Com o seu cabelo grisalho, José Mourinho apresentou-se vestido integralmente de negro no caldeirão que é o Şükrü Saraçoğlu, fervoroso estádio do Fenerbahçe atolado de gente na quinta-feira para uma noite europeia de gala. O clube recebia o Manchester United, um gigante em história, enorme em estatuto se bem que titubeante em desempenhos recentes, um visitante de certa forma a compadecer com o estado atual de Mourinho: outrora na vanguarda do futebol, a referência tudo-conquistadora, mas hoje, aos 61 anos, com os seus métodos contratados por uma equipa longe dos maiores holofotes que mora num campeonato secundário.
O sangue na guelra do treinador português mostrou como fervilha em Istambul, na Turquia, onde um jogo aceso, que terminou empatado a um golo, arrancou-lhe um tipo de reação vista algumas vezes durante a sua estadia anterior em Roma. Na segunda parte, quando Manuel Ugarte carregou Osayi-Samuel para lhe roubar a bola e o derrubou na área, o eruptivo Mourinho queria um penálti, protestou e teve antes uma expulsão que o deixou a ver o jogo atrás do banco de suplentes, entre os adeptos do Fenerbahçe.
Até por lá se sentar, José esbracejou para o ar, vestiu um ar de incredulidade na cara ao falar com o árbitro e demorou a sair do relvado. Terminado o jogo, chegou o momento de ir à protocolar flash interview, terreno bem-conhecido por Mourinho, a sua pradaria de muitas anos onde pôde, uma vez mais, depositar uma intervenção tão carismática quanto polémica. A começar pelo seu sarcasmo. “Ele disse-me algo incrível: que ao mesmo tempo conseguiu ver a ação na área e o meu comportamento no banco. Dei-lhe os parabéns, porque a sua visão periférica é incrível”, disse sobre Clement Turpin, um dos senhores do apito mais conceituados da atualidade, logo depois de arrancar com um “não quero falar sobre isso” ao ser questionado acerca do seu cartão vermelho.
A falar sem soluços, como se o guião tivesse sido ensaiado mil vezes, a entoação no sítio, a sua intervenção durou mais de quatro minutos. “A 100 km/h, durante o jogo, teve um olho na situação do penálti e outro no meu comportamento no banco. Foi a explicação que me deu, é por isso que é um dos melhores árbitros do mundo”, embrulhou Mourinho acerca de Turpin. Concretamente em relação ao jogo, o português, depois, corrigiu o jornalista, frisando que “eles é que conseguiram um ponto contra nós”, sorrindo aqui e ali ao revelar como disse à sua equipa “se jogarem assim na liga turca vamos destruir toda a gente”.
Para sustentar a sua opinião, José Mourinho enalteceu as “duas defesas incríveis” que André Onana, guarda-redes do Manchester United, fez consecutivamente, em meros segundos e na mesma jogada, para negarem outro golo ao Fenerbahçe. “Jogámos contra uma equipa que está a um nível superior, a Premier League tem mais qualidade, intensidade, ritmo e tudo.” O treinador puxaria também por atenuantes, falando de ausências por lesão e de jogadores forçados a atuarem fora da posição habitual para enaltecer a “exibição extraordinária” dos turcos.
“Come on, ele salvou o resultado”, acrescentaria, ainda, sobre o camaronês que guarda a baliza do United, dono de “duas paradas impossíveis em 10 segundos”, no prelúdio de mais um pico de vintage Mourinho com que fechou as suas declarações.
Com 12 anos vividos em Inglaterra, onde conquistou três Premier Leagues com o Chelsea, o treinador puxou da sua sabedoria para tornear o seu discurso e concluí-lo com uma espécie de bicada à entidade que organiza às competições europeias. “Conheço os media ingleses, vão dizer que o United não jogou bem, mas acho justo dizer que fizemos um jogo extraordinário e que fomos melhores do que eles. Por isso, é um bom resultado para o Man United”, argumentou, sem hesitações a olhar mais adiante, para o pós-Turquia.
“Acho que o melhor que tenho a fazer quando deixar o Fenerbahçe”, prosseguiu José Mourinho, “é ir para um clube que não jogue as competições da UEFA”. A amargura do treinador português com mais conquistas europeias, agremiador de uma Taça UEFA e uma Champions consecutivas, com o FC Porto (2003 e 2004), às quais juntou outra Liga dos Campeões com o Inter de Milão (2010), a Liga Europa conquistada o Manchester United (2017) e uma Liga Conferência quando estava na Roma (2022). Mas, pelos vistos, daqui por uns tempos não vai querer tentar engordar mais o seu vasto currículo continental.
“Se algum clube em Inglaterra, no fundo da tabela, precisar de um treinador daqui a dois anos”, intuindo à altura em que o seu contrato com o Fenerbahçe terminar, “estou pronto para ir”.
A garantia de José Mourinho, aparentemente vinda da sua amargura perante o tal penálti não assinalado, serviu para enlaçar com o que outra intervenção sua, muito sua, na véspera do jogo, quando aludiu às 115 irregularidades financeiras pelas quais o Manchester City está a ser investigado pela Premier League, que no limite poderá castigar o clube com a perda de títulos ou pontos conquistados em várias épocas. “Acho que ainda temos hipótese de ganhar aquele campeonato porque se punirem o City com perda de pontos, talvez ganhemos a liga e eles tenham de me pagar o bónus e dar-me a medalha”, disse o português na conferência de imprensa de antevisão, referindo-se à época 2017/18, quando terminou na 2.ª posição do campeonato inglês a 19 pontos do rival da cidade.
Porque José Mourinho não dá ponto sem nó e há cinco anos, já depois de sair do United, gabou o seu trabalho nos red devils como “um dos melhores” da sua carreira. “Se disser que o considero assim, vocês dirão ‘este tipo é louco’. Mas continuo a dizê-lo porque as pessoas não sabem o que se passa atrás das cortinas”, explicou, em 2019. Vendo bem as coisas, a narrativa de Mourinho deu a volta e encontrou-se, novamente, com ele.