O vídeo utilizado por Faith Kipyegon para anunciar ao mundo o seu mais recente projeto tem toques de contraste com o projeto em si. Numa sequência de planos que apelam à emoção, com pouca iluminação e música épica, a queniana recorda os tempos de infância, quando corria "descalça até à escola". Vê-se a campeã desbravando caminhos de terra no Vale do Rift, notam-se os pés em contacto com a areia, constata-se o ambiente simples. Só ela, a terra, a corrida.

Não obstante, nada no projeto em si é inocente ou desprovido de intenção. Faith Kipyegon quer tornar-se a primeira mulher a correr a milha (1.609,34 metro) em menos de quatro minutos e, para isso, embarca numa viagem desportiva-comercial em que cada variável é medida, pensada, calculada. O corpo que o executa é o mesmo da menina que ia, de pés nus, até à escola, mas a envolvência não podia ser mais distinta.

Tricampeã olímpica dos 1.500 metros, a "destruidora sorridente", como lhe costumam chamar, pensou sobre que novo objetivo poderia perseguir. Ouro no Rio, em Tóquio e em Paris, também tricampeã mundial, a queniana questionou-se.

"Que mais há a fazer? E se pensasse fora da caixa?", lê-se numa das diversas mensagens promocionais sobre a tentativa de fazer a milha abaixo dos 240 segundos.

A intenção tem todas as características de uma experiência de laboratório. Kipyegon fá-la em parceria com a Nike, que vai buscar muito dos métodos utilizados quando, em 2019, Eliud Kipchoge tornou-se o primeiro homem a correr a maratona em menos de duas horas, então num acontecimento financiado pela INEOS.

Para baixar dos quatro minutos, a atleta de 31 anos utilizará um inovador modelo de calçado da gigante marca norte-americana. Uma vez mais, os sapatos de corrida voltam ao centro da luta por fazer descer os principais registos no atletismo.

A Nike guarda segredo sobre as características do modelo que a queniana utilizará, mas tudo é possível. Tal como com Kipchoge em Viena, em 2019, esta tentativa será feita fora da alçada da World Athletics, pelo que os ténis de Kipyegon não têm de seguir as regras da entidade máxima do atletismo mundial.

Faith Kipyegon com o ouro de Paris nos 1.500 metros
Faith Kipyegon com o ouro de Paris nos 1.500 metros picture alliance

Além do calçado voador, que será "de última geração", diz a Nike, os restantes ingredientes da experiência também imitam a fórmula do "rei-filósofo". Kipchoge, em 2019, utilizou 41 lebres, homens que diminuíam o atrito do vento e ditavam o ritmo. Agora, Kipyegon também terá um número ainda não determinado de atletas masculinos a trabalharem para si, mais uma razão para que a marca não seja oficialmente reconhecida pela World Athletics.

O melhor tempo da tricampeã olímpica na milha são 4,07.64 minutos. Baixar mais de sete segundos num esforço de quatro minutos é bastante, mas a Nike apoia-se num estudo científico para acreditar que é possível. Segundo esse trabalho, Kipyegon, ajudada por corredores à frente e atrás de si e com sapatos que lhe facilitem a corrida, pode chegar aos 3,59.37 minutos.

Uma das muitas filhas atletas do Vale do Rift, região que cria campeões e campeãs a um ritmo estratosférico, é lá, em altitude, que Kipyegon tem preparado a corrida. Até a data do acontecimento entra nas contas do laboratório, podendo ser a 26, 27 ou 28 de junho, segundo o dia em que as condições climatéricas, particularmente o vento, forem mais favoráveis. Será em Paris, no Stade Charléty da cidade onde, em 2024, a queniana juntou o bronze nos 5.000 metros ao ouro nos 1.500.

Mãe de uma filha que nasceu em 2018, Faith quer que esta ocasião sirva para "dizer às mulheres que podem sonhar e concretizar esses sonhos". "Faith Kipyegon vs the 4-minute mile" é o nome do projeto desportivo-comercial.