
Para a maioria dos leitores, o dia 15 do quinto mês de 2017 não evocará nada de particular. Para mim, é a data em que iniciei este texto, há pouco mais de um mês. É bizarro, e mais bizarro foi quando me apercebi deste fenómeno, volvida uma semana de ter aterrado na Etiópia: este enorme país situado no Corno de África admite dois calendários – o Gregoriano e o Etíope.
Ao chegar à cidade de Jima, no sudoeste do país, o meu olhar posou sobre um pequeno ecrã no tablier do jipe onde seguíamos: indicava serem 8 da manhã. Estranhei – estava persuadido ser pelo menos uma da tarde – e brinquei com a minha colega que tínhamos chegado com tempo de sobra, mas o nosso motorista rapidamente me esclareceu: é comum na Etiópia repartir-se o dia em dois blocos de doze horas, em que as primeiras horas da manhã são, efetivamente, as primeiras horas. Assim, quando raia o sol, começa a primeira hora do dia; quando este se põe, a primeira da noite. Daqui, foram só uns minutos até me explicar o funcionamento do calendário: conta treze meses, sendo que o décimo-terceiro contém apenas cinco a seis dias, o Ano Novo começa no “nosso” mês de setembro, e, finalmente, está sete a oito anos “atrás” do Gregoriano, permitindo assim que este texto comece em 2025, mas também em 2017. Descobrir esta particularidade surge como uma cereja no topo do bolo: a minha deslocação física e geográfica à Etiópia ganhava um elemento inesperado – uma dimensão temporal. Passei parte das horas e dias seguintes a pensar nesta dualidade, neste quase singular contraste com o resto do mundo, e como esta espelha a realidade do país.
Encontra-se a Etiópia num momento de transição. Se a primeira vez que vejo Adis Abeba me choca, mais chocados andam os seus habitantes. Nos últimos anos, afiançam-me, a cidade tem experimentado um processo de transformação veloz, nada mais nada menos do que pela hábil mão do primeiro-ministro, o carinhosamente (?) apelidado Doctor Abiy. De facto, Abiy não se deixa deter pelas condições adversas enfrentadas pelo país, seja a galopante inflação, o brutal conflito na região do Tigray, ou a resultante catástrofe humanitária que, aliada a um pronunciado período de seca, deixou 20 milhões de pessoas (ou quase um sexto da população) em grave necessidade de ajuda humanitária. Resoluto, o líder do governo segue imparável na sua demanda de tornar o país num gigante africano, começando pela capital. Para o comprovar basta sair à rua em Adis e observar o chamado processo de beautification. Um pouco por todo o lado vemos os enormes prédios que brotam de fundos buracos no chão. Vemos também curiosos candeeiros dourados, ornados de espirais, que mais depressa remetem para os exuberantes aeroportos do Dubai. Saltam ainda à vista o notável grau de limpeza das grandes avenidas da urbe, os vários espaços verdes situados no centro, e ainda um comboio de superfície que corre a cidade de lés a lés. É desejo do executivo tornar Adis numa cidade modelo, encetando-se assim esforços no âmbito da modernização das infraestruturas, de fomentar uma maior salubridade dos espaços, facilitar as soluções sanitárias, e em geral promover o bem-estar.
Este texto não visa escarnecer das ambições de quem for, e muito menos as dum país em desenvolvimento. Porém, como saberá quem nos lê, apesar do descrito acima, Adis Abeba – a flor nova – é a capital dum país pobre, e portanto pobres tem. Por economia de espaço, e respeito ao leitor, poupar-me-ei a longas tiradas sobre a miséria africana, bastará saber que aquilo que imaginarem certamente se aproxima da realidade: se dum lado da cidade se veem os grandes carros estrangeiros a desbravar o asfalto, noutro crianças correm descalças pelo chão de terra batida, de vestes sujas e alparcatas rotas, para os que as têm; se em belas casas e bairros privados dormem os mais abastados, em casas devolutas e bairros de lata dormem os demais; e se nas avenidas o aroma é o dos jacarandás e da primavera, as ruelas longe do centro cheiram ao mesmo em qualquer lugar. Assim sendo, a empreitada do executivo é louvável, mas o reverso da medalha é igual em quase todas as cidades que do dia para a noite se lançam em odisseias megalómanas em busca dum lugar ao sol, e quem paga tendem a ser os mesmos: quem lá vive, ou melhor, quem lá vai vivendo. À semelhança do que se verifica em várias capitais europeias, sendo Lisboa proverbial exemplo, também os habitantes de Adis Abeba se veem obrigados a suportar os custos das decisões dos seus governantes, sendo que os despejos e demolições são da ordem do dia. A troco de algum dinheiro ou de atribuição de terras algures longe da capital, os residentes da cidade são forçados a sair, configurando-se assim uma espécie de êxodo urbano forçado. Com os lotes livres, o governo pode então avançar com a sua empreitada e consumar a beautification. Para quem, e com que dinheiro, ninguém me sabe muito bem dizer, mas será que interessa?
Por outro lado, se está viva a cidade, também vive o campo. Enquanto urbanitas, temos a desagradável tendência de nos pensar no meio do nada assim que pomos um pé fora da bolha, quando, na verdade, muitas são as vezes em que caminhamos para o meio de tudo. É essa, pelo menos, a sensação que me deu a minha viagem ao interior do país, que fiz no âmbito de visitar um projeto focado no papel das mulheres na produção de café, implementado pela Agência de Cooperação espanhola.
