Livre-mo-lo dessa onça de comparação, João Pereira dispensa, não tem culpa que o predecessor tenha sido quem foi. Os olhos bem abertos, a pose rígida, a fala monocórdica a segurar no microfone da Sport TV, já no relvado de Alvalade, antes do jogo, são de um homem diferente, e ainda bem, as diferenças não pressupõem distinção e não é por a João escapar a oratória, o carisma e o à-vontade comunicativo de Ruben que se deva cobrar ao primeiro as valências do segundo. Até porque do sucessor, na sua calma, veio a sensatez de reconhecer que se existia boa obra deixada por Amorim, para quê mexer, toca é a aproveitar, esculpindo sem pressas e aos poucos as mudanças que lhe conviessem.

De jeito nenhum, nem para espreitar se porventura seria no primeiro teste a sério, de fogo mesmo, contra o Arsenal e para a Liga dos Campeões, serviram os 10 minutos iniciais em Alvalade. Os visitantes entraram mandões no relvado enquanto as bancadas cheias, certamente obreiras da manutenção no fresco das memórias da última vez que uma equipa de Inglaterra lá esteve, entoavam cânticos ferozes. Estes ingleses, mais uns, indiferentes à recordação, encostaram o Sporting à sua área com um colete de forças exímio na pressão sobre a saída de bola. E como há semanas, de novo se viu um golo madrugador.

Preso às linhas de passe que se fechavam ao centro quando, uma e outra vez, a equipa tentou sair por Gonçalo Inácio (como o Arsenal a convidava) e o canhoto era pressionado, de fora para dentro (tal e qual o Arsenal planeara), por Bukayo Saka, o Sporting tremelicou para sair do primeiro terço do campo. O seu defesa central que melhor passa a bola errava passes, Morita e Hjulmand tinham cães pisteiros a servirem-lhes de sombra, nenhum de Edwards e Trincão lograva posicionar-se para haver um possível passe por dentro que galgasse linhas e deixasse a equipa tomar fôlego.

O Arsenal usava e dispunha da bola, hábil na sua artimanha de pressão e astuto conspirador de teias inclinadas para o lado direito do seu ataque. O seu melhor, por lá onde Ødegaard, o esguio fiorde nórdico de técnica e leveza de pés, se juntava ao extremo Saka e ao lateral Timber para desenhar triangulações. Numa das vezes em que sobrecarregou esse corredor para ficar com vantagem nos números, Rice foi chamado para lançar o neerlandês que cruzou rasteiro para Martinelli sair das desatentas costas de Quenda e fazer o 0-1 na pequena área. Foi aos 7, como o Manchester City marcara aos 5’ na tal saudosa noite.

Mas, desta feita, nunca os leões esboçarem um coche de reação, nem um leve rastilho de capacidade para se livrarem das grilhetas de quem os aprisionava.

RODRIGO ANTUNES

A forma concertada com que o Arsenal pressionava, aliada ao carrossel que punha a girar quando teve a bola, desnorteava a bússola do Sporting, perdido de quaisquer pontos cardeais dos seus hábitos de jogo: se raramente saía pela relva de trás, não tinha o apático Edwards, amorfo a dar-se ao jogo, nem o marcadíssimo Trincão, como escapatórias; as vias para Maxi Araújo ou Geovany Quenda eram bloqueadas pelos extremos ingleses; e a maior fuga de todas, a boia de salvação suprema, estava encafuada entre os dois mamutes defensivos do adversário.

Jamais o possante Viktor Gyökeres teve condições para provar o quão o é, em momento algum deixado em situação de um para um com William Saliba ou Gabriel Magalhães. Sobretudo o francês se encarregou de se antecipar ao sueco ou de lhe encostar o corpo nas solicitações apressados que o Sporting lhe pedia, de costas para a baliza, mais como opção de socorro do que de planeamento. Tão pouco o brasileiro, nas vezes em que o avançado fugiu numa diagonal típica para Quenda o lançar em corrida, concedeu uma veleidade que fosse. Da única vez, aos 40’, que uma desmarcação destas de Gyökeres o deixou ter bola, pela direita, ele apenas cruzou rasteiro e para trás, sem sucesso.

