A luz do sol entra pela pequena janela do quarto estéril do hospital e ilumina, com linhas quentes e alaranjadas, o lado esquerdo da cara de Karam, destacando as marcas de cicatrizes brancas que tem na bochecha esquerda. O jovem, de 17 anos, ergue-se lentamente, senta-se na cama do hospital, que é gerido pela Médicos Sem Fronteiras em Amã, na Jordânia, e ata com a mão direita uma longa faixa plástica da cor da pele à volta do braço esquerdo.
“Ouvi dizer que quando morremos ainda conseguimos ouvir as vozes das pessoas que nos estão a enterrar, que conseguimos ouvir as orações e os passos delas enquanto se afastam do local do nosso descanso final”, conta. “Na ambulância, eu conseguia sentir as lombas na estrada, mas não conseguia abrir os olhos. Ainda ouvia vozes, por isso tive medo, medo de que eu talvez já estivesse morto.”
A casa de Karam, em Gaza, foi atingida por um ataque aéreo israelita a 14 de fevereiro de 2024. Toda a família foi morta com exceção da irmã mais nova, Ghina, de 7 anos, e o pai, Ziad. Karam ficou gravemente ferido, com queimaduras por toda a cara e corpo.
Naquele dia, o Hospital de Al-Aqsa encheu-se de vítimas depois de o campo de Nuseirat, na zona central de Gaza, ter sido bombardeado pelas forças de Israel. Quando Karam lá chegou, a equipa do serviço de urgências tentou ressuscitá-lo, mas nada parecia resultar, pensaram não o ter conseguido. Uma hora mais tarde, o tio do jovem, que era enfermeiro no hospital, entrou nas urgências e deu-se conta de que o sobrinho ainda respirava. Apressou-se a levar Karam para a sala cirúrgica, onde a equipa da Médicos Sem Fronteiras (MSF) lhe fez manobras de ressuscitação cardiopulmonar e cirurgia de emergência – salvaram-lhe a vida.
O pai de Karam, que é psicólogo na agência das Nações Unidas de apoio aos refugiados palestinianos (UNRWA, na sigla em inglês), estava a trabalhar num centro para refugiados quando a casa da família em Nuseirat foi bombardeada.
“Assim que soube do ataque, fui logo para Al-Aqsa, porque o meu vizinho disse-me que a Ghina e o Karam tinham sido levados para lá”, recorda Ziad. “O serviço de urgências estava cheio de corpos por todo o lado, espalhados pelo chão. Encontrei a minha filha. Ela tinha queimaduras de primeiro grau na cara, nos ombros e nas costas.”
O impacto da bomba lançada sobre a casa de Ziad foi tão forte que o solo engoliu os destroços do edifício. Aquela bomba matou 13 pessoas da família, incluindo a mulher de Ziad, o filho mais novo do casal, Mohammed, e o mais velho, Tareq, que tinha ficado sem poder sair de Gaza devido à guerra durante uma visita nas férias da faculdade, na Rússia, onde estava a estudar odontologia.
“Não percebi que era o meu filho”
“Quando o Karam foi levado para o serviço de urgências, não percebi que era o meu filho. Ele não tinha traços humanos. Não tinha roupa. O corpo dele estava completamente preto. Os olhos fechados”, descreve o pai do jovem.
Após estabilizar Karam, as equipas da MSF e do Ministério da Saúde no Hospital de Al-Aqsa fizeram seis cirurgias plásticas no corpo gravemente queimado do jovem. Ele esteve em coma durante sete dias.
Passadas algumas semanas, Karam foi encaminhado para o Hospital emiradense em Al-Arish, no Egito, e depois levado de avião para o Hospital de Cirurgia Reconstrutiva que a MSF gere em Amã, na Jordânia. É aí que permanece a fazer reabilitação integral, tal como a irmã, Ghina, e outros pacientes aos quais foram feitas transferências médicas desde Gaza.
Agora, vários meses depois do terrível ataque que atingiu a casa da família, Karam volta a caminhar, consegue mover o braço, e o olho esquerdo começa a reabrir devagarinho – é uma recuperação extraordinária, tendo em conta que a certa altura o pessoal médico que inicialmente o assistiu no Hospital de Al-Aqsa o dera como morto.
Milhares de pessoas encurraladas em Gaza precisam de cuidados especializados
O pequeno número de pacientes vindos de Gaza que estão a receber cuidados de reabilitação vitais no hospital da MSF em Amã é uma gota no vasto oceano de necessidades existentes em toda a Faixa de Gaza.
“Sabemos pela nossa experiência no hospital de cirurgia reconstrutiva em Amã que, habitualmente, até quatro por cento das pessoas que sofrem ferimentos de guerra necessitam de cirurgia reconstrutiva. Tratamos pessoas com ferimentos de guerra oriundas da região há quase 20 anos”, explica o coordenador-geral da MSF na Jordânia, Moeen Mahmood Shaief. “E, no caso de Gaza, estamos a falar de quase cem mil pessoas que foram feridas desde 7 de outubro – ou seja, são até 4 000 pessoas em Gaza que precisam de cirurgia reconstrutiva e de reabilitação integral”, prossegue.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), foram mortas 41.000 pessoas em Gaza em quase 12 meses desde que a guerra eclodiu a 7 de outubro de 2023, e 95 000 ficaram feridas. À data de 12 de agosto de 2024, pelo menos 12.000 pessoas continuavam a necessitar de transferências médicas em Gaza.
