As palavras não andam aos chutos à bola, jogos de futebol não se ganham ou perdem por elas, mas o que é dito, quando é dito e de que forma é dito pode dar uns valentes pontapés nas perceções que moram na cabeça das pessoas. A 11 de novembro, quando Frederico Varandas ia falar em público na apresentação do treinador que escolheu, o presidente do Sporting tinha um arraial de hipóteses e escolheu, pelo que disse, a menos simpática para o homem prestes a ficar encarregado de arcar com uma herança tectónica.
Ainda com o Sporting inebriado com o frenesim de êxitos recentes, já a ressacar da ida do seu mais que tudo para Manchester sem ainda ter noção do que o esperava, o presidente dos leões optou, mal tomou o microfone para falar, por declarar o seu otimismo sem cautelas: “Quase cinco anos depois, posso dizer que temos o mesmo sentimento que tinha exatamente nesta sala. Disse-o na altura, hoje sinto o mesmo: tenho muito poucas dúvidas que João Pereira, daqui a quatro, cinco anos, estará num dos clubes mais poderosos da Europa. Vai encontrar um grupo de jogadores fabuloso, com um capitão fabuloso, um staff fabuloso e, sobretudo, vai encontrar um Sporting, um clube, que o vai proteger e permitir crescer enquanto treinador.”
A transbordar de confiança, despido de hesitações na sua profecia, Frederico Varandas aproveitou para erguer um mamarracho de expetativa em redor de um treinador que jamais trabalhara na I Liga e tinha somente 11 jogos feitos no futebol sénior com a equipa B do Sporting, na terceira divisão - e sem direito a uma pré-época para impregnar as suas ideias nos jogadores. Mais do que arriscado, foi imprudente vaticinar em tons cheios de certeza que João Pereira estaria no cume do futebol europeu onde nem Ruben Amorim está, mesmo no Manchester United, porque o que representa um clube não é imune ao que a equipa rende presentemente no campo.
Quem viesse depois de Ruben, fosse João Pereira ou outro, teria de calçar uns sapatos tramados de encher devido ao legado deixado pelo anterior treinador. Dizendo o que disse, o presidente do Sporting acrescentou a sua generosa ajuda à farra das expetativas.
O Sporting, disseram as certezas do presidente, encontrava “um treinador que [iria] continuar a fazer o clube crescer” apesar de aparecer “sete meses antes do planeado”. A escolha fora “simples, natural”, feita “há cerca de quatro anos” com uma piscadela de olho ao futuro, quando convidara João Pereira a deixar as chuteiras em paz e a experimentar ser treinador dos sub-23. Com ele apressado para a equipa principal, claro que com a anuência do próprio técnico, os leões murcharam com a água regada pela mudança.
As três vitórias em oito partidas, com 14 golos marcados e 13 sofridos, carimbaram a agruras nos resultados, presos a um fio de jogo encravado, longe do que fluía sem solavancos com Ruben Amorim. O desalento nas reações de alguns dos seus futebolistas evidenciaram que os novos métodos não pegavam.
A confiança emanada por Varandas há 45 dias contrasta com o que a realidade mostrou. Não só o trabalho feito por João Pereira teve pouco de ilustrativo, para já e neste período, de que irá voar às altitudes profetizadas pelo presidente do Sporting, como o clube pouco fez para o proteger - a começar na exacerbada fasquia que o presidente colocou em elevadas altitudes.
Já a equipa, em campo, sofria com o baixio de forma dos jogadores que antes a carregavam (Viktor Gyökeres ou Francisco Trincão) ou era descascada de várias fortalezas pelas mazelas que afetaram unidades fulcrais (Pedro Gonçalves já se sabia, a ele juntaram-se Gonçalo Inácio, Hidemasa Morita e Daniel Bragança) e Frederico Varandas, no aeroporto antes da partida para a Bélgica, rumo à derrota com o Club Brugge, voltou a falar para exprimir que só falava quando quer, não quando pretendem ouvi-lo - “O presidente do Sporting não fala quando este ou aquele acha, mas sim quando entendemos que é o momento certo para falar.”
E falaria, na quinta-feira passada, noutro momento, tal qual a apresentação de João Pereira, em que é protocolarmente expectável que o presidente do Sporting tome o palco.
