Façamos uma imagem mental, um quadro idealizado, do que é a Premier League. Cá vái: um estádio antigo, mítico, a transbordar de gente; um encontro disputado a uma tarde de domingo, mas com muito frio, com jogadores de luvas, com neve nas laterais do campo. Golos, vários golos, quatro golos em 28 minutos. Uma rivalidade que começou há bem mais de 100 anos. Um tempo de descontos em que, estando o marcador empatado, ninguém se conforma com a igualdade, há ataques e contra-ataques, situações de perigo para ambos os lados.

Foi assim o Liverpool-Manchester United, o principal clássico do football. Tudo se resumiu no último lance do jogo. Aos 97', após minutos de correria rumo a uma baliza e depois a outra, os red devils dispuseram de um último ataque. Tudo se definiu nos pés de dois jogadores amaldiçoados: assistência de Zirkzee, remate de Maguire. Com tudo para marcar, o defesa atirou por cima.

Foi o último suspiro de um duelo frenético, caótico até. Que o Manchester United tenha saído de Anfield a lamentar aquele lance, com um amargo de boca porque a vitória esteve ali tão perto, mostra como, frente ao líder de Premier League, a equipa de Ruben Amorim elevou o seu próprio nível.

Antes da visita a Anfield, Ruben Amorim reconheceu que a sua própria face era, um mês e meio depois de aterrar em Inglaterra, bem diferente da que tinha quando chegou. Mais carregada, mais cansada. Adeus otimismo, adeus esperança, olá nervosismo, tensão, preocupação. O técnico admitiu que, recentemente, a sua equipa esteve “ansiosa”, até “perdida”, mas os red devils chegaram ao duelo entre os dois clubes que mais vezes foram campeões ingleses com o traje de luta colocado.

Assim, os visitantes, na sequência de quatro derrotas seguidas, encheram-se de brio, libertaram-se da pressão e realizaram a sua melhor partida com o treinador português. Os problemas de mais de uma década num clube em que a crise deixou de ser um momento para ser uma condição quase perpétua não se foram embora, o United segue em 13.º, continua a haver uma montanha de problemas para resolver. Mas a imagem de Anfield contrasta radicalmente com a amostra recente.

O frio de Liverpool, com um clima que ameaçou adiar o jogo, levou a partida para uma zona combativa, de futebol de inverno, de luta. O United começou a agarrar-se a esse espírito competitivo para conseguir nivelar a contenda.

É verdade que foram os locais os primeiros a ameaçar o 1-0. Para a equipa de Slot, e ainda que o neerlandês tenha introduzido matizes de paciência em posse, qualquer indício de contra-ataque é um contra-ataque, qualquer possibilidade de correr rumo à baliza adversária é a concretização de uma fuga para o golo.

Mas há, também, criatividade, médios que chegam vindos de trás, recursos ofensivos. Aos 14’, uma excelente jogada terminou com Gakpo a atirar ao lado, dois minutos antes de Alexis Mac Allister, assistido por um passe delicioso de Salah, não conseguir superar Onana.

Apesar do ímpeto inicial dos líderes da Premier League, o United foi uma equipa mais funcional, menos precipitada. Teve calma para manter a bola, conseguindo explorar a linha subida do Liverpool. Em duas ocasiões, bolas colocadas nas costas da penúltima barreira de proteção dos reds quase levaram ao golo dos de Manchester, mas Diallo, com tudo para marcar, não deu a melhor sequência a um cruzamento de Dalot e Rasmus Højlund, isolado perante Alisson Becker, disparou para defesa do brasileiro.

Se houve ocasiões para ambos os lados na primeira parte, no arranque da segunda surgiram os golos. Primeiro para o United, que confirmou a versão gladiadora através do mais combativo dos seus jogadores. Lisandro Martínez, central de 1,75 metros, parece ter sempre tanta vontade de jogar como de lutar, dá a ideia de ser um pugilista peso-pluma com os pés de um futebolista. Aos 52’, o argentino recuperou a bola, recebeu uma grande assistência de Bruno e esmagou a bola, num tiro para o 1-0.

Carl Recine

O 1-0 convidou ao otimismo, mas parecia que era um engano, uma antítese para a dor ser ainda maior. Somente 17 minutos depois de chegar à vantagem, já o United estava atrás do marcador.

O 1-1 chegou num excelente lance de Gakpo, que tirou De Ligt da frente e bateu Onana. E, bem, a este ponto vale a pena refletir como as múltiplas falhas do United enquanto instituição contribuem para as falhas da equipa de futebol.

Decidiu-se gastar €45 milhões em De Ligt, contratado ao Bayern, onde esteve longe de brilhar, depois de atuar na Juventus, onde também esteve longe de brilhar. O neerlandês foi batido no 1-1 e colocou a mão na bola que daria o penálti que Salah, aos 70', transformou no 2-1. Decidiu-se gastar €73 milhões em Rasmus Højlund, atacante com pouca baliza, como mostram os 23 golos em 66 partidas pelo United. Esses problemas do clube persistirão, não vão embora, mas em Anfield houve, mesmo, uma prova de vida.

Em desvantagem, os red devils não entraram na espiral negativa das últimas semanas. Lutaram, aparecendo a estrelinha de Amad Diallo, o herói do dérbi contra o City que, aos 80', fez o 2-2 final.

Até à conclusão da partida, ambas as equipas poderiam ter vencido. Jota forçou Onana a aplicar-se, os derradeiros minutos foram de um futebol sem amarras, entrando no imaginário daquilo que imaginamos quando imaginamos Premier League. Frio, gritos, ataque.

Não houve golo, culminando tudo no tal falhanço de Maguire. Para o United, que nos últimos quatro anos teve derrotas frente ao Liverpool por 4-2, 5-0, 4-0, 7-0 ou 3-0, o empate é mais do que um empate. É um pouco de oxigénio ao qual Ruben Amorim se tem de agarrar.