“Imane! Imane! Imane!”
O som navega por outros comprimentos do que a luz, o que se ouve é mais lento do que se vê, mas, por momentos, muitos momentos, escuta-se tudo e presta-se olhares a pouco. Um desses é na derradeira martelada do sino. Com segundos em falta para tal, a pugilista de vermelho sapateia com pézinhos de seda, virada de lado e a dar um ombro à adversária de azul com pequenos saltos, um levitar de borboleta depois de ter picado como uma abelha. Parece evocar propositadamente os gestos outrora ditos pelo maior a colocar umas luvas, Muhammad Ali, homenageando a forma como ele se mexia no ringue.
Quando o último gongo corta o insistente coro de gritos pelo seu primeiro nome, Imane Khelif arresta os pés. Planta-os no chão, pára diante de Liu Yang e fica apenas a mexer o tronco e a abanar os braços, pouco demorando a rir e a abraçar a chinesa. Ambas sabem quem irá ganhar. A argelina remete para o seu canto, os seus dois treinadores fazem-lhe uma festa, ela destapa um enorme sorriso escurecido pelo negro integral da boqueira que lhe protege os dentes. Khelif tira o capacete, dão-lhe toalhas para secar um pouco do suor que lhe escorre na cara, ela apressa-se, o árbitro em mangas de camisa e de laçarote espera-o já ao lado da adversária no centro do ringue.
Quando lá chega, o cicerone segura numa mão de cada pugilista e os três esperam pelo speaker. De repente, já nada se ouve, nem cânticos. Assim que o imitador de serviço de Michael Buffer, a mítica voz do “let’s get ready to rumble”, Imane Khelif já tem o braço livre bem esticado no ar e com o dedo indicador em riste, a apontar para o teto fechado do Philippe Chatrier para lá do qual está o céu. Agora é o visto a dominar sobre o escutado, mas o que vemos a seguir espera pelo “in the red corner” ouvido no início do anúncio da vencedora para libertar as amarras à festança da argelina.
Imane Khelif levanta os braços, pula de felicidade, torna a saltitar no ringue agora com os braços dobrados e os dois dedos indicadores esticados, a pistolarem no ar com alegria, ela já com um sorriso branco na cara. As bandeiras da Argélia preenchem o panorama nas bancadas. A pugilista tem o seu momento, porém não o alonga, vai buscar o braço de Liu Yang e ergue-o, presta um tributo à vencida para mostrar que vencer também é isto, ter a sempre possível graciosidade até quando tantas más línguas, tantos maus- caráter, tamanha ausência de empatia, fizeram tudo para a encurralar a um canto.
Imane Khelif é rapidamente levada em ombros pelos treinadores dali para fora, o ruidoso barulho do estádio principal de Roland-Garros, fechado ao ténis para as obras que o fizeram receber as finais olímpicas do boxe. Acaba de conquistar a medalha de ouro nos -66 quilos, é uma pugilista unânime, vence por 5-0, prevaleceu por pontos, os três rounds foram seus. Descrevendo somente desta forma, o combate aparenta ter sido trivial, na prática foi, mas a felicidade da argelina não se explica apenas pelos socos que lhe valeram o apogeu da sua carreira.
A argelina é uma mulher de 25 anos que a partir do momento em que outra mulher, Angela Carini, abdicou de se medir a ela no ringue, desistindo do primeiro combate de ambos nos Jogos aos 46 segundos, queixando-se da força, inaudita para a italiana, com que foi esmurrada, passou a ser coloca em causa. Não o mundo, mas o tóxico e arcaico, desmiolado e insensato mundo das redes sociais, começou a duvidar dela ser uma mulher porque outra mulher atirou uma acendalha às brasas que pareciam estar só à espera desse combustível para deflagrarem um fogo.
Disse Giorgia Meloni que “atletas que tenham características genéticas masculinas não deveriam ser admitidas em competições masculinas”. Sem que a pugilista do seu país sequer mencionasse algo remotamente parecido, a primeira-ministra italiana, pelos vistos conhecedora a fundo do ADN de uma pugilista da Argélia, estendeu a passadeira às incendiárias mentes de quem tem uma fartura de seguidores e uma carência de empatia, para ficarmos apenas por aqui. E mesmo após as desculpas pedidas por Angela Carini quando o tamanho da polémica já nem em Roland-Garros caberia, a controvérsia era tanta que chegou-se ao ponto de duas entidades desportivas levarem o seu antagonismo para durante uns Jogos Olímpicos.
Medindo espadas, esticando egos, escondendo interesses ocultos, a desacreditada Associação Internacional de Boxe (IBA) presidida pelo russo Umar Kremlev protegeu o seu pantanoso terreno: em 2023, desqualificou Imane Khalif dos Mundiais da modalidade por supostamente ter “falhado” exames que não foram testes de testosterona, mas cujos resultados nunca foram revelados, nem na caótica conferência de imprensa que convocou há dias para sugerir, de novo, que Khelif não é uma mulher, e criticar o Comité Olímpico Internacional que defende o óbvio, que a argelina é uma mulher e o que lhe fizeram foi “arbitrário e súbito”, sem bases científicas.
Bendita Imane Khelif que tem 25 anos e se expressa em árabe, talvez nem beliscando o inglês e por certo não pescando nada do português onde uma deputada, no meio das chamas incandescentes do seu meio predileto, lhe chamou “homem biológico” sem provas e um partido propôs um voto de condenação no Parlamento contra a “participação desigual de atletas femininos e masculinos nos Jogos Olímpicos” e se queixou da “normalização da violência” contra mulheres, porventura não reparando que essa sua ação, dirigida a mulher argelina que compete em Paris, capital de França, talvez promova precisamente aquilo contra o qual se querem erguer.
Cada soco da potente direita de Imane Khelif, todo o murro calculado, sem fúria ou intempestividade, que deu na final, não visara apenas o corpo de Liu Yang. “Sou uma mulher como qualquer outra mulher” prestou-se a comentar, já de ouro ao pescoço, depois das lágrimas derramadas a ouvir o hino do seu país e dos olhos encharcados com que se fixou na sua medalha, só dela, já ao peito, acariciando-a com uma mão. No cume da sua glória, quando finalmente podia pedir que “parem com o bullying” porque tem “efeitos massivos”, como pedira já antes, apenas sorriu, brincou com as outras medalhadas, abraçou-as, compartilhou a felicidade.
Sem mais murros para dar dentro de um ringue, Imane Khelif acabou a dizer, à BBC, o que nunca deveria ser suposto, necessário ou forçado em qualquer mulher, atleta ou não: “Pelos ataques que me fizeram, esta foi a minha maneira de reagir. O meu sucesso tem um sabor especial por causa desses ataques. Estou muito contente com a minha prestação.”
Ainda acrescentou: “Sou uma mulher forte.”
E o som a imperar no final, outra vez, finalmente. “Imane! Imane! Imane!”