriam com pseudo-soluções que não passam de panaceias face ao impacte dos abates e das podas-mutiladoras com que nos assolam. Na freguesia do Lumiar, onde resido, já em várias ocasiões enviei ao executivo, atual e ao anterior, socialista, fotos de práticas arbóreas absolutamente assassinas, tendo recebido como resposta (quando recebo uma resposta!): “Nós só trabalhamos com empresas certificadas.” Mas francamente, que certificação é esta que decepa regularmente árvores e arbustos e que desconhece que as podas se devem reduzir ao mínimo indispensável, sob pena de colocarem em causa o estado fitossanitário, abrindo caminho a feridas que acabam, essas sim, por condenar as espécies e prejudicar a segurança dos munícipes? Que certificação é esta que não protege da erosão o solo onde planta arbustos e árvores nem se dá ao trabalho de aproveitar para tal os resíduos das próprias podas?

Apenas na minha rua, e circundantes, já vi os serviços municipais fazerem podas no início do Verão. Já vi pinheiros centenários serem secados e cortados sem piedade. Já vi arbustos de 3 metros de altura reduzidos a 50 cm após uma dessas podas tão ao gosto dos autarcas. Já vi oliveiras, também centenárias, serem transplantadas para darem lugar a habitação municipal (mesmo tendo o município centenas ou milhares de fogos desabitados que poderiam cumprir a função). Já vi um camião TIR de 14 metros de comprimento, completamente carregado, levar todas as árvores de um lado da rua, passeios e terrenos circundantes, para dar lugar a uma obra particular (com o irónico nome de Kronos Homes Zen, empreendimento cujos trabalhos chegaram a decorrer inúmeras vezes, com impunidade, até perto da meia noite). Neste caso em concreto, não houve uma única entidade que se dignasse informar os fregueses que iam perder a maioria das árvores da sua rua de um dia para o outro. Nem se incomodaram em dar-me uma resposta digna do nome, entre Junta de Freguesia do Lumiar, Câmara Municipal de Lisboa, GNR – Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) e Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) contactados. Ainda há poucos anos, havia centenas de pássaros na minha rua. Hoje não se ouve um chilrear.

No entanto, no seu vídeo publicitário, a CML garante que em Entrecampos “só” vai abater 45 árvores para “reforçar” o carácter do espaço que vai ser “ainda mais verde num futuro próximo”, ao mesmo tempo que informa que não procede a abates sem “uma análise muito fina e muito rigorosa do ponto de vista técnico e científico.” Em ano de eleições autárquicas, Carlos Moedas está certamente ciente de que esta triste demonstração do que é a gestão da rede verde da cidade lhe poderá fazer perder votos e popularidade. O presidente da Câmara Municipal de Lisboa está obrigado ao Compromisso Lisboa Capital Verde Europeia 2020 – Ação Climática Lisboa 2030 (curiosamente omisso no site da CML), que entre outras medidas, pretende reverter a perda galopante de biodiversidade, o outro lado da moeda das alterações climáticas. Ora, abater ou transplantar árvores em época de nidificação dá-nos uma exata medida da seriedade das preocupações ambientais do executivo social-democrata.

O facto é que, numa zona da cidade tão densamente edificada, apenas servida a norte pelo estreito corredor verde constituído pelo jardim do Campo Grande, não vimos um esforço dos sucessivos executivos para devolverem à cidade um espaço que sempre foi de lazer, a feira popular, e assim deveria ter sido mantido, garantindo aos lisboetas maiores zonas não betonizadas e não impermeabilizadas, com custos de prevenção de cheias certamente menores face a obras faraónicas como o plano de drenagem de Lisboa, com a sua tuneladora de 130 metros, importada da China, que no mínimo custará 250 milhões de euros aos contribuintes. Será por que soluções baseadas na natureza pressupõem um planeamento que não existe, salvo raras exceções como o novo jardim da praça de Espanha? Em Entrecampos, precisamente, nas cheias de 2023, a estação de metro ficou completamente inundada e os tapetes rolantes estão desde então avariados. Será que a solução passa por apostar em pesadas obras de engenharia?

Na designada “Operação Integrada de Entrecampos”, a Fidelidade Property, nova dona do espaço da antiga feira de diversões, também promete no local um futuro risonho e bem mais verde. Lá para 2027. Certo é que, em junho passado, houve uma vaga e curta consulta pública, não disponível online e estrategicamente agendada para o período dos santos populares, a ver se passava – e passou – despercebida. Por isso os habitantes da avenida 5 de outubro não se aperceberam do mercadejar do seu espaço público, acordado entre a seguradora e a autarquia, que não vê melhor solução para o premente problema dos transportes da cidade que fomentar o transporte privado no centro e a construção de um parque subterrâneo de estacionamento na via. Os próprios arquitectos denunciaram há quase dois anos a adulteração dos espaços verdes que projetaram e a perda de qualidade do espaço público.

Em Inglaterra, um país onde as árvores são amadas, é genericamente proibido abater uma árvore sem prévia autorização. Por cá, mesmo as espécies expressamente protegidas por lei, como os sobreiros e as azinheiras, são regularmente abatidas, em nome de interesses ditos superiores. Estes seres vivos que nos fornecem preciosos serviços do ecossistema (purificação do ar, captura de carbono, regulação térmica e do vento, sombra, abrigo de biodiversidade), num planeta em que mais de 8 milhões de pessoas morrem prematuramente por ano devido à poluição atmosférica, e onde a alteração climática que vivemos produz perigosas ilhas de calor nas cidades, não logram obter o respeito mínimo dos responsáveis, como o demonstra o atropelo repetido ao Regulamento Municipal do Arvoredo de Lisboa.

O Relatório de Avaliação Visual de Arvoredo Envolvido no Projeto da Unidade de Execução de Entrecampos, de 2019, contraria as declarações públicas da Vereadora do Urbanismo, Joana Almeida, e da Diretora Municipal dos Espaços Verdes, Catarina Freitas. Numa tentativa de passar a responsabilidade da situação ao executivo socialista que o antecedeu, desmentida pela SIC, Carlos Moedas terá agora de contestar a providência cautelar interposta pelo PAN, que suspendeu os abates. Esperemos que os tribunais demonstrem uma visão de cidade do futuro que o presidente não possui: o lilás dos jacarandás em flor é uma cor associada à espiritualidade, introspeção e transformação, em colisão com o mercantilismo e com o embaraço que os movimentos de cidadãos ainda representam para o poder.

Aos lisboetas, os promotores da petição apelam à comparência massiva na sessão pública de esclarecimento que decorre no Fórum de Lisboa no dia 2, pelas 18h30h, e que carece de inscrição prévia.

Marta Leandro

Membro do Conselho do Gabinete Europeu de Ambiente (EEB)