Porém, o processo que permite que um paciente ferido seja encaminhado para receber cuidados fora do território é longo e complicado. Os critérios definidos pelas autoridades de Israel para aprovar pedidos nesse sentido não são claros, e os pacientes têm frequentemente de esperar meses por uma resposta.
Quase 60 por cento dos pedidos de transferências médicas desde Gaza são recusados, segundo informação da OMS. Aqui incluem-se pedidos para transferir crianças feridas e os cuidadores delas, é especificado pela MSF.
“Dos oito casos em que solicitámos transferências médicas em agosto, apenas três foram aprovados pelas autoridades israelitas contemplando os respetivos cuidadores”, avança o coordenador da MSF para transferências médicas, Hani Isleem. “Vamos voltar a fazer pedidos na próxima ronda, mas é já cem por cento claro que não nos aprovarão todos os pacientes. Talvez desconfiem de permitir que adultos saiam da Faixa de Gaza, mas mesmo essas suspeitas não explicam a recusa em encaminhar crianças.”
A MSF insta as autoridades de Israel a garantirem as transferências médicas de palestinianos que precisam de cuidados médicos especializados, incluindo os cuidadores dos pacientes. E urge outros Estados a receberem e a facilitarem a prestação de tratamento fora de Gaza, e, ao mesmo tempo, a asseverarem que todos os pacientes e cuidadores terão um regresso seguro, voluntário e digno a Gaza.
A história de Deema e de Hazem
Deema tem 11 anos e estava com a família, abrigada em casa, na Cidade de Gaza, quando a habitação vizinha foi atingida num raide aéreo a 10 de outubro de 2023. Na altura, encontrava-se no quarto andar, com o sobrinho bebé ao colo, quando o edifício ruiu. Deema caiu daquela altura de quatro andares até ao rés-do-chão.
“Estava escuro como breu sob os escombros”, recorda. “Eu não conseguia abrir os olhos e mal conseguia respirar. Não ouvia ninguém e não conseguia falar, a minha cara estava coberta de pó e de pedras. Pensei que ia morrer de certeza. Acabei por conseguir mexer uma mão sob os escombros e achei um cabo que agitei para sinalizar às pessoas que eu estava ali. Lembro-me de ouvir vozes e senti ar na minha perna. Pouco depois, as pessoas estavam a puxar-me para fora e a levar-me apressadamente para a ambulância. Até hoje não encontraram o meu sobrinho bebé.”
Aquele raide matou 75 pessoas, incluindo o irmão mais velho de Deema, Hamza, de 14 anos. E o irmão mais novo, Hazem, que estava a jogar futebol na rua, ficou também gravemente ferido no colapso do edifício. Depois de a poeira assentar e as equipas de resgate chegarem ao local, Deema e Hazem foram levados de urgência para o Hospital Al-Shifa, onde receberam assistência médica de emergência.
Devido aos incessantes bombardeamentos da Cidade de Gaza, Deema, Hazem e a mãe de ambos, Eman, permaneceram seis meses em Al-Shifa, a comer, dormir e a receber cuidados médicos, assim como milhares de outros palestinianos que procuraram refúgio dentro daquele hospital.
As forças israelitas cercaram Al-Shifa a 18 de março de 2024, forçando a fuga de milhares de pessoas que ali se abrigavam. No caos da evacuação do hospital, Deema separou-se da mãe e de Hazem, os quais se viram obrigados a deslocarem-se para Sul. Deema conseguiu reencontrar o pai e abrigou-se com ele na Escola Asma’a, na Cidade de Gaza, onde ficaram 45 dias.
“Instalámo-nos numa sala de aula com outras cerca de 50 famílias. Não tínhamos quase comida nenhuma, nem água, e não havia eletricidade nem gás, por isso tínhamos de fazer fogueiras. O meu ombro estava partido e não o conseguia mover, mal conseguia sequer andar naquela altura”, conta Deema.
Pelo início de maio passado, Deema pôde finalmente deslocar-se para o Sul de Gaza, onde se reencontrou com a mãe e Hazem, em Rafah. Uma semana após estarem reunidos, foram medicamente transferidos, primeiro para o Egito, e de seguida para o hospital da MSF em Amã – é ali que Deema e Hazem continuam atualmente, a receberem cirurgias reconstrutivas, fisioterapia e apoio em saúde mental.
Deema sofreu fraturas no fémur e no ombro direitos e tinha um ferimento aberto na testa, causados pelo ataque à casa onde vivia na Cidade de Gaza. Agora, em Amã, ela trabalha todos os dias com a equipa de fisioterapia da MSF para estimular a recuperação dos ossos fraturados antes que o fixador externo que tem na perna possa ser removido. Com o passar do tempo, espera conseguir recuperar todas as funções dos membros feridos.
