Taça de Portugal. A competição dos heróis improváveis, dos contos de fadas e da concretização de objetivos que muitas vezes pareciam impossíveis. Sendo certo que as equipas da 1ª Liga partem sempre como favoritas para os encontros com clubes de escalões inferiores, a verdade é que, na prova rainha, a distância entre emblemas de diferentes patamares torna-se um pouco menor.
O desejo de fazer história, associado à crença dos adeptos, leva a que as equipas de menor dimensão se transcendam e a alcancem feitos que perduram na eternidade.
Puxando um pouco pela memória, há façanhas de clubes de menor dimensão na Taça que se destacam de forma evidente. À conquista da prova por parte do Beira-Mar (1998/99) e do Aves (2017/18), juntam-se, por exemplo, as campanhas do Chaves em 2009/10, época em que o clube então na 2ª Liga chegou à final, e do Leixões em 2001/02. Nessa altura, os matosinhenses disputavam a 2ª Divisão B (terceiro escalão) e conseguiram chegar à final, onde perderam frente ao Sporting.
A caminhada dos bebés do Mar até ao Jamor ficou marcada pela eliminação de dois clubes do principal escalão, no caso o Varzim (quarta eliminatória) e o SC Braga (meias-finais). Ora, perante o facto de matosinhenses e bracarenses terem encontrado marcado para este sábado, em jogo a contar para a 5ª eliminatória da competição, nada melhor do que recordar o jogo de há 22 anos na companhia de alguns dos protagonistas deste enredo de sonho para as gentes de Matosinhos.
Uma história que podia ter começado mal
A improbabilidade da chegada de uma equipa da terceira divisão à final da Taça de Portugal faz com que um feito desta dimensão ainda esteja bem presente na memória daqueles que fizeram parte do percurso.
«A nossa história nessa edição da Taça começou com um jogo em Pevidém ao qual chegámos atrasados. Pensávamos que o jogo era às 15h, mas afinal era às 14h30. Foi um jogo esquisito para caramba porque nem aquecemos, mas ganhámos pela margem mínima no campo deles», começou por contar Abílio, figura histórica que, para além do Leixões, representou clubes como FC Porto, Salgueiros e Campomaiorense, ao zerozero.
O antigo médio, agora com 57 anos, fez também questão de relembrar a eliminatória contra o rival Varzim: «Depois tivemos um percurso porreiro porque fomos eliminando equipas de escalões superiores, lembro-me que contra o Varzim tivemos de ir a um segundo jogo. Na teoria, os nossos adversários eram favoritos, mas nós tínhamos um grupo muito coeso e uma equipa muito boa. Éramos liderados pelo mister Carvalhal, que agora vai ser adversário do Leixões. Fizemos um percurso bonito e que terminou na final.»
Na equipa técnica de Carlos Carvalhal despontava, no papel de adjunto, Miguel Leal, que mencionou um aspeto curioso quando questionado sobre a forma como o clube encarou a competição no início da temporada. «Queríamos ir o mais longe possível, mas não traçámos objetivos no início da época. Aliás, não o fizemos nós nem a organização do campeonato. Lembro-me que no dia da final da Taça de Portugal, a nossa equipa tinha jogo e a jornada teve de ser adiada. Não era mesmo expectável que uma equipa da agora Liga 3 chegasse à final da Taça. As coisas foram acontecendo e a crença foi crescendo à medida que os resultados foram aparecendo», frisou.
O mítico jogo em Braga
Pois bem, e que memórias têm estes dois protagonistas da meia final com o SC Braga, jogo que vai ser reeditado neste fim de semana? Abílio, jogador que, segundo as suas próprias palavras, apontou um «golão» nesse encontro- livre direto a cerca de 30 metros da baliza-, não esquece a semana que antecedeu a partida.
«O SC Braga tinha tudo programado para ir à final, lembro-me que o mister Manuel Cajuda, treinador deles, disse que ia de fato e gravata ao jogo. Ele disse que já tinha o fato pronto e acabou por lhe sair mal porque nós fomos melhores nesse jogo em Braga», recordou. Ora, perante isto, a pergunta foi inevitável. Terão essas palavras do treinador adversário servido como motivação para o plantel leixonense?
«O mister Carvalhal não tocou nessa questão na palestra, mas nós lemos os jornais na altura. Já estava tudo preparado, o SC Braga estava na 1ª Liga, a fazer um excelente campeonato e ia defrontar uma equipa da 2ª B. Não estou a dizer que eles não nos respeitaram, mas, de certa forma, na cabeça deles já estava a final. Nós aproveitámos isso e fizemos um jogo histórico para as gentes de Matosinhos.»
Por seu lado, Miguel Leal tem recordações mais direcionadas para a vertente estratégica do jogo. «Sabíamos que essa meia-final contra o SC Braga era um grande teste, ainda para mais em casa deles. Estudámos muito bem o adversário, fizemos uma análise muito criteriosa e conseguimos anular os pontos fortes deles e valorizar os nossos. A análise dos adversários ainda estava nos primórdios e coube-me a mim fazer esse trabalho», asseverou. Inacreditável!
A partir daqui, a explicação ficou um pouco mais aprofundada e, confessamos, até ficámos algo surpreendidos com o detalhe das memórias do treinador: «Conseguimos operacionalizar todas as estratégias que definimos para o jogo, tínhamos excelentes executantes. Essa preparação deu-nos confiança e tranquilidade, sendo que os jogadores nessa fase já estavam com crença total. Nessa altura, o SC Braga tinha o Idalécio como central e ele era o principal criador de oportunidades flagrantes para eles, principalmente com passes longos. Conseguimos anular essa saída de bola e lembro-me também da forma como impedimos que eles fizessem as habituais combinações nos corredores.»
E sendo certo que, tal como nos contou Abílio, os adeptos receberam os jogadores de forma apoteótica na Câmara Municipal - a festa durou até às tantas da madrugada -, há um dado que se destaca nesta história. Na temporada 2001/02, o Leixões terminou a zona norte da 2ª Divisão B com os mesmos pontos que o Marco, mas não conseguiu o primeiro lugar e a consequente subida porque tinha desvantagem no confronto direto. Pois bem, nesse mesmo campeonato estava o SC Braga B, clube frente ao qual os matosinhenses somaram... uma derrota e um empate. O futebol nunca deixará de nos surpreender!
Equilíbrio em perspetiva
Dando ênfase à forma como o Leixões jogou «olhos nos olhos» com o Sporting na final e ao espetáculo proporcionado pelos adeptos de Matosinhos no Jamor, ainda que os bebés do Mar tenham saído derrotados, a dupla fez uma antevisão do encontro deste sábado.
«O SC Braga é favorito, mas o Leixões também tem uma boa equipa. Penso que haverá momentos de muito equilíbrio e tudo pode acontecer, mesmo sabendo que o SC Braga tem melhores jogadores e que, nos momentos de aperto, essa qualidade pode prevalecer», destacou Miguel Leal, numa ideia partilhada por Abílio:
«Conheço as duas equipas, ambas têm muita qualidade. O Leixões está com uma belíssima equipa e tem feito um bom campeonato, não tenho dúvidas que o SC Braga vai passar dificuldades. Na mente dos adeptos ainda pode estar essa meia-final, as pessoas vão estar entusiasmadas e vão criar um ambiente bonito, de certeza. Não consigo é arriscar um resultado, gostava que o SC Braga ganhasse por causa do Carvalhal e gostava que o Leixões ganhasse porque foi lá que me fiz homem e jogador.»
Para já, fica a questão no ar: haverá espaço para uma surpresa na Taça, tal como aconteceu há 22 anos?