
“A partir do momento em que me apercebi que era uma mulher transgénero, comecei logo a procurar um sítio onde me podia sentir incluída. Porque lá fora é muito, muito difícil”, frisa Powell Omond, beneficiária da instalação apoiada pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Mombaça. “Temos muitos desafios. Há imenso estigma e discriminação, pelo que precisamos de um sítio onde nos possamos sentir livres, confortáveis e seguros.”
Estes desafios podem trazer graves consequências para a saúde mental, tornando ainda mais crucial o acesso a apoio psicossocial e a cuidados médicos essenciais. Neste contexto, a abordagem da MSF não muda: fornece apoio consoante as necessidades, independentemente da identidade ou passado da pessoa.
Powell Omond visitou pela primeira vez a infraestrutura apoiada pela MSF em Mombaça há vários anos. Desde 2021, o centro tem prestado serviços de saúde especializados a jovens e adolescentes, incluindo a comunidades-chave.
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre VIH/SIDA (UNAIDS, na sigla em inglês) define estas comunidades como homens que fazem sexo com homens, pessoas trans e todos aqueles com identidades ou expressões de género diversas, bem como pessoas que usam drogas e trabalhadores do sexo.
A MSF trabalha também com outros grupos em vulnerabilidade, como pessoas sem-abrigo ou aqueles que vivem com deficiência. Estas identidades e vivências podem cruzar-se, o que agrava ainda mais os desafios.
"A minha vida era desafiante antes de encontrar este sítio"
Por causa do estigma que enfrentam, estas comunidades vêem-se dificultadas no acesso à saúde, emprego e estabilidade económica, o que afeta a sua saúde mental. “A minha vida era desafiante antes de encontrar este sítio. Quis suicidar-me quase todos os dias, porque achava que ninguém me compreendia. Era até difícil tentar obter ajuda em instalações públicas devido à discriminação”, conta Sally, também beneficiária da clínica da MSF e cujo nome foi alterado para mantê-la anónima.
Em 2021, as equipas da MSF aperceberam-se das dificuldades de acesso a cuidados médicos que alguns grupos enfrentavam em Mombaça. No ano seguinte, a organização lançou as primeiras ações na região. Hoje, a MSF recebe jovens e adolescentes em vários centros estabelecidos especificamente para eles, onde são providenciados cuidados primários, serviços de saúde sexual e reprodutiva e apoio à saúde mental.
“São um grupo negligenciado, que não é priorizado e uma organização como a MSF é crítica para esta população”, explica a coordenadora de assuntos humanitários da MSF no Quénia, Hakima Masud. Atualmente, a MSF apoia três clínicas no condado de Mombaça, localizadas nos sub-condados de Kisauni, Nyali e Mvita. Além de providenciar cuidados médicos, as equipas garantem que alguns serviços sociais são também fornecidos, ajudando todos aqueles que passam pelas portas das instalações a chegar aos recursos que necessitam – até mesmo além daquilo que a MSF consegue fornecer.
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“Em Mombaça, a nossa estratégia baseada na comunidade consiste numa abordagem de pares, onde indivíduos da mesma comunidade – pessoas que passaram pelas mesmas experiências – são capacitados para providenciar apoio, formação e serviços de saúde aos outros”, esclarece Masud.
“Este método é particularmente eficaz em chegar a comunidades marginalizadas e em alto-risco e desempenha um papel crucial em combater o preconceito, especialmente entre profissionais de saúde.”
“Acesso a cuidados deve ser um direito fundamental para todos, sem exceção”
O medo de ser categorizado ou julgado – por vezes, até mesmo por funcionários médicos – desencoraja as pessoas de procurar serviços de saúde e saúde mental. Os estigma internalizado pode levar a sentimentos de culpa, vergonha e diminuição da autoconfiança. Além das necessidades de saúde específicas, o estigma afeta também as comunidades-chave no dia a dia, limitando oportunidades de emprego e estabilidade económica, o que pode deteriorar ainda mais o seu bem-estar. Às vezes, o estigma leva à violência.
“Já fui agredida. Fiquei mentalmente destroçada por causa disso. Este é o único sítio onde consigo obter ajuda psicológica”, sublinha Powell Omond.
Implementar programas anti estigma e uma abordagem interseccional dentro e fora dos serviços de saúde é vital para melhorar o acesso das comunidades-chave a serviços essenciais. Neste ambiente, o trabalho da MSF é crucial.
“As nossas equipas estão aqui, primeiro que tudo, para prestar um acesso direto a cuidados de saúde, mas também para amplificar as vozes de comunidades negligenciadas. Diariamente, isto significa estar ao lado delas e oferecer um espaço para liberdade de expressão, para que possam reclamar os seus direitos, denunciar a discriminação que enfrentam e exigir a dignidade que merecem. Porque o acesso a cuidados deve ser um direito fundamental para todos, sem exceção”, conclui Masud.
“Eu quero dizer a todas as pessoas transgénero lá fora: vocês são amadas, são maravilhosas e lindíssimas – e são quem são. Ninguém vos deve dizer nada sobre quem são. Vocês são importantes”, expressa Sally, beneficiária da clínica.