Iúri Leitão não conseguia dormir na véspera de ser campeão olímpico. Um dia depois de ganhar a prata no Omnium e um dia antes de ganhar o ouro, o novo ídolo do desporto português não conseguia pregar olho. Talvez fosse o entusiasmo, talvez o cansaço que diz ainda sentir do esforço que o levou ao primeiro dos dois pódios que obteve em Paris 2024.

Ao não conseguir adormecer, Iúri foi ver a prova de Omnium. Ao ver como voou na quinta-feira, o vianense apercebeu-se que houve uma fase em que ele, “em conjunto com o francês [Benjamin Thomas, ouro no Omnium]”, estavam “muito acima de toda a gente”.

Assistir ao nível que o próprio evidenciou tranquilizou-lhe o espírito. “Estava confiante de que, se agora estivesse num dia que fosse, pelo menos, ok, iríamos fazer um grande resultado”. Depois desta injeção de moral, Leitão foi ter com o seu parceiro de Madison: “Disse ao Rui que ia ser o nosso dia. E foi o nosso dia”.

Iúri Leitão e Rui Oliveira, primeiros campeões olímpicos portugueses que não no atletismo, chegam à zona mista do velódromo de Saint-Quentin-en-Yvelines com as marcas da felicidade bem evidentes. A celebração, mal Leitão cortou a meta, teve os mesmos toques de caos que possui esta prova, com os corredores deitados no chão, em abraços descontrolados, pulando e gritando de alegria.

""Ainda não estou em mim. É um sonho tornado realidade.Campeão olímpico? Acho que não vou dormir durante muito tempo", prevê Rui Oliveira, de 27 anos.

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Na tal noite em que não conseguia adormecer, Iúri Leitão viu a final do triplo salto, em que Pedro Pablo Pichardo conquistou a medalha de prata. No final, houve algo que lhe ficou a matutar na cabeça, que o soou quase a desafio.

“Ouvi que ele tinha sido o segundo atleta da história de Portugal a conseguir ouro e prata. E pensei que, na forma em que estou, com o colega que tenho, com a tática perfeita… Acho que isto não me vai escapar”, revela Leitão.

Com uma prata e um ouro, Iúri iguala os registos de Pichardo e Carlos Lopes. mas faz algo inédito para Portugal, sendo o primeiro nacional a conseguir duas medalhas na mesma edição dos Jogos Olímpicos.

Há uma certa diferença no discurso da equipa. Iúri Leitão parece mais calmo, como se tivesse visto tudo isto antes de acontecer, ao passo que Rui Oliveira soa a um homem mais espantado, surpreendido consigo próprio: “Sabíamos a corrida que tínhamos de fazer, mas nunca, nunca, nunca na minha vida pensei que poderíamos discutir o ouro”, confessa Rui.

A crença na tática utilizada, ainda assim, parece uni-los. Sempre com a supervisão do selecionador Gabriel Mendes, técnico e grande ideólogo da revolução feita para o ciclismo de pista no velódromo de Sangalhos, a estratégia era ter paciência, numa prova “que se faz mais com a experiência do que com a condição física”, sendo necessário “ler, analisar e ser muito frio”, considera Iúri.

A tática era esperar. “Gerir as forças e atacar na hora certa”, indica Leitão. A 60 voltas do fim, Iúri disse a Rui que a dupla tinha de atacar, mas a resposta de Oliveira foi clara: “Calma, deixa-os materem-se primeiro e depois nós arrancamos para dar a volta a isto”, revela o medalhado de prata do Omnium.

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À entrada para o último quarto da competição, a parelha estava em 11.º lugar. Só nas últimas 25 voltas se deu uma aceleração, num movimento pensado, definido por Iúri Leitão como “uma bala dourada”, o “último cartucho” que ambos tinham disponível.

Quando se deu o ataque português, Rui Oliveira apercebeu-se que todos os adversários “estavam com debilidades”. Ao trocar com o seu parceiro, Rui “analisava a corrida” e via “que toda a gente estava a ficar para trás”, porque ambos estavam “com pernas incríveis”.

O que mais impressionou naquele ataque foi a convicção. Nada de olhar para trás, nada de esperar, foi só “ir e ir e ir”, comenta Oliveira. “As últimas 25 voltas foram a todo o gás, sem olhar para trás. Não nos importava se tínhamos alguém na nossa roda”, explica Leitão.

Naquela cadência frenética, naquele movimento quando todos os outros estavam cansados, esteve a chave de ouro. Primeiro conseguindo ir buscar 5 pontos nos sprints que ocorrem a cada 10 voltas e depois obtendo o prémio maior do Madison: dar uma volta de avanço à concorrência, o que vale 20 pontos.

“A minha corrida acabou a duas voltas e quando o vi [ao Iúri] a passar e olhei para os resultados no ecrã… Não acreditei”, diz um Rui Oliveira que parece sempre incrédulo.

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Em cerca de 10 minutos, Portugal passou de estar fora dos diplomas para um brutal ouro olímpico. A última transição, a derradeira passagem de Rui Oliveira para Iúri Leitão, dá-se quando a vitória estava praticamente garantida.

“Programei a minha última entrada para uma volta e meia do final. Fiz o máximo de força no braço para ganhar muita inércia, agarrei o guiador com as duas mãos e pensei: esta não nos escapa”, relata Leitão, o homem que cruzou a meta para selar um ouro inédito para Portugal fora do atletismo.

Dentro da alegria, Rui Oliveira tem um “apelo” a fazer: “Por favor não olhem só para o ciclismo de pista daqui a 4 anos. Sigam-nos, apoiem-nos. A pista [velódromo de Sangalhos] foi construída há pouco mais de 15 anos e vejam onde estamos agora. Se mostrámos o que conseguimos fazer com 14 anos de ciclismo de pista, imaginem o que podemos fazer com todos a apoiarem. Espero que nos ajudem mais e tenhamos mais apoio, às vezes isso falta. Que não se lembrem só daqui a 4 anos que existimos e só pensem em medalhas”, pede um dos sete medalhados de ouro de Portugal, em seis competições.

Rui Oliveira e Iúri Leitão parecem levitar. Estão felizes, riem, fazem brincadeiras olhando para a televisão que mostra os momentos imediatamente a seguir ao triunfo, gracejam um com o outro pelo facto de terem chorado.

“Foi um sonho, está a ser um sonho, vai ser um sonho nos próximos anos”, confessa Rui Oliveira.

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