Este mês de outubro foi um tempo de sobressalto para o movimento desportivo, resultado inevitável das peripécias que envolveram (e ainda envolvem, pois hoje é dia de votação e aprovação na generalidade na Assembleia) a proposta de Orçamento de Estado para 2025. Já desenvolvi aqui o bastante para se perceber que aguardo convictamente a confirmação de que tudo não tenha passado de um “susto”, e de que o desporto irá seguramente ver reforçado na votação final o seu financiamento público nas suas diversas vertentes.

1- O desporto tem lugar na Constituição da República como um dos direitos fundamentais reconhecidos aos cidadãos, desde logo no artigo 79, onde se estabelece que “todos têm direito à cultura física e ao desporto”. E no mesmo artigo afirma-se que “incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto”. Estes princípios constitucionais, que são por sua vez respeitados na diversa legislação em vigor, afirmam de forma peremptória o interesse público do desporto, sem tal se vir a confundir com um conceito de desporto “estatizado”, mas sim respeitando a liberdade, a cooperação e o pluralismo próprio do nosso regime democrático.

Ou seja, um desporto que, sendo obrigação constitucional do Estado promover e estimular, deve sempre acontecer em cooperação, em primeiro lugar, com as entidades que assumem uma intervenção a si dedicada - clubes, associações e federações. Essa cooperação deve entender-se como um assumir pelo Estado das esferas de ação prioritárias como a saúde, a juventude, a inclusão social ou, por outro lado, a representação nacional, entre muitas outras. Este papel do Estado, cumprido em parceria com o movimento associativo, permite ao país alcançar o sempre reclamado e legítimo “desporto para todos”, mas igualmente possibilitar novos caminhos para o alto rendimento e a representação nacional nos grandes encontros desportivos europeus, mundiais e olímpicos.

2- É claro para todos, e sobretudo para os que se dedicam e trabalham nas estruturas associativas desportivas, que o papel do Estado é insubstituível no financiamento. Afinal, este é o país em que vivemos, onde demora ainda a convencer o mundo empresarial a partilhar e a acompanhar, na sua responsabilidade social, o mundo do desporto com o apoio financeiro tão necessário. Assim sendo, e enquanto este caminho se vai fazendo (oxalá cada vez mais eficazmente) é evidente que a maioria das modalidades que não são bafejadas nem pela popularidade generalizada nem pela sorte (mas que insistem, e bem, em existir para oferecer escolhas a todos tal como ordena a Constituição) dependerão sempre, e necessariamente, do apoio público.

As demais, que se relacionam com os grandes públicos e as grandes competições, por outras e igualmente válidas razões, não podem deixar de reclamar e de receber do Estado os mesmos apoios, sem os quais não conseguem servir as dezenas e centenas de clubes e milhares de atletas que aspiram sempre por melhores condições para a prática informal ou competitiva do seu desporto de eleição.

É por tudo isto que o “susto” da proposta orçamental para 2025 provocou uma reação forte e indignada do movimento associativo e dos seus primeiros responsáveis, à qual será seguramente dada a necessária atenção e que resultará numa proposta que respeite o esforço de todos, promovendo o desenvolvimento desportivo.

3 – Uma posição e atitude de unidade dentro do movimento desportivo é essencial para a sua própria credibilidade e o êxito das suas iniciativas. E não só - é necessário também bom senso e sentido de responsabilidade da parte de quem o representa. E às vezes tal não acontece, o que se traduz não apenas em diminuição de poder reivindicativo perante os poderes públicos, mas também numa quebra de compreensão da opinião pública e consequente perda da sua solidariedade nestas matérias de financiamento. E na verdade é tão clara e simples a razão que assiste ao associativismo desportivo para reclamar para si mais atenção e apoio público... Senão, vejamos:

A sociedade portuguesa foi fustigada recentemente por dois períodos, quase consecutivos, de enormes restrições financeiras e sociais que corresponderam ao chamado tempo da troika e da pandemia Covid-19. Inevitavelmente, houve reflexos severos quer num caso quer noutro na disponibilidade do Estado para o financiamento da atividade desportiva. E esse facto espelha-se de modo evidente numa simples leitura do quadro de financiamento do subsector federado pelo Instituto Português do Desporto e Juventude entre 1996 e 2024 (veja-se o estudo recente da Confederação do Desporto).

É assim que, começando em 1996 com 28 milhões de euros, vai crescendo até ultrapassar os 40 milhões entre 2006 e 2011. A partir daí, consequência da troika e da pandemia, desce fortemente para a casa dos 30, com um pico de descida em 2013 até aos 28,9 milhões de euros. A partir de 2018, e até ao presente, retoma níveis de financiamento acima dos 40 milhões em estável recuperação.

Só que, no contexto económico-financeiro de hoje - 2024 - são equiparáveis aos montantes de há 15/20 anos, o que por si só explica o sufoco financeiro em que têm vivido as federações desportivas, com inevitáveis consequências no desenvolvimento desportivo de cada modalidade e na representação nacional. Basta calcular o efeito inflação num mesmo valor ao longo de duas dezenas de anos para perceber como tem vindo a diminuir proporcionalmente o apoio público. Mas há mais razões para o avolumar das dificuldades sentidas.

Hoje, o mesmo apoio público divide-se também por mais federações e por novas modalidades que foram surgindo, até no contexto olímpico. Cumprindo uma exigência dos tempos e também correspondendo ao estímulo do Estado, o sector feminino tem felizmente crescido na generalidade dos desportos, o que leva a mais quadros competitivos, mais seleções, mais despesas que têm ficado sem novas compensações. Os destinos distantes e exóticos de inúmeras competições internacionais encarecem brutalmente a presença dos nossos atletas, imprescindível para a obtenção de marcas e ranking internacional.

Podem-se enumerar ainda mais razões para justificar a legitimidade que assiste ao movimento desportivo na expectativa de ver aumentado o seu financiamento público, mas estes números são tão evidentes que bastam para o ilustrarem. O mundo do desporto superou, embora com danos irreparáveis, duas grandes crises nacionais, mas mantém-se agora numa situação de atraso séria que tem de ser reconhecida por quem tem poder decisivo e executivo neste momento.

No que toca à questão do financiamento público do desporto - e ainda a tempo das discussões finais do OE 2025 - só há um caminho que poderá corresponder aos anseios de atletas, treinadores, clubes e federações desportivas, e dar-lhes a sentir que merecem mais do que “nem ganhar para o susto”: é o reconhecimento ainda maior do seu árduo e continuado trabalho, e dos múltiplos obstáculos à excelência a nível mundial que constantemente têm de ultrapassar, e por conseguinte, o correspondente aumento do apoio público.