Na Etiópia, a produção de café é uma atividade milenar. A sua colheita faz-se desde a pré-história, e pela força do tempo sedimentou-se esta prática na identidade do país, que ocupa hoje o lugar, não menosprezável, de décimo exportador mundial. Por via desta consolidação, este setor representa hoje uma porção significativa da economia etíope, correspondendo a mais de 20% das suas exportações e do qual depende cerca de um quarto da população. Porém, mais do que a sua produção, salienta-se a importância do café nas diferentes esferas da vida dos etíopes. De acordo com o Departamento de Agricultura dos EUA, este surge como “a força motriz” do país, tanto a nível económico como social e cultural.
Assim o pude ver em visita à floresta de Yayu, zona de Illubabor, no sudoeste da Etiópia, onde fui à cidade de Jima, mas subi também a Bedele, passando por Chora e pelo kebele de Gechi, penetrando ao ritmo possível a massa castanha e verde que são a estrada acidentada e o arvoredo a perder de vista. Como dizia acima, não se trata de sítios desertos sem vivalma, mas sim de várias sucessões de kebeles onde as gentes se governam como podem, vivendo do que a terra dá. O café, dizem-me, é uma dura indústria, como quase todas são, em que as mais calejadas mãos raramente serão as mais bem compensadas, e em que as mulheres quase sempre saem a perder. Podia ser artifício retórico, um exagero para compor o texto, mas é a infeliz realidade que sustentam os números: de acordo com a Agência espanhola, 70% da produção de café é assegurada por esforços de mulheres.
Ao conversar com estas mulheres, entendemos a extensão do seu envolvimento neste ofício, e igualmente as dificuldades que enfrentam no seu quotidiano. Se o conhecimento milenar transmitido de mãe para filha nos soa, à partida, a uma insuperável enciclopédia de saberes que nos oferece o tempo, esse mesmo tempo ocupa-se, todavia, de fazer surgir novos desafios, e de fazer perdurar os velhos. Por um lado, os locais de trabalho permanecem longínquos, e as distâncias fazem-se a pé, à torreira do sol; os métodos contracetivos permanecem escassos, e os costumes e estruturas estáticos, continuam assim as mulheres a assegurar o papel de criadoras e cuidadoras, que se acrescenta ao trabalho no campo; permanece ainda a figura do pater familias, homens tomam as decisões e controlam as finanças da família, deixando as parceiras às escuras no que a estas funções diz respeito. Por outro lado, as temperaturas sobem, as chuvas escasseiam, e há quem faça por que a floresta se esvazie; em consequência, plantas adoecem, colheitas fraquejam, a fome desperta.
Simultaneamente, nestas conversas, entendemos também o contributo dos projetos de desenvolvimento para mitigar estas adversidades. A alguns quilómetros dos kebele, existem importantes estruturas como a Universidade de Jima, a Universidade de Metu, e um centro de investigação agrícola, que contribuem para melhorar as vidas dos agricultores do café. É por esta via que estas mulheres se capacitam, recebem equipamentos para tratar as plantações, sementes novas mais resistentes às intempéries, e também treinos para melhorar a sua condição. Juntas, aprendem de tudo: o correto espaçamento das plantas, melhores técnicas de colheita, armazenamento apropriado, e também como tratar e cuidar as plantas e os solos enfermos. Aprendem ainda sobre o negócio, como o valorizar, como vender, como poupar, e também como o fortalecer em comunidade. Ademais, plantam-se novas sementes no seu saber, que o seu lugar não se cinge a cuidar da casa, que os seus quereres poderão valer tanto quanto os dos homens, que a sua dignidade existe e deve ser observada.
Nos últimos dias de janeiro regresso a Adis, após a minha breve visita a Yayu. Penso que, apesar de tudo isto, permanece uma distância a suprir no caminho destas mulheres para a sua autodeterminação. É verdade que cada vez mais se organizam em prol de si mesmas e das suas companheiras, algumas transmitem as suas aprendizagens a outras, tornando-se mentoras na comunidade, organizam cooperativas, chegam mesmo a abrir contas bancárias e, em alguns casos, conseguem até pedir empréstimos em conjunto. Porém, as circunstâncias são incertas. Ainda que alguns homens aceitem estas mudanças, muitos se lhes opõem, proibindo mesmo as esposas de frequentar estes treinos. Além disso, como antes dizíamos, as prioridades do governo são outras, há ambições “icarescas” a que atender, grandes avenidas por limpar, candeeiros por erguer num país a duas velocidades, operando em dois tempos.
Sinto-me, porém, reconfortado. A comunidade internacional tem bem presente a importância da cooperação e desenvolvimento, entendem em pleno o seu papel fundamental na capacitação dos países do sul global, que simultaneamente aproveita aos interesses culturais, securitários (e financeiros) do Ocidente. Seria uma enorme infelicidade se nos estivesse fadada uma súbita e brutal inversão deste caminho, que os maiores doadores de ajuda humanitária e de desenvolvimento, com um golpe de esferográfica ou grosseiro marcador negro, suspendessem totalmente as suas atividades e apoio, que a União Europeia num piscar de olhos se lançasse numa empreitada belicista em detrimento de outras áreas com enormes carências, enfim, que o Ocidente se redobrasse sobre si mesmo, teimosamente só.
Que tempo o nosso. Que sorte a nossa.
Que sorte a deles?