O momento em que mais evidente ficou a coligação que levou à vitória do Benfica no clássico ter-se-dá dado aos 70'. Tomás Araújo, após novo roubo de bola com classe, meteu um dos seus passes longos, preciso e tenso, para Di María. A bola, alegre, viajou pelo céu de Luz, aterrando junto da linha lateral. No instante em que o o objeto estava quase a beijar o relvado, deu-se o milagre.
Di María recebeu a bola com um subtil toque de pé esquerdo, em rotação, fazendo tudo ao mesmo tempo: controlando a bola, acariciando-a, domando-a, virando-se para a baliza adversária, arrancando para o ataque, deixando um momento estético. Tudo junto, em união, como da coligação que forjou a vitória do Benfica.
Naquele instante de arte, os 36 anos de Di María ligaram-se com os 22 de Tomás Araújo, fundindo-se no idioma universal da técnica. Estava 3-1 no marcador, ainda faltava um golo para o resultado final, mas o essencial da mensagem estava dado.
Na mais gorda vitória do Benfica sobre o FC Porto no novo Estádio da Luz, o triunfo por 4-1 reflete a diferença que se viu em campo. Perigo e intenção de um lado, erros e falta de inspiração do outro.
As águias não marcavam quatro golos aos dragões num encontro desde 1972, quando venceram por 6-0 para a Taça de Portugal. Para o campeonato, o Benfica não marcava quatro golos ao FC Porto desde 1964.
No histórico serão de Lisboa, na primeira vez que os azuis e brancos foram à Luz no pós-Pinto da Costa, as promessas de Vítor Bruno, que passou a antevisão do encontro a garantir uma equipa “à Porto”, não foram cumpridas. Após cair em Roma contra a Lazio, esta derrota deixa o técnico, que nos últimos minutos era um homem resignado, de mão na barba e olhar para o céu, muito pressionado.
O jogo só não foi totalmente honesto porque foi para o intervalo em igualdade, mascarando o que já era uma clara tendência de ascendente para os da casa. Sem a postura defensiva de Munique, o Benfica foi mais a versão do embate contra o Atlético de Madrid, muito forte na recuperação e no ataque rápido.
As primeiras chances foram todas das águias. Di María, isolado, atirou ao lado, e Kökçü disparou para defesa de Diogo Costa.
Na Luz mora Tomás Araújoenbauer, um central requintado, de vocação ofensiva, pleno de requinte técnico. Esteve em dois golos e ainda somou uma finta que somará milhares de visualizações num reel do Instagram.
Aos 30', uma assistência de trivela de Araújoenbauer isolou Álvaro Carreras, o lateral canhoto que é menos canhoto do que a maioria dos canhotos. O espanhol puxou para o pé direito que domina com precisão e marcou.
Di María estava numa daquelas noites em que domina o cenário, sem limites para espalhar a sua técnica. O 2-0 ficou perto quando o argentino lançou Pavilidis, que atirou ao poste.
O FC Porto foi, quase sempre, uma caricatura de si próprio. Não pressionou com eficácia, não foi compacto em bloco baixo. Com Fábio Vieira exilado na direita, não teve perfume pelo centro, não explorou a velocidade de Galeno ou Samu. Ainda assim, o empate chegou em cima do intervalo, quando o atacante espanhol aproveitou um erro de Otamendi, mais um numa temporada cheia de equívocos para o argentino.
Se o resultado ao intervalo poderia levar a acreditar numa paridade que nunca se viu em campo, o segundo tempo demorou 15 minutos a desmontar essa ideia por via de golos.
O 2-1 foi o melhor exemplo do plano de Lage. Kerem intercetou um passe de Eustáquio para Martim Fernandes, dando para Aursnes, que assistiu Di María. O argentino, em pleno controlo do tempo e do espaço, da bola e da baliza, bateu Diogo Costa.
Cinco minutos depois, voltou a ser momento de Tomás Araújoenbauer. De cabeça levantada, o central rasgou a defesa do FC Porto com um passe. Não que a defesa do FC Porto fosse, ali, muralha difícil de rasgar, tal era a descoordenação do bloco, as brechas que se apresentavam, mas lá estava o central com alma de criativo para as explorar. Bah cruzou para Pavilidis, acabando por ser Nehuén Pérez a fazer um auto-golo.
Vítor Bruno, que até à resignação final parecia um professor a quem ninguém dava ouvidos, lançou João Mário, Pepê ou Namaso, mas não havia meio de mudar a tendência da noite. Um FC Porto tão frágil tinha de sair da Luz com um resultado que, em democracia, jamais sucedera. 60 anos sem levar quatro golos do rival foram quebrados.
Aos 82', um penálti de Di María selou o 4-1 final. O argentino, campeão do mundo, campeão da Copa América, campeão olímpico, campeão da Liga dos Campeões, campeão de tudo o que existe, deixou uma exibição para a memória, ao nível da história que este resultado representa.
Tomás a criar, Álvaro Carreras — de 21 anos — a marcar, Di María a encantar. Miúdos e graúdos construindo um triunfo como não se recordava. A outra face da noite ficou manifesta na cara de André Villas-Boas, um presidente derrotado que saiu dos camarotes da Luz instantes antes do apito final.