E o Sporting, durante 45 minutos, foi isso, uma equipa nada bem sucedida e por demais infrutífera. Os jogadores, por si só, não engenhavam maneira de contornar a mandíbula das algemas do Arsenal na saída de bola, um desafio novo para os leões esta temporada. Morita tentou deixar de lateralizar a sua posição para lá de Inácio, sem resultados, tão inócuo quanto os passes longos com que variou o flanco perante a lentidão das trocas de bola da equipa, incapazes de encontrar jogo interior - e de contrariar as matreirices do Arsenal em posse.

Até ao intervalo, o massacre dos ingleses pela direita ainda hostilizou Maxi Araújo quando Saka, ao invés de o encarar no drible, o molestou com um ataque às costas do uruguaio. Desmarcou-se, o passe entrou, viu Israel sair da baliza desalmado e cruzou para Havertz facilmente ter o 0-2, aos 22’. Mais tarde, atestando as magicações do Arsenal nas bolas paradas - cada lançamento lateral, à direita, era uma amostra de geometria descritiva aplicada ao futebol para Ødegaard ou Saka ficarem livres -, o terceiro golo surgiria num canto, castigando o pecado de pedir ao baixote Maxi Araújo para marcar individualmente o matulão Gabriel Magalhães. Já nos descontos, vinha 0-3, com o central a emular o festejo de Gyökeres, mas usando a máscara de mãos para tapar os olhos.

Era uma divergência, uma pequena mas grande diferença que já apareceu depois de outra coisa feita diferente surtir, por fim, algum efeito no Sporting, quando Maxi Araújo resolveu correr com a bola, da esquerda para dentro, até a largar em Quenda, na direita, que encarou, driblou e rematou com o pé direito a única tentativa dos leões antes do intervalo. O sinal estava aí, no distinto, em fazer algo que baralhasse a normalidade.

Feito o intervalo, regressando o Arsenal disposto no mesmo bloco para importunar a construção dos leões, houve outra ligeira forma de fazer as coisas a trazer proveito à equipa de João Pereira, impedido por falta de cursos e diplomas de tirar o traseiro do banco ou de dar indicações: numa posse que o Sporting levou meio-campo adversário dentro, Morita posicionou-se não em linha, antes um pouco por diante de Hjulmand, o dinamarquês fez-lhe chegar a bola de primeira e o japonês, também de imediato, a rematou, livre de marcações, para David Raya se esticar e dar um canto.

O proveito desse ajuste veio logo aí, com Gonçalo Inácio a reduzir distâncias (48’) num desvio subtil, ao primeiro poste. Tão cedo na segunda parte, o golo injetou a equipa de ímpeto, à maior resgatou-a do prolongado sofrimento e sem a catapultar, pois mais foi como uma libertação, lançou-a para um período mais fidedigno ao que é.

Os 20 minutos seguintes foram de um Sporting a jogar com outra acutilância, não muito melhor do que tinha sido antes, mas melhor, a ligar ocasionais bons fios de jogo, sobretudo a mostrar traços da sua personalidade. E do que João Pereira quererá de diferente, à sua maneira. Já houve vida de Marcus Edwards, sorrateiro a explorar os espaços por dentro, nas entrelinhas mais perto de Trincão e com Morita a avançar uns metros. De quando em vez, via-se um semblante do losango ao centro que o novo treinador apregoava na equipa B e marcações a serem confundidas.

Acumulando baldrocas no miolo, Araújo e Quenda tiveram mais espaço à largura, o uruguaio cruzou e o português rematou enquanto por dentro Hjulmand ia dinamizando as hostes, dando-se mais aos últimos 30 metros e procurando o quase incógnito Gyökeres. Havia que puxar o sueco para o jogo, tinha o avançado que berrar contra o seu lusco-fusco na noite de Alvalade.

