A tranquilidade e a paz pública parecem estar lentamente a regressar à área Metropolitana de Lisboa depois de 3 dias e 3 noites de intensa desordem pública, grande parte dela gratuita e sem qualquer ligação ao fatídico acontecimento que levou à morte de uma pessoa no bairro da Cova da Moura.

De um lado, procura-se esmiuçar a vida de quem a perdeu, dividindo-a entre a bondade e a criminalidade; e do outro, procurando generalizar a polícia como uma instituição racista tomada de assalto pelo extremismo. Tem-se abordado o assunto como se de um jogo de futebol se tratasse. Os bons e os maus estão do lado da barricada em que cada um se encontra. Assim, com leituras meramente emocionais, não vamos lá: à raiz do problema.

Neste tempo, exige-se ponderação. Alimentar o fogo do ódio, de uns contra os outros, nunca foi e nunca será solução. Perdeu-se uma vida, a investigação determinará as circunstâncias. Este é o tempo da justiça e não da violência.

Aos políticos exige-se responsabilidade e de uma grande parte deles não houve! Os extremos, primeiro à esquerda e depois à direita, entraram na demagogia do disparate! Um caminho perigoso que serve apenas para extremar posições e destruir o território da construção de soluções.

À comunicação social pede-se isenção e uma parte significativa da mesma perdeu a noção do seu papel.

As associações cívicas, que trabalham na área dos direitos humanos, barricaram-se na trincheira do racismo e caíram no erro da generalização, e as forças de segurança nem sempre foram lúcidas em algumas das ações que realizaram e das declarações que prestaram.

O resultado foi explosivo. Desacatos, destruição do património público e privado e atentados à vida de outros que apenas procuravam cumprir o seu horário de trabalho e com isso servir aqueles que diariamente se levantam para ir trabalhar e estudar.

Fico com a perceção que as pessoas se esqueceram das outras pessoas, de que os seus vizinhos o deixaram de ser e de que os laços de respeito se desataram. Teremos perdido a empatia?

Na verdade, e isto tem de ser dito, a situação é demasiado grave para que olhemos apenas para o presente, as razões estão lá mais atrás e os autarcas não podem fugir às suas responsabilidades. Grande parte deles preferiu o silêncio e quando o Governo os convocou, e bem, por via do Ministro da Presidência, bradaram em voz alta a necessidade de reforço do policiamento. É sempre assim, é sempre mais fácil quando se atira a responsabilidade para os outros.

Sejamos claros, o problema vivido nos últimos dias é multifacetado e de uma forma clara pode ser resumido a isto: Guetização.

Guetização por via da construção de enormes bairros municipais. Guetização pela falência das políticas locais de integração. Guetização pela desadequação da escola pública quanto ao seu modelo educativo e formativo. Guetização pela falência do sistema policial quanto a meios, formação e distribuição dos seus efetivos. Guetização pela desvalorização do valor do trabalho por via da generalização na atribuição de apoios sociais pecuniários.

Simplifico, para que o texto não se torne demasiado extenso.

Grande parte daqueles que provocaram os desacatos, são jovens da 2ª e 3ª geração daqueles que há muito procuraram Portugal para trabalhar. Basta utilizar o comboio da linha de Sintra pela manhã para perceber como as carruagens se enchem com pessoas de meia idade, de origem africana, enquanto uma parte dos seus filhos e netos deambulam por casa e nos cafés ou na Escola que perdeu a vertente formativa prática em profissões que hoje tanta falta fazem. Para muitos, a Escola é apenas mera ocupação até aos 18 anos.

Tenho a profunda convicção de que para mudarmos a situação vivida, a par da Escola, a solução reside no papel das câmaras municipais.

Porque estão próximas das suas comunidades locais e, sobretudo, porque têm competências, responsabilidades e meios para o fazer. Agir em contexto escolar, intervir socialmente junto das comunidades mais frágeis, mobilizar parceiros sociais e empregadores, garantirem os direitos cívicos daqueles que abrigam nas suas habitações municipais e exigir-lhes o cumprimento de deveres. Há tanto por fazer, assim se queira e há por aí tão bons exemplos.

Sei que assim é pela minha experiência na delegação de Sintra da Cruz Vermelha Portuguesa. Depois de garantido o apoio da Câmara Municipal, foi possível começar a trabalhar num bairro de realojamento. A experiência é recente e tem procurado trabalhar junto das crianças e jovens. O primeiro passo foi dado: trazer as pessoas até à instituição e proporcionar-lhe atividades nas férias, acompanhá-los na sua atividade escolar e trabalhar com as famílias em muitos aspetos do seu dia-a-dia. Não é original, é idêntico a tantos outros, alguns que em Sintra começaram na década de 90, como a associação Casa Seis e outros nos primeiros anos de 2000, com o Contrato Local de Desenvolvimento Social assinado com a Fundação Agha Khan.

Os autarcas não precisam de reclamar mais competências, e muitos deles não precisam de se refugiar nesses argumentos, como recentemente ouvi por parte de um Presidente de Câmara; basta vontade, engenho e dotar as suas equipas de meios e financiarem parceiros.

Sei que o problema é complexo, mas é preciso mudar muitas das políticas centrais e locais. É preciso coragem sem pôr em causa o princípio de equilíbrio de uma democracia, o respeito pelos direitos e o cumprimento dos deveres.

No meio de tudo isto, entre uma vida perdida e uma vida desfeita, que se retirem ilações e sobretudo que se concretizem ações para que possamos voltar às pessoas!


Professor, ex-vereador da Câmara de Sintra