O recente caso envolvendo Álvaro Sobrinho, ex-presidente do BES Angola, expôs uma falha grave no sistema de registos e nacionalidade de Portugal, levantando questões sérias sobre a integridade e eficácia dos processos burocráticos do país.

Este escândalo não apenas coloca em xeque a credibilidade das instituições portuguesas, mas também lança luz sobre um problema mais amplo: a potencial exploração da nacionalidade portuguesa por indivíduos poderosos e controversos.

O caso Sobrinho: uma falha com 40 Anos

Álvaro Sobrinho, figura central num caso de desvio de 400 milhões de euros do BES Angola, renunciou à nacionalidade portuguesa há quatro décadas.

No entanto, surpreendentemente, o seu passaporte português só foi apreendido em agosto de 2024.

Esta revelação que nos chocou a todos, levantou questões perturbadoras sobre a eficácia dos sistemas de controlo e comunicação entre as várias entidades governamentais portuguesas.

A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, admitiu que "algo falhou no IRN" (Instituto dos Registos e Notariado) e ordenou um inquérito interno para apurar as circunstâncias desta falha monumental.

O IRN, por sua vez, atribuiu o erro a uma possível "falha de comunicação entre sistemas de registo e identidade civil".

Estas explicações, embora plausíveis, dificilmente aplacam as preocupações sobre a segurança e a integridade do sistema de nacionalidade português.

De Sobrinho a Abramovich: um padrão preocupante?

O caso Sobrinho não é um incidente isolado.

Em 2022, o bilionário russo Roman Abramovich, que obteve um passaporte português, viu-se no centro de uma controvérsia ao tentar vender o clube de futebol Chelsea.

Devido às sanções impostas pela União Europeia em resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia, Abramovich, como cidadão russo, estava impedido de realizar a transação.

Curiosamente, foi a sua recém-adquirida nacionalidade portuguesa que permitiu a Abramovich contornar essas restrições.

O governo português recebeu um pedido formal de Abramovich para autorizar a venda do Chelsea, uma situação que é paradigmática da forma como a nacionalidade portuguesa pode ser utilizada como uma “ferramenta” estratégica em negócios internacionais.

O valor do passaporte português

É importante notar que o passaporte português é um dos mais valiosos do mundo, permitindo a entrada sem visto em 189 países e ocupa o 5º lugar no ranking global dos passaportes mais poderosos do mundo.

Esta característica torna a nacionalidade portuguesa extremamente atraente, não apenas para imigrantes em busca de melhores oportunidades, mas também para indivíduos abastados e poderosos que procuram flexibilidade nas suas operações globais.

O problema da "venda" da nacionalidade

Os casos de Sobrinho e Abramovich levantam questões éticas sobre a concessão e manutenção da nacionalidade portuguesa.

Existe uma preocupação crescente de que o sistema possa estar a ser explorado por indivíduos com recursos financeiros significativos, potencialmente comprometendo a integridade do processo da naturalização.

A facilidade com que Sobrinho manteve os seus documentos portugueses por décadas, apesar de ter renunciado à nacionalidade, e a maneira como Abramovich utilizou o seu passaporte português para contornar sanções internacionais, sugerem que o sistema pode ser vulnerável a manipulações.

Necessidade urgente de reforma

A situação envolvendo Álvaro Sobrinho e as questões levantadas pelo caso Abramovich são sintomáticas de problemas mais profundos no sistema de nacionalidade e registo de Portugal.

Estes incidentes não apenas minam a confiança pública nas instituições portuguesas, mas também levantam preocupações sobre a segurança nacional e a integridade do processo de naturalização.

É imperativo que o governo português não apenas investigue estes casos específicos, mas também implemente reformas abrangentes para fortalecer o sistema.

Isso pode incluir a modernização das bases de dados, melhorias na comunicação entre serviços públicos e um escrutínio mais rigoroso dos pedidos de nacionalidade, especialmente aqueles provenientes de indivíduos de alto perfil ou com históricos controversos. É crucial implementar sistemas de verificação cruzada de informações, reforçar a formação dos Conservadores de Registos e Oficiais de Registos envolvidos no processo e estabelecer mecanismos de auditoria regular para garantir a integridade do sistema. A digitalização dos processos, aliada a uma maior transparência e acessibilidade para os cidadãos, também pode contribuir significativamente para a eficácia e confiabilidade do sistema de atribuição de nacionalidade.

Adicionalmente, é imperativo abordar as vulnerabilidades que permitem a manipulação das situações que facilitam a aquisição da nacionalidade portuguesa. A aparente facilidade com que indivíduos conseguem contornar os requisitos legais ou explorar lacunas no sistema é profundamente preocupante. Casos como o dos descendentes de judeus sefarditas, onde a intenção de corrigir uma injustiça histórica pode ter sido explorada por alguns para obter vantagens indevidas, demonstram a necessidade de um equilíbrio delicado entre acessibilidade e rigor no processo de naturalização.

É essencial implementar um controlo mais rigoroso em todas as etapas do processo de naturalização. Isto inclui uma verificação mais aprofundada dos documentos apresentados, uma investigação mais detalhada dos antecedentes dos requerentes e uma avaliação mais criteriosa dos vínculos efetivos com Portugal e a comunidade portuguesa.

Paralelamente, é essencial reforçar os quadros dos Conservadores de Registos e Oficiais de Registos, uma vez que os atuais se encontram significativamente abaixo do nível exigível para um funcionamento eficaz e eficiente.

A escassez de pessoal não só compromete a qualidade e a celeridade dos serviços prestados, mas também aumenta o risco de erros e falhas no processamento de pedidos de nacionalidade e outros procedimentos.

O reforço dos quadros deve ser acompanhado por programas de formação contínua e especializada, garantindo que os funcionários estejam sempre atualizados quanto às mais recentes alterações legislativas e procedimentais.

Além disso, é fundamental implementar medidas para reter funcionários e atrair novos profissionais qualificados para esta área, assegurando assim a continuidade e a melhoria dos serviços de registo e nacionalidade.

Sem estas medidas, corremos o risco de que a facilidade de obtenção da nacionalidade portuguesa possa ser utilizada para fins ilícitos ou que prejudiquem a imagem do nosso país, potencialmente colocando Portugal no centro das atenções internacionais pelas piores razões.

A nacionalidade portuguesa, com todos os benefícios que oferece, deve ser protegida e valorizada.

Não pode ser vista como uma mercadoria a ser comprada ou manipulada por aqueles com meios para fazê-lo.

O governo português tem agora a oportunidade e a responsabilidade de restaurar a integridade do seu sistema de nacionalidade, garantindo que ele sirva aos interesses de Portugal e dos seus cidadãos legítimos, e não aos interesses de uns poucos privilegiados.