“O prazer de derrubar ídolos é diretamente proporcional à necessidade de os ter”, diz-nos Galeano sobre a relação conflituosa entre a imprensa, o público e Maradona em O Futebol ao Sol e à Sombra, livro publicado em 1995, um dos principais dribles literários do escritor de Montevideu pelo imaginário futebolístico do século XX, um desporto que, além de ser arte, também é motivo para ser celebrado pela arte, dizem em terras da América Latina. Não discordemos. As histórias de futebol que Galeano foi contanto, ao longo da sua carreira, estão repletas de deuses armados com chuteiras e bola de couro, alguns já esquecidos, outros matizados em dourado para a posteridade. Nelas há homens que pecam, uns mais do que outros, mas todos se mostram demasiado humanos, emocionais, por vezes trágico-cómicos, capazes de executar momentos só possíveis num sonho e de atos infames que encheriam de vergonha qualquer um de nós, se a nossa mãe os descobrisse.
Dieguito, El Pibe [Menino] de Oro, El Diez, Mão de Deus, D10S, Drogado, Maradona. Sobre ele, Eduardo Galeano fez a breve sinopse que poderia vir debaixo do seu cromo, numa caderneta da bola.
“Drogava-se em lúgubres festas, para esquecer ou ser esquecido, quando já estava encurralado pela glória e não conseguia viver sem a fama que não o deixava viver. Jogava melhor do que ninguém, apesar da cocaína, e não por causa dela.”
Em 2017, no livro póstumo com o sugestivo título de Cerrado por Fútbol (traduzível para Fechado por Motivo de Futebol), foi mais longe e fez o retrato de vida do menino que chegou a estrela, agraciado por uma intuição e talento que aprimorou nos jogos de rua em Villa Fiorito, o bairro de lata de Buenos Aires. Uma estrela que depois se tornou cadente devido à cocaína, devido à condição humana de todos sermos imperfeitos, carregado até ao fundo pelo peso da fama que nunca quis largar.
“Diego Armando Maradona foi adorado não só pelos seus prodigiosos malabarismos, mas também porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses. Qualquer um podia reconhecer nele uma síntese ambulante das fraquezas humanas, ou pelo menos masculinas: mulherengo, ganancioso, bêbado, trapaceiro, mentiroso, presunçoso, irresponsável. Mas os deuses não se reformam, por mais humanos que sejam. Ele nunca conseguiu regressar à multidão anónima de onde veio. A fama, que o salvou da miséria, fê-lo prisioneiro. […]
Maradona foi condenado a acreditar que era Maradona e forçado a ser a estrela de todas as festas, o bebé de cada batismo, o morto de cada velório. Mais devastadora do que a cocaína é a ‘êxitoína’. As análises, de urina ou sangue, não detetam esta droga.”
Basta. Queremos futebol, aquele que se vê no relvado. Afinal, qual a jogada que melhor resume a transcendência futebolística de Deus, perdão… de D10S, como se passou a escrever, em homenagem à camisola 10 que envergou pela seleção albiceleste e pelo Nápoles? Não precisamos de olhar para os vídeos no YouTube do Mundial do México, em 1986, quando driblou mais de metade da seleção inglesa para o golo mais orgástico de sempre, nem rebobinar as velhinhas cassetes de VHS de San Paolo, o mítico estádio do Nápoles, clube de uma cidade pobre do sul, sempre zombada pelos colossos ricos do norte: Maradona, inclusive aqui, fez questão de entrar na velha luta de classes e nos tradicionais antagonismos entre diferentes latitudes.
Foi em 1973, numa partida entre os infantis dos Argentinos Juniors e o River Plate, garante-nos Eduardo Galeano em O Futebol ao Sol e à Sombra:
“O número 10 dos Argentinos [então com 13 anos] recebeu a bola do guarda-redes, esquivou-se ao ponta de lança do River e deu início à corrida. Vários jogadores saíram ao seu encontro: a um fez a bola passar por cima dele como se fosse uma roda de bicicleta, a outro fê-la passar entre as pernas e ao outro enganou-o de calcanhar. Em seguida, imparável, deixou paralíticos os defesas e o guarda-redes tombado no chão, e meteu-se a caminho com a bola até à rede rival. Em campo ficaram sete crianças fulas e quatro que não conseguiam fechar a boca. Aquela equipa de pequeninos, os Cebolitas, estava invicta há cem jogos e tinha chamado a atenção dos jornalistas.”