“Quando cheguei à Jordânia, não conseguia mexer o tornozelo nem o braço, mas com a ajuda da cirurgia e da fisioterapia agora movo ambos de novo. Mas é muito duro para mim pensar no futuro enquanto houver guerra em Gaza”, explica Deema.
Impactos de saúde mental nos feridos da guerra em Gaza
As equipas da MSF de saúde mental que tratam pacientes no hospital de Amã observaram que, mesmo antes do início da guerra, palestinianos oriundos de Gaza sofriam de depressão e de frustrações, frequentemente relacionadas com o desemprego, a pobreza e elevadas taxas de dependências, assim como com deficiências e amputações causadas por guerras anteriores. No entanto, desde 7 de outubro, a saúde mental das pessoas de Gaza deteriorou-se drasticamente.
“Muitos pacientes vindos de Gaza para o hospital de Amã apresentam não só perturbação de stress pós-traumático mas também síndrome de stress agudo”, sublinha o médico Ahmad Mahmoud al-Salem, que é psiquiatra da MSF no hospital de Amã. “Isto significa que os pacientes têm normalmente muitos pesadelos e muitos flashbacks, e também mau humor, insónias e tentam evitar todas as memórias”, especifica.
Muitos palestinianos em Gaza testemunharam a destruição das suas casas e os familiares a serem mortos, e são muitas as pessoas que sofreram ferimentos que lhes mudaram a vida. E, além de tudo isso, estão constantemente a receber informação de que mais familiares e amigos foram mortos.
“Isto não são traumas normais. É uma catástrofe enorme e atormentadora. Psicologicamente, as mentes destas pessoas não são são capazes de suportar todo este stress”, avalia o psiquiatra da MSF.
A equipa de saúde mental no hospital da MSF em Amã providencia terapia integral a pacientes que sofreram traumas agudos. As crianças, em particular, recebem apoio psicológico em sessões individuais e têm ao seu dispor atividades educativas e terapia ocupacional, para as ajudar a sentirem-se mais fortalecidas e capacitadas. Os casos mais graves são encaminhados para Ahmad Mahmoud al-Salem, que providencia apoio psiquiátrico e medicação.
Os adolescentes são especialmente vulneráveis ao stress agudo e ao sofrimento com os graves ferimentos que lhes mudaram a vida, é explicado pelo psiquiatra da MSF. “Podem sentir-se verdadeiramente miseráveis, uma vez que estão a começar a formar a sua personalidade e identidade. Estão a começar a entender qual é o lugar deles no mundo e questionam-se: ‘Será que algum dia virei a ser produtivo, serei atraente, serei capaz de ganhar dinheiro?’”
De acordo com Ahmad Mahmoud al-Salem, pacientes adolescentes que sofreram ferimentos horríveis, que lhes mudaram a vida, precisam de psicoterapia a longo prazo – necessitam não apenas de apoio para lidarem com memórias dolorosas e traumas mentais, mas também de ajuda para reconstruírem o sentido de autoestima e aprenderem a viver com uma deficiência.
“Estes miúdos precisam de apoio para reconstruírem a autoestima e o valor próprio. Tentamos trabalhar com eles para os capacitar, através de terapia ocupacional e mostrando-lhes que podem crescer e recuperar. Mas isso leva tempo”, nota o psiquiatra da MSF.
Um segundo de cada vez
Para os jovens pacientes palestinianos no hospital da MSF em Amã, o futuro permanece obscuro e incerto. Continua a não haver nenhum lugar seguro em Gaza, e apesar de talvez poderem regressar a casa um dia, as perspetivas são sombrias. Todos perderam familiares, assim como as casas e as escolas.
Deema quer voltar à escola e ver a família, mas não antes de a guerra acabar e Gaza ser reconstruída.
“Só desejo voltar a ter aulas e terminar os meus estudos, e então gostava de vir a ser engenheira. Desejo que Gaza possa voltar a ser como era antes. Não queremos ser deslocados ou empurrados para fora. Só queremos voltar às nossas vidas de antes da guerra.”
Karam está também no longo caminho de recuperação, depois de meses desde o catastrófico ataque aéreo à casa onde morava, em Nuseirat, na zona central de Gaza, e devido ao qual chegou mesmo a ser dado como morto.
Hoje em dia sorri ao largar as muletas na sala de fisioterapia, e agarra as barras estabilizadoras paralelas para dar uns passos em frente. Antes da guerra, este jovem de 17 anos queria ser dentista como o irmão mais velho, Tareq, que morreu no ataque, mas desde que ficou ferido não tem a certeza se tal será possível.
“Estou a dar um passo de cada vez”, assegura. “Se a guerra acabar, assim queira Deus, vamos voltar para Gaza. É o meu país, é onde vivi toda a minha vida. É lá que estão os meus amigos. Mas por agora estou aqui e quero ficar melhor, um segundo de cada vez.”