A passagem de Ruben Amorim (sem acento, agora sabemos todos) pelo Sporting também é feita de tiradas antológicas. O “e se corre bem?”, logo para arrancar, uma hubris que não terminou punida, por sim, correu mesmo bem. Ou o “vamos ver” do final da época passada, quebrado a meio, é certo. Mas é possível que o primeiro título de Amorim tenha sido possível porque foi abastecido pelo combustível do “onde vai um vão todos” atirado após um empate em Famalicão.
E no último jogo pelo Sporting, onde foi um, foram todos. Todos, todos. A reviravolta foi épica, Amorim começa por dizer na flash da Sport TV que o que aconteceu na Pedreira, (parêntesis para um fast rewind: começar a perder por 2-0 e marcar quatro golos na 2.ª parte, com o 3-2 a aparecer já com o raiar do minuto 90), foi o “contar de uma história em 90 minutos”, a história de quatro anos e meio do Sporting de Amorim. Com “sofrimento”, com “luta até ao fim”. Para ganhar em Braga, foi preciso uma aldeia completa feita de gente que até já partiu, mas que está aqui.
“Se calhar entraram em campo o Vitorino, o Coates, o Neto, João Pereira, o Matheus Nunes, todos esses jogadores parece que entraram todos em campo na 2.ª parte e foi especial”, diria Amorim já na conferência de imprensa, onde confessou que este terá sido um dos momentos mais especiais, senão o mais especial não só desde que chegou a Alvalade com aquela arrogânciazinha cheia de pés no chão, quiçá até de uma carreira: “E atenção, eu já fui campeão pelo clube do meu coração, que era o meu sonho, mas este momento foi inacreditável. Tinha de ser assim”.
Com esta confissão, não há que duvidar. Até no momento em que algures na sala de conferência de imprensa um telemóvel com o hino do FC Porto começa a tocar, Ruben Amorim veste a pele de adepto benfiquista tornado melhor treinador do Sporting dos últimos 70 anos. “Foi golo? Está quanto? 1-1? Isso é bom!”, diz, entre sonoras gargalhadas, como se nesta última conversa ainda lhe fosse permitida ainda mais leveza e honestidade. Mas com o pensamento na sua amanhã ex-equipa, para quem, de facto, o empate no clássico viria bem.
O novo treinador, que é “um grande treinador”
O 4.º golo do Sporting em Braga não só confirmou a vitória, mas também a ligação quase inquebrável entre grupo e treinador. Após o remate certeiro de Harder, os jogadores correram para Amorim, embrulharam-no num abraço que se repetiu no apito final. Ali se viu o quanto aquela equipa queria dar uma vitória ao treinador no seu último jogo. Amorim diz que “preferia não ter sofrido”, mas “a forma como acabou” tornou tudo ainda mais épico, matéria de filmes, séries de plataformas, de sonhos. “Uma semana que podia ter sido tão difícil… é tão melhor agora”. Amorim diz que vai “mais descansado”, não só porque os “jogadores são inacreditáveis”, mas porque confia em que se vai colocar nos seus sapatos a partir de segunda-feira.
Que ele não confirmou, mas toda a gente já sabe que é João Pereira.
“Terão um grande treinador, não tenho dúvidas nenhumas, que os vai ajudar a seguir em frente. Disse-lhes agora no final do jogo: os discursos podem ser diferentes, as indicações podem ser diferentes, mas se eles continuarem humildes, o treinador que cá está vai fazer o seu trabalho porque eles são um grupo de jogadores especial”, começou por sublinhar Amorim, que agora estará apenas a torcer de longe, mas que admite ter deixado “informação” sobre jogadores, como alguns deles devem ser mimados, apoiados, falou de Quaresma, de Geny, mas todos eles terão as suas idiossincrasias. A pessoa que vem aí “tem a mesma essência”, “encaixa bem”.
Agridoce foi no entanto ver “Pote a chorar” depois de se lesionar ainda na 1.ª parte, Amorim acredita que o jogador fez questão de estar em campo por este era o último jogo do treinador. “Fez esse esforço, sinto que está um bocado zangado comigo e isso é que me custou bastante”. Até os dias epopeicos, os mais especiais, têm o seu amargo de boca, é mesmo assim, até os finais perfeitos têm os seus asteriscos.
A partida, o obrigada e um pedido de desculpas
De partida para Manchester, Ruben Amorim deixou um obrigado e um pedido de desculpas. Diz ter noção que lá fora será mais difícil e que o que tem em Alvalade é “difícil de reproduzir”. Com a mão no coração enquanto debita palavras mais ou menos emocionadas, diz “obrigada pela aventura fantástica”, que fez o que pôde por um clube que nem era o seu. “Cometi alguns erros, algumas teimosias, mas sempre a pensar na equipa. Tirando o erro da época passada, esta foi a única vez que pensei em mim”.
Diz, sem fantasmas ou falinhas mansas, que teve de o fazer. “Desculpem esta decisão a meio, mas eu senti que esta era a minha hora”, continua o treinador que, em jeito de balanço rápido, fala em antíteses que, na verdade, têm muita lógica: “Acho que podíamos ter ganhado mais, mas não esperávamos ganhar tanto. Parece um contrassenso, mas faz sentido”.
O “aventura inacreditável” sai várias vezes da boca do treinador, que sublinha a “ligação com as pessoas, os estágios, as viagens”. Acredita que toda a gente devia viver aquilo que ele viveu em Alvalade. “Nunca me senti sozinho. Um treinador estar cinco anos num clube, ficar em 4.º lugar e nunca se sentir sozinho… é especial. Neste momento, porque todos os clubes têm os seus momentos, o Sporting é um clube especial”.
Houve também espaço para agradecer a António Salvador, presidente do SC Braga, que arriscou naquele rapaz com tão pouco tempo de profissão para atacar uma I Liga. E com quem por vezes ainda troca mensagens. “Mais quando eu vinha cá buscar treinadores e ele me dizia que eu o estava a lixar [risos]”. Amorim, leve, solto, sai “em paz”, disse em inglês a um jornalista polaco que por ali também estava. Garante que não vai ficar “uma pessoa diferente”, aguente “três meses ou 10 anos” no United: “Sei que ficarei bem. Conheço-me muito bem e tenho plena noção do que é importante na vida. A minha essência não vou perder de certeza, mais depressa perdia a minha carreira de treinador”.
Daqui a algumas horas, há um novo avião rumo a terras inglesas para Ruben apanhar. Agora sem volta a dar.