A Unicef alerta para uma degradação "muito rápida" da situação no Líbano, onde se estima que 400 mil deslocados sejam crianças a precisar de auxílio urgente, num ambiente que começa a ter semelhanças com a Faixa de Gaza.
Em entrevista à Lusa a partir de Beirute, a porta-voz para o Médio Oriente do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) descreve uma "situação muito difícil" para cerca de 1,2 milhões de pessoas, grande parte crianças, que o Governo libanês afirma estarem deslocadas devido aos confrontos entre Israel e o grupo xiita Hezbollah.
"São vários estádios de futebol cheios de crianças que estão agora deslocadas e a viver com as comunidades de acolhimento, em abrigos ou, em alguns casos, nas ruas", relata Tess Ingram, referindo-se a "necessidades reais" de muitas delas, que abandonaram as suas casas apenas com as roupas que traziam vestidas.
Além disso, "sofreram traumas e estão a lidar com o medo e a ansiedade", após terem testemunhado as hostilidades entre Israel e Hezbollah, que se arrastam há mais de um ano, através de trocas de tiros nas regiões próximas da fronteira israelo-libanesa, que já tinham levado à deslocação de dezenas de milhares de pessoas em ambos os países, mas que se agravaram substancialmente nas últimas três semanas.
Em 23 de setembro, Israel anunciou a transferência do foco das suas operações militares na Faixa de Gaza, contra o grupo islamita palestiniano Hamas, para o Líbano, que tem sido fustigado desde então por intensos bombardeamentos, além de uma invasão terrestre iniciada no começo deste mês no sul do seu território, onde se verificou uma debandada da população, tal como no leste do país e no grande subúrbio de Beirute de Dahieh, principal bastião do Hezbollah.
"Passámos de 200 mil pessoas necessitadas para 1,2 milhões de pessoas em oito dias. Foi o que aconteceu aqui e constitui um desafio até para a resposta humanitária mais sólida e preparada", comenta Tess Ingram, recordando que o Líbano já tinha experimentado várias crises nos últimos cinco anos, incluindo um colapso financeiro, as explosões no Porto de Beirute, a pandemia de covid-19 e aumento das taxas de pobreza, antes da escalada do conflito entre Israel e o Hezbollah.
Apesar da situação de segurança crítica no sul do país, onde até as posições dos capacetes azuis da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (FINUL) são visadas por ataques israelitas, a Unicef e outras organizações têm continuado a encaminhar caravanas humanitárias para as pessoas que ainda permanecem na região e também no Vale de Bekaa, no leste, e cujo acesso é cada vez mais difícil.
"Sabemos que milhares de crianças ainda estão no sul e precisam de apoio porque as suas necessidades aumentaram à medida que os serviços à sua volta foram encerrados, como centros de saúde e sistemas de água", conta a porta-voz da Unicef, que acompanhou estas operações conjuntas com outras agências da ONU.
A organização está igualmente preocupada com "o risco real de a situação continuar a agravar-se", à medida que as forças israelitas prosseguem as suas operações, deixando as pessoas necessitadas ainda mais privadas de bens essenciais e colocando em perigo a continuação da atual assistência humanitária no terreno.
Outra prioridade é retirar as pessoas deslocadas das ruas, sobretudo na aproximação do inverno e quando o próprio Governo libanês reconhece que apenas cerca de 200 mil dos 1,2 milhões de deslocados estão registados nos mais de mil abrigos criados em todo o país para os receber, dos quais 75% se encontram cheios.
"A situação é muito má para as pessoas que vivem na rua. Conheci uma mãe com sete filhos e todos partilhavam um colchão e não tinham dinheiro para comprar comida ou água. Também conheci uma mulher com o seu bebé de cinco dias, e que deu à luz nas ruas de Beirute", conta a porta-voz como exemplos de "níveis de vulnerabilidade e de risco elevados" a que as crianças ficam particularmente expostas, sobretudo com a chegada do tempo frio.
A Unicef contribui com o encaminhamento destas pessoas para abrigos e também para a criação de condições nestas instalações, além de ajuda rápida para aquelas que permanecem nas ruas, como água, colchões, cobertores e roupas quentes, numa fase em que o conflito não dá qualquer sinal de abrandamento, somando-se a outras crises já existentes na Faixa de Gaza, na Ucrânia, no Sudão ou no Haiti.
"Precisamos definitivamente de mais apoio humanitário rapidamente. A comunidade internacional está a lidar com uma série de conflitos a nível global, mas a situação no Líbano está a agravar-se muito rapidamente e é importante que as pessoas compreendam isso", alerta Tess Ingram, referindo-se ao alastramento da guerra a outros territórios do país, à ameaça que pende sobre os corredores humanitários e às necessidades cada vez maiores, em oposição aos recursos cada vez mais diminutos.
Ao mesmo tempo que faz eco das palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres, apelando para que as partes respeitem e protejam os trabalhadores humanitários, a porta-voz começa a verificar padrões neste conflito semelhantes ao que sucedeu na ofensiva israelita na Faixa de Gaza.
"Se considerarmos que na Faixa de Gaza assistimos a ataques a deslocados em massa, a hospitais, abrigos e locais de acolhimento improvisados, que civis foram mortos em números chocantes e que os serviços essenciais de que as pessoas dependem foram afetados, algumas destas realidades começam a existir no Líbano", testemunha.
Nesse sentido, assinala que urge proteger as infraestruturas civis, recorrendo a dados do Governo libanês que indicam 28 pontos de água danificados, o que afeta o abastecimento a 360 mil pessoas, tal como 12 hospitais e cerca de 70 centros de cuidados de saúde primários.
"É inaceitável. O direito humanitário internacional é claro ao afirmar que as infraestruturas civis devem ser protegidas", frisa Tess Ingram, apontando ainda o número de vítimas, que, de acordo o Ministério da Saúde Pública do Líbano, ascende a mais de 2.300 mortos desde 08 de outubro do ano passado, dos quais cerca de 1.500 só nas últimas três semanas, e acima de dez mil feridos.
A porta-voz da Unicef aponta um cessar-fogo como o caminho mais curto para auxiliar o Líbano, embora este cenário pareça de momento bastante improvável, à semelhança do impasse negocial na Faixa de Gaza há mais de um ano e que corre o risco de ficar em segundo plano.
A propósito, Tess Ingram comenta que "a atenção do mundo, dos líderes mundiais, dos meios de comunicação social, oscila entre diferentes conflitos" e, quando se foca num em concreto, como sucede agora no Líbano, "isso não significa que outro conflito tenha melhorado, talvez tenha até piorado", tal como "as crianças no local para onde as pessoas estavam a olhar anteriormente continuam a sofrer".
No Líbano, o respeito pelo direito humanitário e um cessar-fogo são as melhores vias para garantir a continuação da proteção das crianças e "evitar uma catástrofe ainda maior", insiste a porta-voz da Unicef: "É terrível pensar que a situação pode continuar a piorar e não podemos permitir que isso aconteça".