Na década de 60, a música dos Beatles anunciava a vitória do cosmopolitismo europeu sobre o globo. A Europa continuaria a sonhar enquanto pudesse dormir profundamente sobre a vitalidade dólar americano e o seu império. Hoje, o império treme e a Europa acorda: afinal era mesmo um sonho.
Durante o século xx o mundo ocidental expandia-se com pouca ou nenhuma oposição interna tal era o consenso gerado pela prosperidade do dólar americano. Como todas as civilizações, um ideal coletivo agregou-se em torno da eternidade de uma crença – neste caso, na crença de que o crescimento material iria durar para sempre. Hoje, basta-nos olhar para o facto de que na América, a “Roma” do império ocidental moderno, o ato eleitoral se tornou numa fonte de insegurança e medo – em vez de um motivo de orgulho – para confirmar a queda do idealismo coletivo ocidental.
Como na maior parte das vezes em que uma narrativa política comum se desfaz, o que resta é uma consciência aguda que amplia as crises e discordâncias. O fim do sonho e da expansão ocidental concretizou-se na queda da classe média no mundo ocidental e do fim aparente do american dream. O que resulta desta civilização desinspirada é a ausência quase completa de uma vontade política que seja capaz de resolver as suas crises ou de imaginar o futuro para além delas, porque o futuro não é sequer concebível sem a confiança concedida pelo ideal coletivo.
Quando a confiança é forte e o consenso político vasto, não há crise nem conspiração que abale ou divida sociedade alguma. Durante a segunda metade do século xx os Beatles lançavam “across the universe” cantando a vitória antecipada do universalismo europeu que um pouco mais tarde se concretizava no êxito do dólar americano pelo mundo fora. Tudo isto aconteceu enquanto o mundo esteve à beira da destruição atómica.
Numa altura em que a descrença na hegemonia do ocidente – revista na loucura dos que construíam bunkers debaixo da terra com medo do apocalipse comunista, dos que não acreditavam que o Homem foi à lua ou nas teorias psicadélicas dos hippies – foi sustida pela convicção inabalável do ideal político americano. Quem matou o Kennedy? Nunca soubemos, mas nem a morte súbita de um dos presidentes mais carismáticos da história americana permitiu que o desespero rompesse pelo espaço político a dentro sob a forma teorias da conspiração. Para o bem e para o mal, o futuro promissor agarrou os extremos.
Aqui na Europa o entusiasmo e o fervor político sempre foram mais comedidos. Ainda que o velho continente tivesse encontrado uma nova inspiração no mito da classe média americano logo após a segunda guerra, a estrutura social e política europeia nunca se deixou levar pela euforia do american dream. Antes do Plano Marshall aterrar na Europa, o mito europeu de solidariedade e dignidade humana já existiam.
Talvez deste lado do Atlântico seja menos provável começar a limpar casas de banho e acabar numa penthouse na avenida mais cara da metrópole, mas também é menos provável to end up in the streets (slogan americano). Se esta última comparação é verdade é porque as democracias europeias incorporaram a ideia de solidariedade e bem-comum enquanto na América essa responsabilidade ficou na vontade de cada indivíduo. A diferença jaz no facto de que os Americanos sobrepuseram o interesse individual sobre o coletivo, deixando grande parte da questão da dignidade humana (ideal europeu par excellence) à mercê da sorte e do mérito individual.
Ao longo das últimas décadas parece que houve uma troca útil entre a Europa e os Estados Unidos da América – os americanos receberam os valores universais e os direitos humanos europeus em nome dos quais policiaram o mundo escondendo o facto de se tratava apenas de subsistência para alimentar o american dream e os europeus receberam em troca a crença no consumismo e no mercado livre não só renascendo da destruição das grandes guerras mas garantindo que os valores europeus continuavam a existir.
O maior resultado desta relação foi a dependência europeia da política externa americana, que passou despercebida na Europa enquanto o consenso político proliferava às cavalitas da prosperidade económica do mercado livre americano. O mito americano alimentou o mito Europeu. À medida que vamos percebendo que o futuro da economia Europeia está em queda livre põe-se em evidência uma verdade terrível: a Europa, como o aluno que se habituou a copiar e deixou de saber estudar, não percebeu que adotou cegamente um modelo económico que mais tarde ou mais cedo iria tornar-se incompatível com o seu modelo social e moral.
O foco excessivo na política monetária e na estabilidade da moeda logo após a crise financeira de 2008 foi um golpe autoinfligido sobre o mito Europeu. Os líderes europeus sabiam que a austeridade imposta sobre os países do sul da Europa seria um ato cruel que iria culminar na degradação do investimento público e num modelo de crescimento insustentável nesses mesmos países. Mesmo assim, preferiram manter a estabilidade do euro à custa do modelo de solidariedade e cooperação europeia. Hoje, os jovens portugueses e gregos (e falo por experiência própria) chegam aos países do norte da Europa fugindo do modelo de crescimento imposto aos países do sul, incapazes de competir dentro da economia europeia. Fogem da economia de serviços e turismo, o único setor com um futuro.
Sim, a livre circulação de bens e pessoas mantém vivo um sentimentalismo político para os jovens europeus, mas esse sentimento pouco ou nada tem que ver com o mito europeu. Trata-se antes de um sentimentalismo nacional, assente sobre o descontentamento com a desigualdade e a falta de condições. Na livre circulação os jovens celebram as fronteiras e a comparação entre os países ricos e os pobres, a nostalgia daquilo que o “nosso país podia ser, mas não é”. A vida política europeia começa e acaba no Estado-nação.
Se a Europa queria cultivar o mito europeu, deveria ter desenvolvido um modelo económico assente na igualdade. Atenuando os conflitos e as diferenças económicas internas, teria dado uma oportunidade aos europeus de esquecerem o peso dos obstáculos e limites nacionais, passando a problematizar a vida política do ponto de vista europeu – passando a sonhar a Europa. Tal coisa teria sido possível se em vez de adotar o mito do growth para controlar os défices e competir em termos nominais com as outras economias globais, a Europa tivesse tido uma abordagem mais integrada na sua política económica. Isto é, promovendo o investimento público robusto em regiões e países menos desenvolvidos, flexibilizando as regras de austeridade ou partilhando o risco de dívida entre todos os Estados-membros.
O projeto Europeu só poderia assumir o seu verdadeiro rosto se o modelo económico espelhasse o mito europeu, reinterpretando a relação entre o mercado livre e o poder político. Uma reinterpretação que é impedida pela dependência quase emocional em relação aos EUA, que até agora ofereceram um sonho económico insustentável para uma sociedade cujo mito depende do coletivismo e do bem-estar social. Pela última década, apercebemo-nos que a China e a Rússia ou ultimamente até os EUA, trabalham para um modelo de sociedade alternativo sustentado por uma conceção da natureza política do Homem diferente.
A Europa encontra-se isolada de novo, não pela vantagem económica e material mas pelas suas velhas ideias. No entanto, a Europa não parece ainda estar disposta a aceitar tal isolamento. No médio oriente o velho continente deixa-se arrastar pela desumanidade da política externa americana, mostrando de novo o medo antigo de assumir responsabilidade pelas suas ideias. Mas onde está a possibilidade de falência do mito Europeu também está a possibilidade da sua restauração. Onde os direitos e dignidade humana sucumbem perante a brutalidade dos conflitos civilizacionais, a Europa tem uma oportunidade de reaparecer. Isto é, de mostrar que a violência e o luto do século mais violento da história da humanidade não foram em vão e de que o progresso não é apenas material.