A discursar na gala anual dos Prémios Stromp e já com os leões a moribundearem no futebol exibido, explicou que o convite dirigido a João Pereira foi “o presente mais envenenado para um treinador” porque “não [tinha] tempo”. Bateu certo com as evidências: o antigo internacional português assumiu o cargo na paragem das seleções, no período em que mais era possível fintar ao de leve essa carência de tempo. O que o novo treinador herdava, elaborou Varandas, era “uma máquina afinada à qual tem de se adaptar”. A 26 de dezembro, contrato rescindido com João Pereira, o presidente retornou à ideia, embora sem sugerir o mesmo: “Inconscientemente, tinha exatamente que se adaptar e fazer com que uma máquina montada continuasse a rolar à medida do ex-treinador.”
João Pereira, a solução pescada dentro de portas, o escolhido que estava na infância imberbe da carreira, “não pôde ser João Pereira”, lamentou o presidente. “Olhando para trás, se calhar, fosse João Pereira ou qualquer outro treinador, infelizmente ia passar por isto”, deliberou Frederico Varandas, engrandecendo o poder das circunstâncias e sugerindo que suplantariam qualquer pessoa. “Podíamos trazer alguém de fora, mas com sete jogos em 26 dias não teria tempo para treinar”, argumentou o presidente, na semana anterior, para justificar a opção pelo homem em quem via um sucessor de Amorim há muito.
Nem João Pereira teve tempo, nem outrem teria, mas, talvez por o seu jogo partir, no papel, de um sistema com três centrais, dois alas, um par de médios e três atacantes, porventura a magreza temporal, combinada com ser um treinador vindo de Alcochete, não o afetaria tão severamente na lógica extraída da intervenção do presidente do Sporting. Mas Varandas disse saber, portanto conhecer, o grupo de jogadores, que “iriam ter dificuldade em entender alguém que dissesse: agora vamos jogar assim e assado”.
Precisamente o que João Pereira terá dito, pelos seus modos, como qualquer treinador o faria. E o que Rui Borges, à sua maneira, fará agora.
Intuiu então o líder do clube que houve a exclusão dessa parte, a de vir algum técnico que não da casa, invocando ainda razões externas, caídas fora do seu controlo, que contribuíam para o declínio do último mês e meio: o clube “não escolheu o timing do fim desse ciclo”, foram empurrados por “um grande europeu [que] chegou e o nosso treinador aceitou”, depois houve “cinco titulares” que se lesionaram e apareceu a ressaca de “um ano de tanto sucesso”. Todos se sentiam “vítimas” desse sucesso. E acrescentou ainda o truque barbudo de velhice, por tão visto em Portugal - a referência às “arbitragens infelizes”.
Uma semana depois, na apresentação de Rui Borges, a mesma apologia dos imponderáveis, ou terá sido dos incontroláveis? “Consideramos nós que João Pereira experienciou verdadeiramente o que é a Lei de Murphy, teve uma onda de lesões que eu, enquanto presidente do clube, nunca tivemos, e teve também arbitragens extremamente infelizes que prejudicaram a carreira do treinadores neste momento crucial.”
O veneno e um treinador que não foi ele próprio
Com os resultados a titubearem, as dúvidas já refasteladas no sofá da casa leonina, Varandas admitiu, a 19 de dezembro, o veneno no convite que fez a João Pereira, algo que vai “carregar para o resto da vida”. Quando o apresentou, as suas admissões apontaram em direção oposta. Quiçá a sentir a tardeza de então recorrer a um antídoto, o presidente tentou serenar as hostes que tinham visto o Sporting a jogar com João Pereira, as mesmas que não se demoveu de entusiasmar na proclamação feita quando ainda vivalma vira os leões atuarem com este treinador.
Pelo meio, enumerou os fatores alheios que a fortuna conspirava contra os leões. Se tantos havia, parecia ser uma sugestão de que o treinador era vítima de tudo isso. “Neste momento, o Sporting vive circunstâncias que não foram escolhidas por si”, alegou o presidente responsável por escolher João Pereira e vender um futuro auspicioso para o seu escolhido. “Mas era impossível continuar tudo como se nada fosse com estas variáveis: choque emocional, cinco titulares, arbitragens infelizes... O plano A já foi, não há nada a fazer.”