Ele apareceu para segurar uma bola nas barbas de Gabriel Magalhães, forçar um livre à beira da área e esbofeteá-lo em fúria, por cima da baliza. E muito dele foi depois a fuga à redondeza do mesmo central, a desmarcação repentina a pedir o passe de Hjulmand e a dar uma chapada de pé na bola, em corrida, falhando novamente o retângulo com redes. Fossem os toquezinhos de primeira de Edwards ou os do capitão, o Sporting já ligava jogadas com o temível avançado que vai motivando notícias, reportagens e pergaminhos em jornais ingleses. Mas, no melhor pano dos leões, surgiu repentina nódoa do Arsenal.

Viria do mago Ødegaard, o loiro feito de cetim para a bola, que a roubou dentro do meio-campo do Sporting, foi por ali fora, pediu uma combinação e furou até ser rasteirado por Diomande na área. O penálti que Saka converteu com paciência, aos 64’, decapitou a rajada que os leões tentavam transformar em vento constante no jogo. Mesmo com as melhorias, com o tino renovado, os leões foram incapazes de furar na área, órfãos de soluções para desmontarem a última linha de um Arsenal poderoso na sua coesão defensiva tanto quanto era assustadoramente dinâmico a inventar situações de vantagem a atacar.

O derradeiro golpe dos ingleses seria outra prova. Outra jogada mastigada pela direita, já sem Ødegaard em campo, mas com Mikel Merino e Oleksandr Zinchenko a providenciarem outros pés aptos a manterem a bola a rolar sem socalcos, teve os seus a trocarem posições, fazerem passes circularem rápido, tocarem a bola e irem embora, até que Merino a rematou, Israel a defendeu para onde a cabeça de Trossard estava à espera.

MIGUEL A. LOPES

Na recarga, o 1-5 poderia ser (82’) um castigo com peso a mais na severidade, sensação asseverada pelas desgarradas meias-oportunidades que o Sporting, espernando com vida, ainda foi capaz de mostrar. Já sem a omnipresença de Saliba em campo, Gyökeres teve uma bola das suas, chegada ao sueco pouco depois da linha equatorial do relvado para ele zarpar furibundo, levando Magalhães e o Jacub Kwior atrás ou à frente, a fronteira é ténue, até invadir a área e quase em cima da baliza estoirar um remate de pé esquerdo à barra. Já quase no fim, Hjulmand ainda disparou de muito longe, mas Raya negou-lhe o amenizar da goleada.

Não fugiria o farto resultado ao Arsenal, quarto classificado da Premier League e uma das mais árduas equipas de desmontar na Europa, munida de defesas centrais opressões, um Ødegaard estratosférico no seu talento e na influência que exerce no jogo da equipa e cheia de metamorfoses a toda a hora, onde tanto Havertz, o avançando, vira um 10 ou um 8, ou Timber, o lateral direito, aparece a pedir a bola como se fosse um extremo esquerdo. A supremacia e diferença nos golos, mesmo obesa, não será de estranhar por aí além no Sporting, pertencente a outra dimensão futebolística por mais que a estelar façanha contra o Manchester City, recebido em contexto muito específico, injetasse esteróides nas perceções.

Nessa ida noite, o Sporting sonhou acordado ainda com o antigo treinador que já sabia que estava como haveria de ir - em estado de graça. Nesta, vestido outra vez de anfitrião para ingleses, ainda tão cedo com João Pereira, ainda com o novo líder a prova medidas, a apalpar hábitos, foi goleado pelo Arsenal que não marcava fora de casa, na Europa, há quatro jogos (e não ganhava há oito). Nem a equipa do tal píncaro alcançado nesta Liga dos Campeões fazia concluir que os leões tinham um garante de que eram fabulosos, nem este baixio implica uma vida lamacenta em dificuldades.

Outrora também Ruben Amorim perdeu por estes números em Alvalade, vergado pelo mesmo City que lhe acolchoou o trampolim de reputação para Manchester e por um Ajax que terraplanou o Sporting no seu primeiro jogo nesta competição. Em tempos não muito distantes houve que sofrer, agora revisitou-se o sofrimento. Se João Pereira terá de mudar muita coisa por causa disto? Quiçá algumas, necessariamente.