Mais de uma década depois, voltou a carregar sozinho toda uma equipa, um só país, até ao título de campeão de mundo de nações. Foi, porventura, a primeira vez que um jogador ganhou, quase sozinho, o título máximo do futebol. Uma história mais do que repetida, por escrito e oralmente. Nápoles não foi muito diferente: um clube de zé-ninguéns, reconhecida apenas por alguns troféus que há muito precisavam de lustro, vê entrar em pleno balneário o “Salvador”, nome pelo qual gritavam os incrédulos napolitanos. E foi este pequeno argentino, encorpado q.b. e cabeludo que fez chorar de alegria toda uma cidade, e de tristeza o megalómano Silvio Berlusconi (o futuro magnata dos média e primeiro-ministro de Itália), dono do milionário e todo-poderoso Milan, um dos titãs do norte orgulhoso. Lá em baixo, em Nápoles, Maradona ajudou o sul a fazer o típico manguito italiano ao resto do país e ao preconceito para com os napolitanos. Mas, como relembra Galeano, pagaria caro a audácia no Campeonato do Mundo de Itália, em 1990. Se junto dos seus era D10S, para todos os outros era a personificação do infame.
“Nas ruas de Nápoles, foram vendidas imagens da divindade em calções, iluminada pela coroa da Virgem ou envolta no manto sagrado do santo que sangra a cada seis meses. Também se vendiam caixões dos clubes do norte de Itália e garrafas com lágrimas de Silvio Berlusconi. As crianças e os cães usavam perucas de Maradona. Existia uma bola junto aos pés da estátua de Dante e o tritão da fonte vestia a camisola azul do Nápoles. Há mais de meio século que a equipa da cidade não conquistava um campeonato, uma cidade condenada à fúria do Vesúvio e à derrota eterna nos campos de futebol. E, graças a Maradona, o escuro sul finalmente conseguiu humilhar o norte branco que o desprezava. Taça atrás de taça, nos estádios italianos e europeus, o Nápoles vencia, e cada golo era uma profanação da ordem estabelecida e uma vingança contra a história. Em Milão, odiavam o culpado da afronta que era os pobres fora do seu lugar: chamavam-no [a Maradona] de rolo de presunto. E não era penas em Milão: no Campeonato do Mundo de 1990, a maioria do público punia Maradona com assobios furiosos de cada vez que ele tocava na bola, e a derrota da Argentina para a Alemanha [na final] foi celebrada como uma vitória italiana.”
Do céu para o purgatório. Da luz para as trevas. Foi assim a travessia de 1990 para 1991. Entrou em queda livre, alegou stress para faltar a treinos e jogos do Nápoles, o uso e abuso da cocaína – vício que parecia não ter fim – viraram escândalo mediático, assim como as suspeitas de que travava amizades com os bandidos da Camorra, a máfia italiana. Abatido e vergado, viu-se obrigado ao exílio, às dores da vida comum, como acontece a todo o herói no fim da sua epopeia.
“Estava sobrecarregado com o peso de seu próprio caráter. Tinha problemas na coluna vertebral, desde o distante dia em que a multidão gritou o seu nome pela primeira vez. Maradona carregava um peso chamado Maradona, o qual fazia ranger as suas costas. O corpo como metáfora: doíam-lhe as pernas, não conseguia dormir sem comprimidos. Não demorou muito a perceber que a responsabilidade do trabalho de Deus nos estádios era insuportável, mas desde o início que sabia ser impossível parar de fazê-lo. «Preciso que precisem de mim», confessou, quando já se contavam muitos anos com o halo no topo da cabeça, submetido à tirania do desempenho sobre-humano, empapado em cortisona, analgésicos e ovações, atormentado pelas exigências dos seus devotos e pelo ódio dos seus ofendidos.”
Não desistiu. Foi à liça para provar que estava vivo e ainda era o D10S. Mais um Mundial de Futebol com a seleção da Argentina. Só mais um, aos 34 anos. O verão de 1994, nos Estados Unidos, prometia, mas o baralho de cartas ruiu após uma despistagem de doping, recorda Galeano em O Futebol ao Sol e à Sombra:
“Jogou, venceu, mijou, perdeu. A análise detetou efedrina e Maradona acabou de má maneira o Mundial.”
Pendurou as chuteiras alguns anos mais tarde, mas a posteridade, já então prometia Galeano, recordará Maradona sem ser pelos casos de cocaína, doping ou pela sua língua viperina, quando inflamado – aqui, só lhe faltou o verniz do politicamente correto e a rede de relações públicas que os craques de hoje têm e pagam a preço de ouro:
“Maradona é incontrolável quando fala, mas mais ainda quando joga […] No frígido futebol do final do século, que exige ganhar e proíbe a diversão, este homem é um dos poucos que demonstra que a fantasia também pode ser eficaz.”
E o que pensou D10S de tudo o que Galeano escreveu sobre ele? Em abril de 2015, pouco tempo depois de o escritor uruguaio falecer, Diego Armando Maradona inverteu os papéis e foi ele a escrever em jeito de despedida, no jornal argentino La Nación:
“Obrigado por me ensinares a ler o futebol. Obrigado por lutares como um número 5 a meio-campo e por marcares golos aos poderosos como um 10. Obrigado, também, por me entenderes.”