O presidente vitimizava o clube quando a maior vítima, antes de realmente ser culpado de algo, era João Pereira.
Não das circunstâncias, o treinador também as conhecia ao assinar um contrato até 2027, sim das desmesuradas expetativas propagadas por Frederico Varandas que há quatro anos e meio, quando outro rasgo de confiança o moveu, não se aventurou tão além na travessia profética. “Contratámos um grande treinador, mas não um milagreiro”, acautelou, em 2020, ao apresentar o homem nas temporadas seguintes, sozinho, quase dispensou declarações públicas do presidente pela sua carismática autonomia em lidar com quaisquer eventualidades diante de microfones e câmaras.
Tocou agora ao ex-diretor clínico eleito presidente, em 2018, reeleito quatro anos depois, um terceiro ato enquanto abridor das cortinas para um novo treinador. Varandas despediu José Peseiro de modo a estender caminho a Marcel Keizer, abdicaria do neerlandês antes da validade do contrato para ir buscar Jorge Silas e cortaria o cordão com esse técnico para trazer Ruben Amorim, o único dos ‘seus’ treinadores (descontando os interinos Tiago Fernandes e Leonel Pontes) que saiu do Sporting porque realmente quis.
Uma vontade coincidente com a de Hugo Viana, o diretor-desportivo contratado por Varandas e hoje a prazo, que sempre pouco falou, raramente apareceu e se cingiu aos bastidores até decidir também rumar a Manchester, no final desta época, com destino ao City. Sem detalhes do que recheia os procedimentos dentro do Sporting, o emanado para fora parece depositar ainda maior ênfase decisória no presidente neste período da vida do clube.
No quinto treinador que apresentou, sempre a meio de uma temporada e a quarta vez por decisão sua, Frederico Varandas manifestou a mesma dose de convicção. “Não tenho dúvidas que hoje o treinador que vai ser apresentado vai poder ser o Rui Borges”, disse. O que o faz estar tão certo? “Porque assim lhe é permitido.” Terão sido as circunstâncias a não deixarem que tal acontecesse com João Pereira?
Explicando diretamente a confiança que emanou ao desvendar João Pereira, o líder do Sporting justificou-se com o seu “conceito de liderança”, que irá manter: “É esta a escola da minha formação. Não me interessa nada o que vão dizer de fora, muito menos se me vou fragilizar no futuro caso as coisas corressem mal. Interessa-me, sim, os meus, e o que posso fazer para dar força e motivar quem vai aceitar um desafio tremendo. Interessa-me muito mais a comunicação interna do que para fora.” O que se diz em público, para o exterior ouvir, porém, tem um peso.
O Sporting “não escolheu o timing do fim” do ciclo com Ruben Amorim, salientou corretamente Frederico Varandas antes do último jogo do seu sucessor, em Barcelos. “O clube não queria que fosse este momento, o João Pereira não queria que fosse este momento.” Ninguém o pretendia, todos avançaram na mesma. O risco é criticável consoante a perspetiva e analisável com maior facilidade agora, no pós, por já sabermos como correu. Dois mil e vinte e quatro foi “um ano de tanto sucesso”, arriscou um pouco mais o presidente dos leões, pluralizando a sua perspetiva, que “acabamos o ano a sentirmo-nos vítima do nosso sucesso”.
Ao falar também se podem fazer vítimas. Em mês e meio, as palavras de Frederico Varandas não ajudaram a manter a salvo quem aceitou tentar salvar o Sporting num momento em que viesse quem fosse, o mais difícil era manter a equipa a jogar como jogava e os ânimos inamovíveis dos seus píncaros. Ainda João Pereira não tinha dado um treino e já o presidente puxava mais para a atmosfera as expetativas em torno do que vinha aí. Arriscando a profecia, uma vítima ficou identificada.
No momento da despedida, com o inclemente tempo prestes a fazê-lo dar as boas-vindas, no mesmo discurso, ao treinador seguinte, a crença de Frederico Varandas mantinha-se: “Não temos dúvidas de que quando João Pereira for João Pereira terá o seu devido sucesso pelo mérito que tem, pelas competências e pelo caráter.”